quinta-feira, 9 de junho de 2022

BRV013.03 A mulher de olhar incendiário


... E sentiu um profundo, selvático desejo de matar os responsáveis daquilo.

Quando se aproximou mais, Winstonah «Shoshone» pôde-os ver. Centenas de bisontes estendidos para sempre sob o sol intenso. Centenas de bisontes mortos a tiro, sem proveito para ninguém, pelo simples motivo de serem necessários aos índios.

A «Shoshone» deparara-se-lhe já muitas vezes aquele problema. Alguns caçadores brancos odiavam os peles--vermelhas e procuravam escorraçá-los das suas próprias terras. Especialmente quando existia qualquer possível riqueza de permeio. E ali estava a confirmação...

Os bisontes mortos.

Amontoados.

Apodrecendo sem que ninguém os aproveitasse. Nem sequer a sua pele.

Aproximou-se, depois de tapar o nariz e a boca com um lenço, a fim de, na medida do possível, se defender do insuportável odor que se desprendia dos animais mortos. Qualquer coisa parecia fervilhar dentro de si com inextinguível fúria.

Muitos dos bisontes estavam parcialmente esfolados e a alguns tinham sido cortados pedaços de carne.

«Shoshone» reconhecia a forma de proceder dos seus irmãos de raça. Talvez alguns guerreiros tivessem deslizado durante a noite, arriscando-se embora a serem descobertos, para aproveitarem um pouco do inútil morticínio. Os homens de Lamb não lhes permitiriam certamente que se aproximassem do local durante o dia. Duas penas abandonadas confirmaram-lhe tal ideia. Um «shoshone» nunca perde os seus adornos, a não ser que esteja morto.

Desmontou e inspecionou cuidadosamente o terreno. Alguns bisontes deviam ter sido mortos havia um bom par de semanas. Tudo à sua volta era um verdadeiro amontoado de vermes e podridão.

Enojado, «Shoshone» montou de novo e afastou-se dali.

Andou pouco mais de cem metros. Chegado ao cume de uma colina, voltou-se para contemplar o panorama. Uma raiva terrível irrompeu no fundo do seu coração, transmitindo-lhe às negras pupilas uma expressão de dureza que estremecia. Porém, sabia muito bem que não conseguiria nada entrando pelo acampamento ferroviário aos tiros.

A maioria daquela gente era inocente.

SÓ uns poucos seriam os culpados. Como sempre acontece. Uns poucos, misturados numa multidão, por forma a poderem actuar impunemente protegidos pelo anonimato. Nada ganhava por entrar aos tiros fosse onde fosse. Teria de ser frio e astuto.

Seu pai dizia-lhe com frequência: «Sê astuto como uma serpente e ninguém te vencerá».

Muito bem.

Sê-lo-ia.

Puxou as rédeas para voltar ao acampamento. O sol continuava sobre a sua cabeça, como um grande escudo de bronze. A terra estava ressequida e poeirenta. Tresandava a carne apodrecida, não obstante o lenço que lhe protegia o olfato. Retirou este, mais cem metros percorridos.

Foi quando os viu.

Eram dois cavaleiros e dirigiam-se ao seu encontro. Intrigado, «Shoshone» reteve a sua montada e esperou.

Um homem e uma mulher.

O homem era alto, grisalho, seco. Tinha uns penetrantes olhos escuros e envergava bom vestuário de «rancheiro».

A mulher era talvez a mais formosa que «Shoshone» vira na sua vida errante. Loira, de formas pronunciadas, não parecia desfavorecida pelo trajo masculino que vestia. Pelo contrário, este era de natureza a revelar a sua esplêndida figura. O cabelo escapava-se-lhe sob as abas do largo chapéu branco que trazia posto, e nem o sol intenso que se derramava sobre a paisagem chegava para diminuir a grandeza dos seus magníficos olhos azuis.

Durante uns instantes, o índio pensou que uma criatura assim não podia ser real. Mas, subitamente, ela falou. Com uma suave e maravilhosa voz.

— Lex disse-nos que o senhor viria a White Rock.

O homem acrescentou, então:

— Sou Maxey Brady e esta é minha filha Joan.

«Shoshone» já o calculara. Sobretudo, em face dos incendiários olhares que ela lhe dirigia.

— Muito prazer. Lex falou-me de si, senhor Brady. É muito grande o seu «rancho»?

— Bastante. Estende-se, a partir destas colinas, mais de quarenta milhas para o Norte. O caminho de ferro passará num extremo das minhas terras. Como calcula, prejudica-me muito que os homens de Lamb se entretenham a matar búfalos desta maneira. Não só infecta parte da minha fazenda, como me indispõe com a tribo de Tondeyaha. Sempre gostei de viver em paz com os vizinhos.

Era uma sábia política. Mas numa terra como aquela, as sábias políticas não serviam às vezes de nada. Era o revólver que implantava a Lei, apesar de tudo.

— Receio que tão pacíficas intenções não o ajudem muito, senhor Brady. Se foram os homens de Lamb que mataram esses bisontes, o assunto não se resolverá com boas palavras apenas.

Brady encolheu os ombros. Suspirou. Parecia cansado.

— Eu sei — disse, numa voz velada.

