quarta-feira, 8 de junho de 2022

BRV013.02 O mistério de White Rock

Lamb passou a vista pela fila de cavaleiros que tinha à sua frente. 

«Shoshone» destacava-se poderosamente entre todos eles, graças à sua tez cobreada e às duas tranças que lhe caíam sobre os ombros. 

O capataz fez uma careta. Aquele índio não devia tomar conhecimento de certas coisas, sob pena de se tornar furioso. 

Muito bem. Havia uma zona onde não poderia inteirar-se de nada e caçar uma ou outra peça sob atenta vigilância. 

O «rancho» de Maxey Brady. 

— «Shoshone», irás para as terras de Maxey Brady. E um terreno inconfundível. Para o Norte, encontrarás uma série de ondulações rochosas. E ali. Não penetres nas colinas. Podes caçar na planura. Costumam passar por lã grupos de bisontes. Espero que saibas encontrá-los. 

«Shoshone» assentiu em silêncio. Não respondeu ao motejo do capataz. Torceu a boca numa careta e fez girar o cavalo na direção que lhe fora indicada. Mas voltou-se ainda um momento. Os seus olhos pareciam confundir-se com a sombra que a aba do chapéu lhe projetava no rosto. 

— Quantos devo matar? 

Lamb quedou-se uns instantes em suspenso. Como se não soubesse que responder àquela simples e elementar pergunta. Depois abriu a boca. Pareceu meditar. E a «Shoshone» não agradou vê-lo meditar numa resposta tão simples. Disse, por fim: 

— Cinco ou seis serão suficientes. 

Cinco ou seis bisontes seriam mais que suficientes para alimentar o acampamento inteiro durante dois dias. E ele mandava-o caçá-los a ele sozinho. Que iriam fazer os outros? 

«Shoshone» prometeu a si próprio investigar sobre o assunto logo que tivesse uns momentos livres. Para já, devia ir aonde Lamb lhe indicara. Pagavam-lhe para alimentar os trabalhadores do caminho de ferro. Pois bem. Alimentá-los-ia. 

Mas se encontrasse em tudo aquilo alguma coisa que não lhe agradasse, ir-se-ia embora de ali quanto antes... levando Nalinle, evidentemente. Era já sua esposa e não podia abandoná-la. 

Estimulou o animal e perdeu-se num galope em direção ao Norte. 

Pensava na sua esposa. «Sua esposa». Soava-lhe maravilhosamente aquilo. No dia anterior, aceitara-a sem vacilar. De corpo, alma e coração. E amava-a. Sim, amava aquela mulher. Durante dez anos nunca deixara de a amar através dos Estados que percorrera. E lembrou-se de quanto se havia atormentado, ao longo de noites sem fim, com o rosto voltado para as estrelas, só porque pensava que ela pertencia já a outro homem. E, de repente, ao regressar, sem esperanças nem ilusões, encontrava-a sua em espírito e pronta a sê-lo também de corpo e alma. 

Era demasiado bom para ser verdade. 

E, não obstante, tratava-se de uma realidade de que não podia duvidar. Algum dia, talvez não muito distante, uns pequenos e travessos seres marcariam a sua descendência. 

E talvez, então, Tondeyaha lhe desse o seu perdão. 

Agitou a cabeça. 

Aquilo jamais sucederia. Conhecia bem o velho Tondeyaha para saber que nada faria abrandar a sua cólera. Nem o tempo nem os factos. 

Ao longe começaram a insinuar-se as colinas indicadas por Lamb. Não havia rasto algum de bisontes, mas no solo notavam-se pegadas de vários dias. Com um pouco de sorte, poderia deparar-se-lhe uma manada. 

Percorreu a zona consignada em todas as direções. Primeiro de Sul a Norte e depois de Este a Oeste. Não havia um só bisonte muitas milhas em redor. 

Então, «Shoshone» teve a impressão de que Lamb sabia isso quando o mandou para semelhante lugar. E começou a pensar que à volta de tudo aquilo havia mais qualquer coisa que ninguém lhe tinha dito. 


