sexta-feira, 17 de junho de 2022

BRV013.11 O resgate do amuleto «Shoshone»

Entrou sem bater, mas arrependeu-se imediatamente de o ter feito. «Shoshone» e Nalinle estavam nos braços um do outro, arrulhando amorosamente. Lex tossicou, um tanto confuso, e ambos interromperam o beijo que trocavam para olharem com certa surpresa.

— Não te esperávamos tão cedo — disse «Shoshone», um tanto ruborizado.

— Vê-se. Mas tenho notícias urgentes e importantes.

Nalinle começou a arranjar mecanicamente o cabelo. Lex dirigiu-se a um armário e abriu-o. Enquanto retirava um rifle e munições, disse:

— Joan acaba de me proporcionar a prova de que andávamos à procura para mandar para a prisão esse grupo de ladrões.

— Joan?

— Sim. Adivinha de quem eram as terras que o Governo concedeu aos «shoshones» como reserva?

«Shoshone» quedou uns momentos imóvel a contemplar o seu amigo, como se não pudesse acreditar no que acabava de lhe vir à ideia. Recordava nitidamente que, sendo ele um jovem ainda, se tinham transferido para aquela reserva por ordem governamental.

Anteriormente, ocupavam uma zona selvagem e montanhosa, mais ao Norte, em pleno coração das Salmon River Mountains. Ali, os «shoshones» passavam muito frio no Inverno e o índice de mortalidade era bastante elevado.

Ao transferirem-se para a nova reserva, dissera-se que o Governo adquirira aquelas terras, mas não se mencionara nome algum. De súbito, Winstonah «Shoshone» vislumbrava toda a solução do problema.

— As terras eram de Brady — disse lentamente. — Engano-me?

— Acertaste.

Alvo perfeito. De repente, «Shoshone» começava a compreender muita coisa. Lex carregava o rifle com movimentos rápidos e precisos. Sem olhar para o índio, explicou:

— No contrato que o Governo estabeleceu, figurava uma cláusula muito interessante. Se os «shoshones» abandonassem as terras por qualquer razão, perderiam o direito a elas e Brady, os seus herdeiros ou a pessoa a quem ele concedesse tal privilégio, podia recuperá-las.

Nalinle escutava de olhos muito abertos. Compreendia também a perfeição daquele plano. «Shoshone» murmurou:

— Percebo. Os índios cobrariam a importância da expropriação de parte das suas terras. Mas se abandonassem a reserva antes de concluído o troço de caminho de ferro, seria o primitivo proprietário dessas terras quem teria direito a receber esse dinheiro do Governo. Não é assim, Lex?

— Acertaste, mais uma vez.

De um salto, «Shoshone» pôs-se em pé e afivelou o cinturão de armas com os dois «Colts». Apertando os dentes, disse:

— Tenho de me avistar com Tondeyaha.

— Não te deixarão lá chegar. Matar-te-ão antes.

— De qualquer maneira, tentarei.

Nalinle adiantou-se, decidida.

— Eu irei contigo. Sou tua esposa. Tenho esse direito.

«Shoshone» abanou a cabeça de um lado para o outro e pôs o chapéu na cabeça. Respondeu, simplesmente:

— Não.

— Mas eu...

— Não.

A rapariga guardou silêncio. Julgou inútil insistir. Por sua vez, «Shoshone» sabia que ela não iria. Uma esposa índia jamais desobedece ao marido. Voltou-se para Lex, que tinha já o rifle preparado, e disse-lhe:

— Vamos.

Saíram os dois, seguidos pelo olhar profundo e intenso de Nalinle. Enquanto montavam a cavalo, Lex acabou de explicar a «Shoshone» o plano arquitetado por Joan. O índio soltou um assobiou de admiração e comentou:

— Essa gatinha branca é muito mais perigosa do que parece à primeira vista.

Lex recordou os momentos passados junto dela.

— Sim, muito mais perigosa — confirmou. — É um perfeito demónio.

Partiram os dois. O dia mantinha-se esplêndido sobre as colinas que ondulavam nas extensas terras de Brady. Havia gado nas mais afastadas. Outras ofereciam-se quadriculadas em diferentes tons de verde pelas hortas.

Mais ao longe, junto ao Humbotd River, pastava uma manada de bisontes. Ao olhá-los, «Shoshone» disse para consigo que, dentro em pouco, podiam ser todos felizes, se as coisas saíssem bem.

De repente, uns disparos em descarga cerrada romperam a calma da manhã. Os dois amigos retiveram os seus cavalos e olharam-se, alarmados.

— Disparos de revólver — disse Lex, sombriamente. — Que te parece que possa ser?

«Shoshone» olhava à sua volta, esquadrinhando, escutando. Desceu do cavalo e aplicou um ouvido ao solo. Durante uns segundos permaneceu assim, escutando atentamente. Quando elevou os olhos, estes pareciam mais negros que habitualmente.

