sexta-feira, 10 de junho de 2022

BRV013.04 Chacina de bisontes / proveitos ilegítimos


Geo Lamb empinou-se sobre os estribos, contemplando o horizonte com atenção. Os seus homens estavam a realizar um bom trabalho na zona marcada para aquele dia.

Sorriu, enquanto extraia um cigarro do bolso da camisa e o acendia.

Gerald Sharp' podia estar satisfeito. Tudo caminhava sobre rodízios. Nem mesmo a presença daquele novo caçador, esse tal «Shoshone», impediria o termo feliz da operação. Apesar de tudo, não conseguia compreender a razão por que Gerald Sharp contratara aquele maldito índio. Não fazia falta alguma. Ou talvez fizesse, embora o motivo lhe escapasse. Teria de pedir a Sharp uma explicação a tal respeito.

Um dos caçadores aproximou-se do capataz.

— Cem tiros e quarenta e sete peças abatidas, Lamb. Levamo-las para White Rock?

— Sim.

Quarenta e sete bisontes a menos. Era uma boa notícia. Aquela maldita tribo dos «shoshones» teria de procurar outras paragens dentro de muito pouco tempo se queria encontrar caça suficiente. E então, não teriam de pagar a ninguém a indemnização que a companhia ferroviária estabelecera para os donos das terras expropriadas.

Seria um bom negócio, desde que a companhia o ignorasse. E Sharp já tomara as suas precauções com respeito a isso.

Duas horas mais tarde, depois de os seus homens terem arrastado os bisontes mortos para os terrenos de White Rock, Lamb deu a ordem de regressar. Empreenderam o caminho em silêncio, cansados daquele sol que os queimava impiedosamente. Fazia muito calor e a poeira metia-se-lhes na garganta.

Quando o acampamento apareceu ã vista, afigurou-se a todos eles o lugar mais encantador da terra.

Lamb desmontou em frente do seu barracão. Sorriu ao ver o letreiro por cima da respetiva porta.

«Búfalo Lamb».

Não era ainda tão famoso como Búfalo Bill. mas, em contrapartida, esperava ser rico mais cedo do que ele. Búfalo Bill era um homem honesto. Um simples homem honesto que cobrava um soldo miserável para fazer o mesmo trabalho que eles, matando bisontes para alimentar os trabalhadores do caminho de ferro.

Mas ele não se limitaria a matar bisontes. Sharp era ambicioso e tinha projetos. Com o dinheiro conseguido nesse plano das terras, poderia ir para qualquer sítio e explorar um negócio. Um «saloon» ou coisa parecida, onde pudessem depenar os incautos com a maior facilidade do mundo.

Empurrou a porta e deteve-se.

«Shoshone» estava ali.

E não somente estava, como o brilho dos seus olhos de antracite lhe produziu um violento calafrio. Como se um medo invencível se transmitisse daquele olhar.

— Entre e feche a porta, Lamb. Ou tenciona ficar aí especado?

Havia uma ponta de insolência naquela voz. De frieza também. Talvez até de ameaça.

Lamb entrou e fechou a porta atrás de si. Coisa estranha. Nunca fazia caso do que lhe ordenavam, desde que não fosse Sharp a ordenar. Mas o tom de «Shoshone» não admitia réplicas nem escusas.

— Porque regressaste tão cedo?

«Shoshone» não parecia ter pressa alguma de responder. Começou a fazer um dos seus eternos cigarros e, depois acendeu-o. Calmamente. Depois, disse devagar:

— Não havia caça alguma por ali. Nem mesmo lagartixas. Desse modo, resolvi voltar em busca de novas ordens.

Era uma atitude bastante lógica, apreciada com calma. Mas a Lamb não agradou a entoação das palavras do índio, talvez porque ele mesmo tivesse adotado idêntica atitude em muitas outras ocasiões. E, porque se lembrasse do seu grau de autoridade ali, empertigou-se e ordenou:

— Levanta-te, «Shoshone».

— Estou muito bem sentado.

— É uma falta de respeito.

O índio limitou-se a encolher os ombros. Com uma expressão trocista, que teria feito soltar uma gargalhada a qualquer que não fosse Geo Lamb. Porque este começava a pôr-se nervoso, prestes a estalar de fúria. E «Shoshone» disse:

— Sente-se você e nivelaremos amigavelmente as diferenças sociais. Não lhe agrado porque sou índio?

— Não me agradas por seres precisamente um «shoshone».