*


Foi o que se confirmou cinco horas depois. 

O sol estava no alto. «Shoshone» deteve o seu cavalo e desmontou à sombra de uns pinheiros que cresciam à beira da planura. Fazia um calor de cem mil infernos. «Shoshone» tirou o chapéu e começou a abanar-se com gesto cansado. 

Não havia uma única pegada recente em toda a zona que lhe fora indicada. As últimas datavam de pelo menos quinze dias. E «Shoshone» estava certo de que Lamb não desconhecia o facto quando o mandara para ali. Talvez procurasse ocultar-lhe qualquer coisa, antes que ele a descobrisse. 

Durante toda a manhã escutara disparos distantes. Eram de rifles pesados, dos utilizados por caçadores de búfalos. Se todos haviam acertado no alvo, os seus companheiros estavam a fazer um verdadeiro morticínio. 

Encolheu os ombros. 

Muito bem. Se alguma coisa lhe desagradasse, ninguém o impediria de partir em busca de melhores ares. 

De repente, um rumor de cascos obrigou-o a pôr-se tenso, num sobressalto. Nenhum dos seus companheiros andara perto. E aquela terra não era de Brady. Com toda a precaução, «Shoshone» ergueu-se, lançando mão do seu «44» do lado esquerdo. Engatilhou-o com um golpe seco... e quase no mesmo instante o cavaleiro surgiu na sua frente. 

Ficaram ambos uns instantes imóveis, contemplando--se, talvez tomados de mútuo assombro. 

O cavaleiro não devia esperar encontrar ali aquele índio com vestuário de homem branco e armado de dois impressionantes revólveres. E, do mesmo modo, «Shoshone» não imaginaria que se lhe deparasse um cavaleiro «assim». 

Não é que o homem tivesse alguma coisa de especial. Era alto, esbelto, de aspeto duro. Um cavaleiro da pradaria. Ancas estreitas, rosto afilado, olhos claros... Uma madeixa de cabelo loiro escapava-se-lhe sob o largo chapéu. Tinha-o bastante comprido, como quase todos os homens dos espaços abertos, ao ponto de lhe roçar a gola do vulgar casaco de couro negro que envergava. 

No entanto, aquele homem calçava mocassins índios e vestia calças de antílope amarelo. Tinha, evidentemente, um revólver do lado direito. E, no esquerdo, uma comprida faca «Bowie», metida numa bainha de indubitável procedência índia. No chapéu, uma pena. «Shoshone» conhecia aquela linguagem. Uma pena encarnada, partida em duas partes e com uma fita branca atada ao meio. Dez inimigos mortos em combate. 

O cavaleiro deteve-se a olhá-lo. E ao cabo de cinco largos segundos de observação, perguntou: 

— Que fazes aqui? 

Procedia sem rodeios. Ao estilo índio. E «Shoshone» gostou que fosse assim. 

— Descanso — respondeu francamente. 

O outro fez um gesto circular com a mão esquerda. 

— Este terreno é de Brady. Tens de te pôr a andar. 

Não parecia ser homem de excessivas palavras. De certo modo, parecia-se com um «shoshone» tanto quanto se podia parecer um homem branco. O que devia ser muito pouco, certamente. Mas aquele tinha um aspeto inconfundível de rasteador índio, e «Shoshone» reconheceu a força que emanava dele como um íman. 

—Lamb mandou-me caçar bisontes aqui. 

Viu como o outro franzia o sobrolho e desmontava. Bom sinal. Um índio nunca desmonta enquanto o animem intenções hostis. 

—Lamb? 

Tinha uma voz metálica, profunda. «Shoshone» assentiu com um leve movimento de cabeça. O outro estendeu--lhe a mão. 

—Chamo-me Lex Norman. Trabalho para Maxey Brady como guarda-costas e pistoleiro de confiança. 

— Sou «Shoshone». Fui contratado pelos do caminho de ferro como caçador. 