— Galope de cavalos.

— Muitos?

— Sim. Vinte, pelo menos.

Os disparos continuavam a fazer-se ouvir. O vento, desfavorável, não lhes permitia escutar mais nada. Lex disse:

— Achas que seja alguma coisa grave?

Subitamente, compreendeu que o índio não o escutava. «Shoshone» estava tenso, olhando para o horizonte como se pudesse ver mais além. Tremiam-lhe as narinas e tinha o rosto de uma rigidez pétrea.

Lex convenceu-se de que ele via e escutava qualquer coisa que escapava à sua perceção de homem branco, muito menos desenvolvida. De repente, «Shoshone» saltou para a sela do seu cavalo, com um ágil movimento que provocou a admiração de Lex Norman.

— Tondeyaha está a atacar o acampamento ferroviário!

Aquilo foi suficiente para que Lex se lançasse atrás do índio à velocidade máxima que o seu cavalo podia desenvolver.

Eram quase trinta guerreiros, com os troncos nus pintados de amarelo, a cor da guerra. E, no alto de uma lomba, Tondeyaha, acompanhado pelos conselheiros da tribo, contemplava o ataque. Como nos velhos tempos da colonização.

«Shoshone» e Lex detiveram-se no alto de outro monte. Durante uns instantes, os dois permaneceram imóveis, procurando abarcar o conjunto da situação.

Os «shoshones» atacavam pelo lado Norte. Sem resultados práticos, ao que parecia. Mas matavam e morriam. E isso era suficiente. Havia no ar algumas nuvens de fumo.

Pólvora.

Disparos.

Gritos.

«Shoshone» e Lex olharam-se. Sabiam quem era o responsável de tudo aquilo. Brady havia lançado os índios na desesperação. Calculara mal a capacidade de tolerância de Tondeyaha e dos seus. E em vez de conseguir expulsá-los das suas terras, recorrendo ao velho expediente de exterminar os poucos bisontes que havia por ali, lograra apenas que eles se revoltassem. Um combate entre inocentes. Lamb incitava os ferroviários à luta. Aos dois renegados chegou a sua voz, trazida por uma refega de vento:

— Vamos! Não permitam que esses selvagens pintalgados nos vençam! Um índio só é bom depois de morto!

A velha e infame teoria dos colonos. Mas o tempo da colonização passara havia muito. Existiam agora outras fórmulas de convivência menos sangrentas e mais justas. Novamente a voz de Geo Lamb chegou até eles:

— Ataquem, índios malditos! Não conseguireis levar nada do acampamento, malditos ladrões de cavalos!

Lamb conseguia os seus propósitos. Os ferroviários afinavam a pontaria o melhor que podiam, e os guerreiros «shoshones» continuavam a atacar com raiva crescente. «Shoshone» trocou um olhar com o seu companheiro. Lex assentiu:

— Uah!

Os dois cavaleiros lançaram-se pela encosta abaixo a escalafriante velocidade, estendidos sobre o pescoço das suas montadas. Tondeyaha viu-os. E reconheceu imediatamente «Shoshone», que cavalgava à frente.

— Agarrem-nos! Quero-os vivos!

Antes que um só guerreiro pudesse fazer fosse o que fosse contra eles, os dois cavaleiros saltaram a barricada de sacos e carros erguida à volta do acampamento e entraram nele.

Os trabalhadores receberam-nos com um grito de alegria. Dois bons atiradores são bem recebidos sempre que há luta. No entanto, nenhum dos dois mostrou intenção de tomar posição na barricada. Como animados pelo mesmo propósito, ambos se lançaram na direção de Lamb, correndo em ziguezague.

O capataz de caçadores compreendeu que era a si que procuravam, e revolveu-se imediatamente com o revólver empunhado, disparando.

O primeiro balázio de Lamb saiu alto por excesso de precipitação. O segundo não chegou a sair do revólver. O índio chegou antes de ele ter tempo de apertar o gatilho. Com um salto felino arrojou-se sobre o capataz, e ambos rolaram no solo, lutando ferozmente.

No alto da colina, Tondeyaha ergueu a mão direita, surpreendido com a atitude de «Shoshone». Os guerreiros detiveram o ataque e passaram à posição de simples espectadores da singular cena. Tal como os operários do caminho de ferro. Como se todos se tivessem posto de acordo.

Postado a um lado, Lex vigiava atentamente os sequazes de Lamb. Precisamente os dois pistoleiros que «Shoshone» não matara na noite anterior no «saloon». No entanto, nenhum deles pareceu querer intervir naquilo.

Faziam bem.

Faziam muito bem, pois «Shoshone» convertera-se numa máquina difícil de parar. Numa máquina de distribuir murros e pontapés, que causavam estragos demolidores em Lamb.