— Pois a mim agrada-me que seja tão sincero. Só não me agrada que mate demasiados bisontes.

Foi perfeitamente visível o colérico estremecimento sofrido por Lamb. Inclinou-se ligeiramente para a frente, com a boca crispada e os olhos convertidos em duas diminutas cabeças de alfinete.

— Repete isso.

— Você mata demasiados bisontes e não me agrada por esse motivo.

O capataz de caçadores abriu a boca. Parecia assombrado com o facto de «Shoshone» haver tido a desfaçatez suficiente para repetir a frase. Por muito menos, já Lamb matara uns quantos. Inclinou-se mais ainda para o índio, agarrando-o pela camisa axadrezada. Das suas pupilas parecia brotar a morte.

— Maldito cachorro índio! Juro-te que...

Lamb nunca chegou a saber como as coisas sucederam.

De súbito, toda aquela calma de «Shoshone» desapareceu como por encanto. Houve um leve, um levíssimo movimento por parte do índio. Lamb foi despedido para trás com força tremenda e acabou por ir chocar com a parede, cravando as costas nos toros de madeira.

O capataz soltou intraduzível imprecação, aprendida sabia Deus onde, e em seguida exclamou:

— Vais morrer por causa disto!

«Shoshone» começou a rir. Não era um riso vulgar, mas sim de pôr os cabelos em pé. Ria através dos dentes apertados, enquanto apontava a Lamb o seu «44» do lado direito.

— Calma, Lamb, muita calma. Acho que temos ainda muito que conversar. Porque não se senta?

— Vou-te ma...

— Por agora, não me irá fazer coisa alguma. Vamos, sente-se. Temos de conversar um bocado sobre... White Rock, por exemplo.

Volteou habilmente o revólver e guardou-o. Geo Lamb ficou a olhá-lo com certo respeito. Ainda não acabara de compreender como aquele maldito índio conseguira atirá-lo contra a parede de uma forma tão simples na aparência. O que podia desde já reconhecer é que era um homem extraordinário.

Haveria que o tratar, portanto, como um homem extraordinário e não como um índio desprezível.

Sorriu.

Como se mordiscasse o espaço. Foi um sorriso acre.

— Muito bem, «Shoshone». Mas a tua boa sorte não te irá durar muito tempo.

E deixou-se cair numa cadeira, a prudente distância. «Shoshone» começou a balancear-se tranquilamente no seu assento. Sem, no entanto, perder de vista o seu inimigo.

— Porque matam os bisontes em manada, Lamb?

O capataz mordeu os lábios.

— Não é coisa que te diga respeito!

— Eu acho que sim, Lamb. Sou um «shoshone».

— És um renegado! — disse o outro com desprezo. — Julgas que não estamos ao facto disso? Um maldito renegado índio, tal como esse pistoleiro de Brady, Lex Norman, é um maldito renegado branco. A pior raça que pode existir à superfície da terra.

— Engana-se, Lamb.

— Deveras?

«Shoshone» apertou os dentes. Aquele capataz do inferno continuava a desagradar-lhe cada vez mais.

— A pior raça que existe é a dos homens da sua laia. Melhor dizendo, dos vermes como você.

O insulto era demasiadamente direto para não provocar uma reação. Mas aquele não era o dia de sorte de Geo Lamb. Afogando entre os dentes uma nova imprecação, endireitou ligeiramente o corpo ao mesmo tempo que levava a mão ao revólver.

Tarde.

«Shoshone» já tinha outra vez na mão direita o seu. «44». E sorria por cima do ponto de mira. Sombriamente. Como se aquele simples gesto lhe custasse um mundo de esforço.

— Vamos, não seja imprudente, Lamb. Seria uma pena que se suicidasse tão jovem.

Aquilo significava que dispararia a matar se o outro lhe desse ocasião disso. E Geo Lamb não tinha vontade de morrer ainda. Cada coisa na sua hora. De maneira que abandonou o gesto e relaxou-se na cadeira. Com as mandíbulas fortemente apertadas, disse:

— Arrepender-te-ás, «Shoshone». Se tiveres tempo para isso. Nunca ninguém se atreveu a ameaçar-me e ficou vivo para o contar.

-- Claro. Os seus guarda-costas encarregam-se de os liquidar.

Lamb enfureceu-se.

— Não preciso de guarda-costas.

— Ninguém o diria. Para que serve a sua camarilha? Essa com que se dedica a matar bisontes sem conta nem medida?