Lex fez um gesto com a cabeça. As suas pupilas claras denunciavam que estava pensativo. Mas nada disse referente aos bisontes. Indicou a indumentária do índio. 

—Porque te vestes assim? 

— Sou uma espécie de renegado índio. E tu, porque te apresentas assim? 

Sorriu. 

— Sou uma espécie de renegado branco. 

«Shoshone» acompanhou-o no sorriso e voltou a deixar-se cair no solo ressequido. Lex imitou-o, sentando-se a seu lado. 

Aquilo podia ser o princípio de uma grande amizade ou de uma rivalidade de morte. O futuro decidiria sobre isso. 

— Sabes alguma coisa acerca dos bisontes, Lex? 

O pistoleiro afirmou que sim com a cabeça. Extraiu a faca e entreteve-se a cortar em pedaços a haste solitária de um arbusto. Depois, disse: 

— Há perto de três semanas que não aparece nenhum por aqui. Surpreende-me que Lamb te mandasse para estes lados. A não ser... — e apertou os lábios. — Talvez não me surpreenda assim tanto, na verdade. 

-- Porquê? 

Lex não respondeu diretamente e «Shoshone» viu confirmada a sua crença de que por ali toda a gente tinha algo de importante a ocultar. Mas a resposta chegou, por fim: 

-- Será melhor que o verifiques por ti próprio. Passa logo por White Rock. Verás uma coisa interessante. 

— Que é isso de White Rock? 

— Um lugar que denominamos assim por causa de uma rocha branca que sobressai das outras. Acrescentarei que é a zona habitualmente escolhida pelo próprio Lamb e a sua camarilha de confiança. Verás ali coisas... muito saborosas. 

— Como, por exemplo? 

—É melhor que as vejas com os teus próprios olhos. Contado não tem graça... 

Se esperava intrigá-lo, aquilo não produziu efeito algum no impassível temperamento de Winstonak «Shoshone». O índio assentiu em silêncio e começou a fazer um cigarro. Então, estendeu a bolsa do tabaco a Lex. Este sorriu enquanto lhe pegava. 

— O cachimbo da paz? 

— Pode ser. 

Lex Norman enrolou distraidamente o seu cigarro e acendeu os dois com o mesmo fósforo. Como um rito. Depois, os dois olharam-se através das espirais de fumo que expeliram. 

— «Shoshone» ... 

— Quê? 

—Porque voltaste a esta terra? 

O índio semicerrou os seus olhos negros. Não sabia até que ponto Lex conhecia a sua história. 

— Contaram-te alguma coisa? 

— Nada. Mas disseste que és um renegado índio... e, não obstante, estás aqui. No próprio território de caça da tua tribo. 

«Shoshone» tão-pouco o explicava a si mesmo com clareza. Tinham-lhe oferecido aquele trabalho no troço entre Wells e Winnemuca. Era um terreno que conhecia bem e talvez por isso desejavam incluí-lo no seu quadro de pessoal. Mas o motivo por que aceitara continuava a ser um mistério. Talvez porque a raça e o sangue fossem mais forte do que julgara no decorrer daqueles dez anos. 

Encolheu os ombros. 

— Não sei — confessou sinceramente. — Não posso compreender. Qualquer coisa me chamava de aqui. Dei por isso quando me propuseram ser caçador profissional nesta parte da reserva. E aceitei. E só o que sei dizer. 

As suas palavras encerravam mais profundidade do que ele próprio teria podido imaginar. 

Lex sorriu. Os seus olhos claros tinham uma cor entre o cinzento e o verde, e inspiravam simpatia. Além disso, olhavam de frente. O que era uma credencial de lealdade e nobreza, que resultava em seu favor. 

— Isso acontece a muita gente. Por exemplo, eu não saberia viver longe deste lugar. 

«Shoshone» surpreendeu-se ao ouvi-lo dizer aquilo. 

— Porquê? 

Lex riu entre dentes. 

