quarta-feira, 31 de agosto de 2022

CLF036.04 Um cirurgião perito com revólveres

A luz não dissipou, certamente, a tremenda confusão do jovem, mas deu-lhe um pouco de ânimo.

Com mais temor que outra coisa, desfez a improvisada ligadura feita no canhão, quase às escuras, e humedecendo um trapo limpo na água que mantinha em ebulição, limpou cuidadosamente o ferimento.

Era apenas um pequeno e negro buraco sanguinolento, de feio aspeto, à vista do qual não trouxe nenhuma luz ao improvisado enfermeiro. A bala teria entrado em linha recta ou desviada? Na horizontal ou de cima para baixo? Onde procurá-la?

— Porque não terá saído a maldita? — exclamou o rapaz, desesperado.

Sem motivo verdadeiramente justificado, na realidade cinicamente porque queria fazer alguma coisa, mas não sabia o quê, voltou cuidadosamente o ferido sobre o lado direito, deixando-lhe as costas nuas, plenamente iluminadas pelo primeiro raio de sol que naquele momento se filtrava timidamente pela porta aberta.

E então Mills ficou absorto, contemplando um pequeno alto, como um azulado quisto, que aparecia sob a omoplata esquerda de Murray!

E quando o significado daquilo penetrou plenamente no seu cérebro, sentiu que a vista se lhe nublava e o coração lhe batia com tanta força, como se quisesse saltar-lhe do peito.

Ali estava a bala!

Uma pressa febril acometeu o jovem, como se receasse que desaparecesse de um momento para o outro aquele pontinho azul, e atando um cordel à sua faca de mato, submergiu-a por completo na água a ferver.

Depois, sem se deter um momento, reuniu quanta roupa e trapos limpos pôde encontrar, procedendo rapidamente a preparar ligaduras e compressas.

Tony nunca tinha empregado em toda a sua vida um bisturi, mas sabia perfeitamente como preparar uma peça com a sua faca de caça e agora tratava-se de uma operação parecida.

Estava perfeitamente sereno e tinha o pulso firme como uma rocha quando agarrou na faca. Sem a menor vacilação fez um corte recto e profundo. Tão rápido, que ainda não tinha começado a brotar o sangue e já tinha a bala entre os seus dedos.

Não se distraiu em inúteis complicações e aplicou imediatamente as compressas, não sentindo sequer que lhe queimavam os dedos...

Um minuto depois terminava a operação quase não tinha havido perda de sangue.

O ferido abriu os olhos naquela mesma tarde, olhando aturdido ao seu redor.

Dois dias depois, como o ferido tivesse melhorado, Tony, permitiu que ele falasse, do que tinha estado impedido de o fazer durante todo aquele tempo, não sem grande trabalho.

— Quantos dias passaram? — perguntou imediatamente o ferido, com grande ansiedade.

— Dois.

— Só dois? — Murray pareceu tranquilizar-se bastante.

— Assim é.

— Receava que fossem mais. Muitos mais.

— Perdeste pouco sangue.

— Pagaste com juros o serviço que te prestei — disse Mike, gravemente, após uns instantes de silêncio —, mas ainda tenho de te pedir algo mais.

— Não te preocupes — sorriu o jovem. — Eu sou esse personagem dos contos infantis que sai de uma garrafa e tem poder para tudo. Se apareci aqui com aspeto de vencido, foi só para te provar. Pede o que quiseres e bastará um gesto meu para te satisfazer...

Murray também sorriu, mas fez um movimento com a mão, como indicando que o momento não se prestava para brincadeiras.

— Primeiro que tudo, diz-me como acabou aquilo. Puseram-me fora de combate no primeiro «round» e não me inteirei de nada.

— Tive sorte e liquidei os três.

— Assim, com essa simplicidade?

— Quase.

— Vamos!

— E agora que já estás informado, vou trazer-te o caldo, que está na hora.

— Espera!

A perentória exclamação de Michel, deteve o jovem, que se voltou.

— Tens de partir, Tony. Não é possível esperar mais tempo.

— Enlouqueceste?

— Ouve, rapaz. Crês que me agrada a ideia de ficar outra vez só, e para mais ferido? Não! Sinto calafrios só de o pensar. Mas é preciso.

— Vejo que não estás bem como me parecia. Agora deliras.

— Tens de me ouvir, Tony. Escuta-me e compreenderás.

— Parece-me difícil, mas veremos. Agora toma o caldo e depois contas-me a história.

Quando voltou com a tijela, Murray bebeu apressadamente o caldo, desejando terminar.

— Já te contei parte da minha história, não? — começou imediatamente, colocando de lado a tijela vazia. — Esgotados todos os recursos precisamente quando tinha conseguido demonstrar os' meus direitos, a Lei concedeu-me o prazo de um ano para satisfazer umas dívidas para com o erário público, cuja natureza nunca consegui compreender, mas que nem por isso eram menos reais, e no caso de não pagar, leiloarão o «Lucky», o que quer dizer que o meu inimigo o levará de1 todas as maneiras, já que é o senhor de Bunkerville e ninguém se atreverá a ir contra ele.

— Quem é esse simpático indivíduo?

— Patrick Donovan. Um advogado aventureiro, sem escrúpulos nem vergonha, que corteja a minha filha ao mesmo tempo que pretende arrebatar-me o rancho. É daqueles que querem tudo para eles, sem lhes importar o meio de o conseguir.

— Que anjinho!

— Por isso levei as mulheres para Las Vegas, e também por isso a intranquilidade não me deixa viver. Está prestes a terminar o ano, Tony, e deves partir imediatamente.

— Não encontro razão suficiente para te deixar morrer de pasmo aqui. Agora tens dinheiro suficiente para comprares vinte ranchos como o «Lucky», no caso de continuares a interessar-te pelo gado, o que já não te faz nenhuma falta. A perda das tuas propriedades, atualmente, nada significa para ti.

— Isso é o que tu julgas. O rancho é o fruto dos esforços dos meus pais e meu, também. Ali cresci, lutei e trabalhei. Ali me fiz um homem e ali nasceu a minha filha. Mas não é isso só. A minha pequena Nelly sabe o que o rancho representa para mim, sem pensar que a sua felicidade me importa muito mais, e está decidida a casar-se com o canalha do Donovan se não há outra forma de salvar o rancho. Compreendes agora?

— Sim! — exclamou o jovem, fervendo de indignação. — Esse fulano não tardará a ter notícias minhas.

— Partirás?

— Está bem, Mike. Tu ganhas. Irei só.

— Obrigado, meu rapaz — entusiasmou-se o ferido. — Sabia que o farias.

— Mas não antes de uma semana. E isso para que até então estejas suficientemente restabelecido. E não te incomodes a discutir — cortou o protesto do seu amigo —, porque será perder o tempo.

 

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