terça-feira, 14 de junho de 2022

BRV013.08 Bala que silva é bala inofensiva. O ataque à aldeia ferroviária


Era de noite quando «Shoshone» e os seus dois prisioneiros chegaram ao acampamento ferroviário.

Mal se distinguiam, no meio da escuridão, dois candeeiros de petróleo pendurados à entrada das tendas. No «saloon» havia a algazarra do costume.

«Shoshone» levou para ali os dois caçadores e desmontou em frente da porta. Ninguém os vira chegar.

— Entrem, passarões.

Um deles murmurou, incrédulo ante a insólita ordem:

— Mas, se nos veem entrar assim...

— Pensarão que sois dois néscios por vos terdes deixado caçar. Vamos.

Acompanhou a ordem com um movimento agressivo. Os dois caçadores caminharam obedientemente para a porta e transpuseram-na com a alta figura do índio atrás deles. Avançavam uns metros.

«Shoshone» deixou-se ficar junto à porta. Não queria que ninguém o pudesse surpreender pelas costas.

Houve um momento de pausa. A pouco e pouco, as conversações foram cessando.

A medida que os homens viam os dois caçadores com as mãos na cabeça, iam-se calando e começavam a agitar-se nos seus lugares com um certo grau de inquietação.

E a inquietação aumentava ao verem a silenciosa figura de «Shoshone» junto da porta, com a aba do chapéu a traçar-lhe uma linha de sombra no meio do rosto. Somente parte do nariz, •a boca e a região maxilar se ofereciam perfeitamente visíveis.

O olhar ficava mergulhado na profundidade de um negro poço. E esse pormenor era de natureza a tornar mais ameaçadora ainda a sua atitude.

Por fim, o silêncio no interior do «saloon» desmontável tornou-se absoluto. Completo. Pesado como um carril de aço.

Lentamente, «Shoshone» disse:

— Quero falar com Geo Lamb. Se não se encontra aqui, alguém que o vá prevenir.

Quietude.

Silêncio.

Nada.

— Não me ouviram?

O mesmo silêncio.

Aquilo só podia significar uma coisa, e o índio sabia-o. Lamb estava ali e todos esperavam que fosse ele próprio a responder. Mas acontecia que Lamb não tinha vontade de o fazer, ao que os factos demonstravam. Com os braços cruzados sobre o peito, «Shoshone» recostou-se na parede, ao lado da porta. E continuou:

— Pelo que vejo, esse pistoleiro do diabo só é valente quando tem meia dúzia de cães atrás de si para o protegerem. Não se atreve a aparecer para conversarmos amigavelmente.

Deu no alvo. Sabia muito bem como tratar com gente daquela laia. Um pistoleiro nunca consente que alguém o apode de cobarde em público. E muito menos quando esse alguém é considerado inferior em raça, posição ou prestígio.

Furioso, Geo Lamb emergiu da clareira que os trabalhadores abriram à sua volta e avançou alguns passos.

— Que bicho te mordeu agora, maldito renegado? E porque trouxeste os meus caçadores assim, desarmados, com as mãos sobre a cabeça?

O índio continuava tranquilamente na mesma posição, apoiado na parede. Com a maior singeleza, mas com um ameaçador acento metálico, disse:

— Estavam a matar bisontes perto de White Rock.

Um silêncio ainda mais denso dominou quantos se encontravam presentes. Nas mentes dos trabalhadores desenhou-se subitamente a imagem de Tondeyaha, com o seu hermético rosto animado pela ira. E as suas palavras, claras como a água e o sol, repercutiram na memória de todos: «Um só bisonte que mateis sem necessidade, e atacarei.»

Duas dezenas de olhares se cravaram em Lamb com hostilidade.

«Shoshone» sabia que tinha os operários do seu lado. Mas, na hora de lutar, nenhum deles poderia ajudá-lo. Não eram homens para manejar um revólver.

Retesou-se ligeiramente. A atitude de Lamb era hostil. Pressentia-se que tinha vontade de empunhar o revólver e começar aos tiros.

«Shoshone» vislumbrou dois dos seus homens de confiança à esquerda do capataz. Quanto aos dois caçadores que aprisionara, tinham-se colocado à sua direita. Muito bem. De qualquer modo, seguiria em frente.

Lamb proferiu:

— Estás a mentir, cachorro índio!

— Sabes muito bem que não, Geo Lamb — tratava-o já de igual para igual.