— Mentiria se te dissesse que amo a paisagem, a penedia e a sequidão que nos flagela todos os anos. Na realidade, cheguei aqui há uns seis ou sete anos, ferido. Perseguiam-me uns indivíduos nada simpáticos de que logrei desfazer-me depois de um bom tiroteio. Trataram--me e curaram-me na aldeia índia. A não ser assim, parece-me que teria morrido esvaído em sangue. Há uma rapariga... 

Deteve-se, como envergonhado de ter chegado tão longe nas suas confidências. «Shoshone» não disse nada. Limitava-se, simplesmente, escutá-lo. E respeitou o seu silêncio. Lex deu voltas à ponta do cigarro e acabou por esmagá-la numa pedra. E disse, de súbito: 

—Nalinle é a rapariga mais formosa da tribo. 

Nalinle! 

Os negros, cintilantes olhos do índio cravaram-se um momento no rosto do outro. E, subitamente, as suas mandíbulas apertaram-se. Aquela simples, singela e inocente palavra, valia por um mundo inteiro. E podia chegar a separá-los com mais eficácia que qualquer outro género de rivalidade. 

— Nalinle? 

— Talvez case com ela, se ela me quiser. 

Algo começava a crescer na mente e no coração do índio. Um presságio negro e tremendo. 

— Ela deu-te esperanças alguma vez? 

Lex olhou-o como se o surpreendesse muito aquela pergunta. Talvez nunca se tivesse detido a pensar naquilo. Era uma reação muito masculina. 

— Não — disse, por fim. — Agora que penso nisso, verifico que nunca me deu esperanças de nada. Não falámos sequer a tal respeito. 

O rosto de «Shoshone» relaxou-se. Lex não pôde compreender a causa disso. Pôs-se em pé e declarou: 

—Vou dar uma vista de olhos por White Rock. 

Lex Norman imitou-o e assobiou ao seu cavalo. O animal acudiu obedientemente. Enquanto colocava o pé no estribo, Lex voltou-se e disse: 

— Se te encontrares com a filha de Maxey Brady, não a leves muito a sério. 

— Sim? — houve uma cintilação de curiosidade nas pupilas de «Shoshone». 

— Porquê? 

— Sente um fraco pelos homens duros e misteriosos. Até logo. 

E partiu a galope, movendo-se harmoniosamente na sela e deixando atrás dos cascos da sua montada uma espessa nuvem de poeira. «Shoshone» sorriu em silêncio durante uns breves momentos. Seria um pequeno problema aquele de Lex e Nalinle. Mas esperava solucioná-lo com um pouco de boa vontade... por parte de Lex. 

Agradava-lhe aquele homem. O seu olhar franco e a firme decisão que emanava do seu rosto. E a segurança com que fizera o cigarro, sem quase mexer as mãos, denotando agilidade de dedos. Na hora de disparar devia ser um perigoso inimigo. 

Mordeu os lábios. Muito bem. Teria de dar uma volta por White Rock e ver aquilo de que Lex lhe falara. Talvez fosse interessante. 

Montou de um salto e esporeou o cavalo. Iniciou um trote lento, olhando com atenção as marcas que se desenhavam no solo. Nem um único bisonte passara por ali nos últimos dias. 

E Lamb devia sabê-lo. Para isso lá estavam os seus rasteadores. 

Localizado o rumo das manadas, competia ao capataz espalhar os seus homens pela respetiva zona, sempre aos pares. Uma galopada de bisontes é sempre perigosa para um só homem. «Shoshone» sabia-o, pois já executara esse mesmo trabalho noutras ocasiões. 

Por isso sabia também que nunca se manda um caçador sozinho, por muito bom rasteador que seja, nem se lhe distribui uma área onde não tenha havido vestígios de caça nas últimas duas ou três semanas. 

Muito bem. Veria o que se ocultava por detrás daquilo tudo. Ao longe, para além da cortina de colinas que delimitava o horizonte e marcava as possessões de Maxey Brady, erguia-se uma grande rocha branca. 

Aquilo era White Rock. No mesmo instante, o vento trouxe a «Shoshone» um aroma inconfundível, vindo daquele lado. E o índio compreendeu imediatamente a sua origem. 


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