Joan interveio, com os olhos brilhantes:

— Talvez o senhor se decida a resolver o assunto, não é verdade? Ou receia demasiado Lamb para isso?

— É possível que o receie menos do que imagina. Mas, por agora, não tenciono matá-lo, se foi isso que quis sugerir.

Ela pareceu dececionada.

— Lex disse que o senhor é muito rápido com revólver.

— Sim, mas não tenho empenho algum em morrer pelo menos agora que resolvi uns assuntos que me interessam.

— Assuntos particulares?

— Podemos chamar-lhes assim.

Lembrou-se de Nalinle, que não tinha artifício algum. Que demonstrava bem a sua condição feminina sem necessidade daqueles sorrisos ardilosos, daqueles olhos carregados de malícia e daqueles requebros sabiamente estudados para fazer realçar as curvas do seu corpo, mesmo em cima de um cavalo.

Joan soltou uma risada cristalina.

— Estou certa de que esses «assuntos particulares» têm nome de mulher. Engano-me?

-- Talvez não.

— De mulher índia?

— Talvez sim.

Maxey voltou-se para a filha, um tanto bruscamente.

— Não sejas curiosa, Joan. «Shoshone» tem direito a guardar os segredos da sua vida.

A rapariga piscou um olho a seu pai.

— Sabes muito bem que nenhuma índia poderia competir comigo.

«Shoshone» sentiu desejos de gritar que era mentira. Que ela podia ser mais refinada, mais esperta e mais sabida que outras, mas Nalinle valia cem vezes mais porque era pura de corpo e de espírito. Porque se entregara a ele da única maneira que se entrega uma índia: para sempre.

Mas Joan não compreenderia aquilo, possivelmente.

Era como um bonito animal de luxo, que necessitava de cuidados. Como uma flor de estufa. Uma mulher para um homem menos rude que os que viviam por aqueles sítios. Embora a ela pudesse agradar esse tipo masculino. Joan Brady não suportaria a vida num «Wigam» índio. Nem mesmo a devia suportar muito bem no «rancho» de seu pai, pelo que procurava distrair-se da única maneira que lhe ocorria.

Brincando às mulheres fatais.

Sorriu, apenas com os dentes. Como se quisesse mordei alguém.

—Não estou muito certo de quem ganharia, menina Brady.

— Chamo-me Joan — coqueteou ela.

— Eu sei, menina Brady — insistiu ele.

Maxey sorriu, entre dentes. Aquele índio estava ministrando ao caso perdido de sua filha uma boa lição. De que ela estava a necessitar. Mas Joan não a tomava à letra.

— Gostava de tornar a vê-lo. Ao entardecer costumo ir tomar banho na lagoa.

«Shoshone» estava convencido de que não seria tão formosa como Nalinle, uma vez retirados o seu vestuário e adornos. Era o mal das mulheres brancas. Ou o bem das índias. Uma mulher branca podia parecer mais ou menos esplendorosa em conformidade com o seu trajar. Conhecera muitas raparigas de «saloon» assim. Sem os seus vestidos espampanantes ficavam reduzidas a nada. Uma: criaturas vulgares.

Sorriu novamente. Daquela mesma forma que nade queria dizer. Só com os dentes.

— Talvez lá vá.

— Tenho a certeza de que não deixará de ir.

Maxey Brady assistia em silêncio à insólita conversação. Não parecia homem muito enérgico. «Shoshone» pensou que, a ser Joan sua filha, já lhe teria partido a cara à força de bofetadas. Ou cortado o nariz, como fazem os índios às suas esposas infiéis.

Mas Maxey limitava-se a olhar a filha com uma expressão de lástima. Como se lhe fizesse pena, mas sem a repreender.

Ela dedicou ao índio um novo e último olhar cheio de fogo. E, com um grito selvagem, esporeou o cavalo edesapareceu no interior do «rancho».

«Shoshone» e Brady ficaram frente a frente, olhando-se em silêncio durante alguns segundos. Em seguida, o índio disse devagar:

— Não soube educar a sua filha, Brady. Porquê?

O «rancheiro» encolheu os ombros. Parecia realmente cansado e «Shoshone» quase sentiu pena.

— Perdi a mãe de Joan dois anos depois do nosso casamento. Nunca fui nada de especial a educar crianças. Não sirvo para isso. Ela cresceu como quis, e a companhia dos meus vaqueiros não a favoreceu. Agora não consigo ter mão nela. Não me tem temor nem respeito algum.

Suspirou, baixando os olhos sobre o pescoço do cavalo. «Shoshone» simulou um gesto compreensivo. Retesou as rédeas da sua montada, fazendo que o animal se encabritasse.

Disse:

— Gostaria de lhe poder dar uns açoites. Talvez o faça esta tarde.

—Na lagoa?

— Sim.

Pareceu-lhe notar um fulgor nos olhos do «rancheiro», mas talvez fosse apenas ilusão sua. Além disso, com aqueles dois malditos assuntos de sua filha e dos bisontes mortos, Maxey Brady tinha motivos mais que suficientes para que as suas pupilas despedissem fogo líquido.

Agitou a mão no ar.

— Ver-nos-emos em breve, Brady.

— Assim o espero, «Shoshone». Até à vista.

E ambos se separaram, tomando direções opostas. Ao longe, continuavam a escutar-se os disparos caçadores de bisontes.

 

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