Sabia que não lhe permitiriam continuar a trabalhar para eles. Por outro lado, também não estava disposto a isso, mesmo que lhe oferecessem metade dos benefícios na indemnização governamental.

— Tu queres que os «shoshones» se retirem destas terras para que não recebam a indemnização que o governo lhes deverá entregar pela expropriação a favor do caminho de ferro. Não sei como demónio te arranjarás para cobrar esse dinheiro, mas sei que te preparas para isso. Ou, melhor, que se prepara a pessoa que está por cima de ti e a quem tu obedeces. Quem é? Sharp?

Geo Lamb tornara-se pálido. Apertou os dentes.

— Não dizes mais do que um chorrilho de asneiras sem pés nem cabeça.

Mas nos rostos de quem o rodeava leu que acreditavam em «Shoshone». E enfureceu-se. Aquele bem urdido plano, de que beneficiariam uns tantos, ameaçava ir por água abaixo por culpa do maldito índio renegado que tinha na sua frente.

«Shoshone» disse calmamente:

— Vamos, Lamb. Será melhor que digas tudo. Sabes muito bem que te ganho em rapidez sobre o revólver... e que posso matar-te antes que os teus homens me matem a mim. Seduz-te a ideia de seres enterrado com todas as honras e que o teu desconhecido chefe pronuncie uma bonita oração fúnebre por ti? Vamos! É Sharp esse cérebro diretivo?

Nas costas de «Shoshone», uma voz fria disse lentamente:

— E se fosse, renegado?

«Shoshone» compreendeu imediatamente que se metera numa ratoeira e os seus reflexos atuaram a cala-filante velocidade.

Girou como uma centelha, com o revólver empunhado, disparando quase imediatamente. Gerald Sharp recebeu o chumbo a meio do estômago, já que o índio levantara o seu «44» apenas o indispensável para fazer fogo. Quase à queima-roupa, a bala era, forçosamente, mortal.

Sem se preocupar mais com aquele homem, «Shoshone» lançou-se porta fora, perseguido pelos furiosos disparos de Lamb e dos seus quatro pistoleiros de confiança. Os dois que ele conduzira ali e os dois que se encontravam já no «saloon».

A luz que se filtrava através da porta projetava um retângulo luminoso no solo poeirento.

Antes que «Shoshone» pudesse mergulhar plenamente nas trevas, meia dúzia de projéteis procuraram deliberadamente o seu corpo. E dois, pelo menos, acertaram-lhe.

Deteve-se, por fim, com os dois «44» empunhados. Um dos pistoleiros transpôs igualmente a porta para melhor poder localizá-lo. Mas foi «Shoshone» quem o localizou a ele. Fez fogo duas vezes e o homem dobrou-se com um gemido, largando a arma.

Imediatamente, o índio rodou sobre si mesmo e afastou-se daquela zona. Fê-lo a tempo. Novos balázios crivaram o local onde se encontrava anteriormente, revelado pelos breves fogachos do seu revólver.

Esperou, ofegante, agachado na escuridão. Sentia uma dor no ombro e na região lombar esquerda. Não pareciam ser graves os ferimentos. Pelo menos, resistia-lhes sem dificuldade.

Houve uns instantes de pausa.

Silêncio total.

Ninguém parecia respirar no interior do acampamento. Como se não houvesse ninguém além dele e dos pistoleiros que procuravam dar-lhe caça. Ou talvez todos se tivessem afastado e escondido, a fim de evitarem possíveis balas perdidas. Dava gosto trabalhar para gente tão agradecida.

Depois daquele momento de tréguas, um novo pistoleiro saiu disparado pela porta do «saloon».

«Shoshone» esperou pacientemente que ele se pusesse em condições ideais de tiro. Mas aquela «paciente espera» foi apenas de alguns escassos décimos de segundo. Então, apertou o gatilho. Ótimo.

Mas restavam ainda Lamb e os outros. «Shoshone» começou a arrastar-se lentamente para a saída do acampamento. Compreendia que fizera uma tolice de primeira apanha. Devia ter consentido que Lex o acompanhasse. Ou, então, não se ter metido naquela ratoeira. Mas desejava demonstrar aos seus que continuava a ser um «shoshone».

A verdade é que, se se descuidava, iriam matá-lo sem quaisquer contemplações. Talvez o tivesse feito também por Nalinle. Porque desejava para ela qualquer coisa melhor do que lhe podia oferecer um renegado índio. Porque desejava que ela fosse feliz, sem necessidade de se converter também numa renegada.