Com uma impressionante direita, o índio atirou o seu rival contra a proteção de sacos que servia de parapeito até àquele instante aos defensores do acampamento. Antes que Lamb pudesse reagir, «Shoshone» voltou a cair--lhe em cima com fúria vingadora, agarrou-o pelas abas do casaco e fustigou-lhe o rosto com meia dúzia de bofetadas, as mais violentas e aplicadas com mais gosto de quantas dera em toda a sua vida.

— Vamos! Diz a toda esta gente o plano que tinhas imaginado para ficares com o dinheiro! Anda, diz! Diz!

Lamb não podia dizer coisa alguma enquanto «Shoshone» não parasse com aquele corretivo. A cabeça do capataz oscilava de um lado para o outro, violentamente. Quando «Shoshone» elevava a dextra pela quinta vez para lhe propinar a nona e a décima bofetadas — uma com o dorso e outra com a palma da mão — um grito de aviso chegou-lhe da colina onde estavam os chefes índios.

«Shoshone» deu um salto de costas, enquanto girava sobre si mesmo e deitava mão do revólver. Tudo ao mesmo tempo. Quando acabou de empunhar, Lex entrava em ação.

Os dois pistoleiros de Lamb, que tinham chegado a sacar os seus revólveres, não puderam utilizá-los sequer. Houve dois estampidos, duas pequenas nuvens de fumo. E dois cadáveres. Lex e os índios trocaram um olhar.

— És muito rápido, «Shoshone».

— Também tu. Olharam então para a colina.

Caminhando ao passo do seu cavalo, Tondeyaha dirigia-se para o acampamento. Os guerreiros mantinham-se a uma prudente distância da barreira de sacos. Quanto aos ferroviários não tinham largado os seus rifles. Mas nenhum deles parecia desejar uma nova edição de tiros e mortos.

A quinze metros de distância dos dois renegados, Tondeyaha deteve-se e perguntou:

— Podes explicar tudo isto de uma maneira satisfatória, Winstonah?

«Shoshone» sentiu que o coração lhe dava uma volta no peito. Não obstante, o rosto do velho chefe era granítico, impenetrável. Especialmente quando acrescentou:

— E podes explicar da mesma forma o desaparecimento de Nalinle?

Assentiu E não retirou a vista daqueles profundos olhos negros que o contemplavam com julgadora firmeza. E respondeu:

— Ela é minha esposa.

— Não me basta isso.

— Ama-me e eu amo-a.

Tondayaha não disse nada. Mas parecia satisfeito com aquelas respostas, e com a expressão leal que via nos olhos do jovem pistoleiro. Indicou Lamb, que estava encolhido junto da paliçada, com o rosto entumecido em virtude da tareia sofrida.

O seu gesto foi suficiente para que «Shoshone» compreendesse. Ergueu-o pelo casaco, imperiosamente, e ordenou, apertando os dentes:

— Anda, conta-nos tudo. De contrário, deixarei que eles próprios se entretenham a arrancar-te a história toda ao estilo índio.

Geo Lamb, com os olhos fechados e trémulo de medo, disse:

— Maxey Brady desejava voltar à posse das suas antigas terras e pensou... pensou correr com os «shoshones». Para isso exterminávamos os bisontes.

Tondeyaha inclinou-se para ele, por cima do pescoço do seu cavalo.

— Winstonah tem alguma coisa a ver com tudo isso?

Lamb olhou-o, entre surpreendido e assustado.

— Winstonah?

— Quero dizer «Shoshone».

Lamb abriu a boca. Durante uns momentos leu-se claramente no seu olhar um ódio atroz. Mas não se atreveu a dizer o que estava a pensar. Limitou-se a proferir, simplesmente:

— Não.

Um terrível peso pareceu libertar então o coração do chefe índio, que se endireitou na sela, olhando para os seus. Um brilho novo parecia transparecer nas suas pupilas. Como se aquele simples monossílabo lhe tivesse tirado alguns anos de cima. Depois, voltou-se para «Shoshone», que permanecia imóvel. E disse-lhe:

— Iremos visitar Brady imediatamente. Mas, primeiramente... — e retirou do pescoço o amuleto que trazia.

Cada um dos seus guerreiros ostentava um igual. Ninguém que não fosse da tribo tinha direito a usá-lo.

— É altura de resgatares o teu, Winstonah.

«Shoshone» estendeu a mão e pegou no amuleto. E esboçou algo que, com um pouco de boa vontade, se podia interpretar como um sorriso. Disse, simplesmente:

— Nunca deixei de usar o meu.

E Tondeyaha viu então, por entre a camisa do homem que renegara, as contas verdes e negras do honroso talismã. Com isso, «Shoshone» demonstrava que nunca deixara de pertencer aos da sua raça.

 

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