— Se continuas a dizer baboseiras, acabarei por...

— O quê?

Lamb interrompeu o movimento de avançar para «Shoshone». Não porque o índio o ameaçasse novamente com o revólver. «Shoshone» não se movera meia polegada sequer. Mas a centelha que surgiu no negrume dos seus olhos foi suficiente para fazer sentir a Lamb que ele o poderia matar comodamente, apesar de tudo. Apesar de ser o capataz do pessoal de caça e tê-lo sob as suas ordens. Um índio «shoshone» nunca reconhece outra autoridade que a do seu chefe de tribo. E aquele índio nem sequer essa reconhecia. Era um renegado. Podia fazer o que tivesse na vontade sem prestar contas a ninguém.

Geo Lamb continuava sem perceber o motivo que levara Sharp a contratá-lo. Talvez necessitasse de um bom conhecedor da região. Um rasteador de bisontes que os levasse junto das grandes manadas, a fim de as aniquilarem melhor. Mas aquele índio estava a converter-se num perigo. Um perigo bastante de considerar. Recostou-se pela segunda vez na cadeira. Havia uma expressão quase de medo nas pupilas incolores do pistoleiro a soldo. Proferiu:

— Matar-te-ei, «Shoshone». Tarde ou cedo, morrerás às minhas mãos.

— É a segunda vez que o diz. Mas não importa. Não poderá matar-me duas vezes. Nem uma, tão-pouco. Tal- vez lhe caiba a si encontrar-se com uma bala fatal.

Parecia muito seguro de si mesmo. Demasiado, para o orgulho de Lamb. Mas o capataz compreendia ser preciso tragar o orgulho nalgumas ocasiões. E aquela era uma delas.

— Perfeitamente, «Shoshone». Teremos ocasião de demonstrar qual dos dois fanfarronou.

— Parece-me muito bem. Que tal, se falássemos agora no que nos interessa?

— Não temos quaisquer interesses em comum.

— Pelo contrário. Temos o caso de White Rock. Já não se recorda?

— Não há nada em White Rock que possa interessar a um renegado como tu.

— Há bisontes mortos. E isso prejudica o meu povo.

— Tu não tens povo. Os «shoshones» não o são. Os brancos também não. És um estranho para qualquer parte que te voltes.

Era uma amarga verdade. Mas «Shoshone» manteve o rosto impassível e não respondeu àquela mordente frase. Prosseguiu no rumo iniciado:

— Há uma coisa que lhe quero dizer com respeito White Rock, Lamb.

— Deveras?

— Sim.

Não parecia ter pressa em dizê-lo. Mas no fundo dos seus olhos um perigoso brilho presidia à expressão do seu rosto cobreado. E Geo Lamb agitou-se inquieto na cadeira. Sabia muito bem que um índio pode amar e odiar sem bulir um único músculo da cara. E que nem sequer quando mata altera a impassibilidade do seu gesto.

«Shoshone» disse, de súbito:

— Não volte a levar bisontes mortos para White Rock. De contrário, matá-lo-ei.

O capataz sentiu um frio na espinha. Mas disse com voz tensa:

— Não encontrarás um motivo suficientemente forte para me provocares.

— Dois pistoleiros encontram sempre motivos para recorrer às armas. E, agora, vou-me embora.

Não se lembre de disparar à traição. Também tenho olhos nas costas. Levantou-se calmamente, encaminhando-se para a porta. No olhar de Geo Lamb brilhava uma cintilação de morte, e «Shoshone» viu-a. Mas voltou-lhe deliberadamente as costas... para girar imediatamente sobre os calcanhares com a velocidade de um raio. E com os dois revólveres empunhados. Riu. Selvática, seca, cruelmente. Lamb deixou em meio a operação de extrair o revólver, com a pouca leal intenção de disparar sobre as costas do índio. Aqueles olhos negros como antracite eram dois poços sem expressão quando se fixaram nele.

— Não lhe tinha dito que não fizesse isso?

Foi quase uma magoada censura na voz sombria do índio, que lhe voltou novamente as costas com desprezo, ao mesmo tempo que fazia regressar os dois «44» aos seus respetivos coldres.

Geo Lamb quedou-se a imaginar planos de vingança, contra aquele homem que, por duas vezes, no curto espaço daquela entrevista, lhe havia ganho em rapidez a sacar as armas. «Vives continuamente só, índio renegado. Morrerás só.»

 

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