Chegou ao local onde deixara o seu cavalo. O animal estava mergulhado na sombra, tranquilamente. Os disparos não o tinham alterado. Começou a erguer-se lentamente. A ferida do lado esquerdo produzia-lhe uma aguda e dolorosa picada, más continuou com o seu movimento.

Nesse instante, a voz de Lamb rompeu o silêncio que pairava sobre o acampamento. Seca como uma chicotada. Vingativa.

— Esse renegado matou Sharp! Não o deixem sair vivo do acampamento! É um assassino!

De um salto, «Shoshone» subiu para o cavalo e esporeou-o com um grito:

—Uah!

Ouviram-no, evidentemente. E, no mesmo preciso momento, meia dúzia de novos disparos sulcaram ferozmente o espaço à sua volta. «Shoshone» ouviu-os zumbir junto aos ouvidos. Mas não se preocupou. Bala que silva é bala inofensiva. As piores são as que não se ouvem, pois são, precisamente, as que dão no alvo.

Lançou-se para a saída do acampamento. Teria de encontrar uma prova suficientemente sólida para terminar definitivamente com aquilo. Não lhe bastava matar os culpados. A seguir pedir-lhe-iam contas dos seus actos. Era indispensável uma prova que demonstrasse a sua razão e que tribunal algum pudesse impugnar.

Apertou os dentes.

Um cavaleiro surgiu na sua frente. Era uma das sentinelas do acampamento. Fiel a Lamb, ao que parecia. Porque lhe apontava um rifle sem a menor hesitação.

— Alto!

«Shoshone» não estava disposto a deter-se nem a dar género algum de explicações, fosse a quem fosse. Nem mesmo ao próprio diretor-geral da «Southern Pacific».

Extraiu o revólver do lado direito e disparou duas vezes. O homem não voltou a incomodá-lo, todo entregue à tarefa de morrer.

Saiu, por fim, do círculo formado pelo conjunto de tendas e barracões, e começou a cavalgar na noite. Nas suas costas ouvia os gritos de Lamb.

— Vamos, persigam-no! Dez dólares a quem o apanhe!

Dez dólares!

Lamb não se portava muito generosamente com os seus pistoleiros a soldo. Devia saber que a pele de um índio renegado tem uma maior cotação. Um índio renegado é sempre muito mais difícil de caçar do que um índio corrente. As suas qualidades de lobo solitário desenvolveram-se ao máximo e pressente o inimigo mesmo onde ele não se encontra.

Um novo cavaleiro surgiu entre as sombras. «Shoshone» engatilhou novamente o revólver, enquadrando a sua figura no ponto de mira da arma. Mas a voz de Lex Norman fez-se ouvir na obscuridade:

— Cuidado com o que fazes, «Shoshone». Sou eu.

O índio sentiu um consolador alívio ao escutar aquela voz galhofeira, na qual, não obstante, vibrava um tom de inquietação por ele. Baixou o «44» e ficou-se a contemplar a negra silhueta do homem que vinha ao seu encontro.

— Podias ter-me avisado de que estavas disposto a seguir-me.

— Para quê? Para que me proibisses de o fazer?

Tinha razão. Lex, não obstante as suas recentíssimas relações, já o conhecia bem. Na verdade, dois dias podem ser suficientes para que dois homens se conheçam até aos mais ínfimos pormenores, sem necessidade de excessiva convivência. Especialmente dois homens como aqueles, com tantas coisas em comum. As suficientes para serem amigos até à morte ou para se odiarem também até à morte.

Lex Norman agarrou nas rédeas do cavalo de «Shoshone».

— Estás ferido?

— Sim.

— Conheço um sítio onde ninguém te procurará.

Do acampamento continuavam a chegar vozes exaltadas. Alguns homens partiam já com os cavalos selados. Lex olhou na direção da aldeia ferroviária por alguns momentos. Os suficientes para verificar que podiam ser encontrados em poucos segundos se persistissem naquela imobilidade.

— Vamo-nos — disse.

E arrastou «Shoshone», levando-o dali. Em breve desapareciam sem deixar vestígios na densa espessura das trevas. Atrás deles ficavam os gritos frenéticos de Geo Lamb, três cadáveres e um punhado de homens armados, em perseguição de uma sombra.

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