terça-feira, 7 de junho de 2022

BRV013.01 Nalinle, dez anos depois


— Posso entrar, senhor Sharp? 

— Entre, «Shoshone». 

A elevada figura do índio entrou no gabinete e fechou a porta atrás de si. 

— Olá. 

— Olá, «Shoshone». 

Era um indivíduo de raça pura. Um índio alto e desenvolto, de ombros largos e ancas estreitas... vestindo como um branco. E com dois revólveres impressionantes abaixo da cintura. 

— Atrasei-me? 

Gerald Sharp sorriu, enquanto movia a cabeça de um lado para o outro. 

— De maneira alguma, «Shoshone». Foste muito pontual. Mais do que eu pensava. Não queres sentar-te e fumar um cigarro? 

Indicava-lhe uma cadeira, oferecendo-lhe a bolsa do tabaco. O índio aceitou as duas coisas e fez um cigarro em silêncio, com mãos hábeis. Gerald Sharp contemplava-o. Winstonah «Shoshone» era o índio mais estranho que jamais encontrara. Ao cabo de alguns instantes, proferiu: 

— Espero que não te importes de trabalhar aqui, nas terras da tua tribo.

Nos olhos do índio transpareceu uma estranha expressão que o outro não pôde compreender. Então, «Shoshone» respondeu, dizendo simplesmente: 

—Não. 

Era homem de poucas palavras. Como todos os da sua raça. Mas, quanto a efeitos, Gerald Sharp ouvira contar muita coisa dele e, daqueles dois «Colts» de calibre quarenta e quatro, que lhe pendiam dos dois lados do corpo, balanceando-se muito baixo e com as extremidades dos coldres atadas quase sobre os joelhos. 

— Calculo que estejas a par de quanto se refere ao caminho de ferro... 

«Shoshone» assentiu com um ligeiro movimento de cabeça. 

Sharp continuou: 

— Precisamos de carne de búfalo para o pessoal. E disseram-me que eras um bom rasteador. Vai ser esse o teu trabalho. 

«Shoshone» concordou em silêncio. Talvez Sharp esperasse que ele perguntasse mais qualquer coisa. Quase todos o faziam. Número de companheiros destacados para o mesmo trabalho, condições, horário... Mas Winstonah «Shoshone» era um índio de boa raça. E nenhum índio pergunta o que não lhe interesse realmente. Embora os tivesse tão próximo do acampamento operário, Sharp não se tinha incomodado em indagar sobre a sua vida e costumes. E agora surpreendia-se com o absoluto mutismo do homem que tinha na sua frente. 

Proferiu: 

— Não me perguntas nada? 

— Para quê? 

Sharp abriu a boca. Murmurou: 

—Homem! Pelo menos deves estar interessado em saber o que vou pagar-te. 

No rosto hermético, impassível de «Shoshone», pareceu marcar-se durante um único segundo qualquer coisa que podia tomar-se como a sombra de um sorriso. Depois, respondeu: 

— Dois dólares por cabeça. Já mo tinham dito. 

E voltou à tranquilidade anterior. 

Gerald Sharp encolheu os ombros. Teria de acostumar-se ao laconismo daquele homem. Ao seu eficiente silêncio. Tinha boas informações acerca de «Shoshone». Trabalhara nos. «ranchos» de Nevada e Utah com resultados satisfatórios. Era um bom vaqueiro. E, o que não deixava de ser igualmente estranho, é que era um bom vaqueiro e, ao mesmo tempo, um bom pistoleiro. 

Regra geral, eram aspetos que colidiam. O homem que maneja o laço durante todo o dia, tem as palmas das mãos calosas. E essas calosidades impedem-no de extrair o revólver à velocidade necessária para ser um bom pistoleiro. Mas «Shoshone» era um homem fora-de-série em todos os aspetos e conceitos, e Gerald Sharp tardaria em averiguá-lo completamente. 

— Dois dólares por cabeça. Informaram-te bem. 

«Shoshone» esmagou o cigarro no cinzeiro de porcelana que Sharp tinha em cima da mesa que lhe servia de secretária. Tudo era provisório naquele acampamento ferroviário. Desde as edificações de madeira às tendas de lona do pessoal. Desde o céu à terra. Tudo dava a impressão de não estar ali por muito tempo. 

Nem mesmo os índios. 

«Shoshone» baixou a cabeça em sinal de completo acordo e levantou-se. Era muito alto. Mais alto que qualquer indivíduo da sua raça. Talvez um metro e noventa centímetros. Ou um pouco mais. Era um «shoshone» realmente alto. 

Por alguns instantes, Sharp sentiu curiosidade de saber mais alguma coisa daquele homem hermético. Daquele pistoleiro de pele cobreada que se erguia agora diante de si. 

Perguntou: 

— Porque deixaste os teus, «Shoshone»? Índio algum costuma abandonar a sua reserva, a não ser que seja um renegado. 

Nas feições de «Shoshone» não se verificou a mínima alteração. Mas houve no fundo das suas negras pupilas como uma leve, amarga centelha. E Sharp compreendeu que abordara um tema proibido. 

Arrepiou caminho, observando: 

— Seja como for, não é indispensável que respondas. Não costumamos inquirir sobre o passado dos nossos homens. Vai dar uma volta por aí. Amanhã começarás o teu trabalho. Geo Lamb, o capataz dos caçadores, dar-te-á instruções precisas. 

«Shoshone» assentiu, sempre em silêncio. Parecia desejar que fosse o outro a dizer tudo. Por fim, levou as pontas dos dedos à aba do chapéu e saiu, sem acrescentar mais qualquer sílaba ao seu laconismo. 

Gerald Sharp quedou-se por uns instantes com os olhos fixos na porta por onde o índio desaparecera. 

«És um homem muito estranho», disse de si para si. Dentro de pouco tempo diria que ele era um homem terrível. 


*


O sol estendia os seus raios intensos sobre Wells. Aquela região de Nevada era território índio. Mas o traçado do caminho de ferro atravessava a zona e os «shoshones» tinham feito um acordo com e engenheiro Sharp. Consentiriam que o caminho de ferro penetrasse nas suas terras, desde que os caçadores da «Southern Pacific» não matassem mais búfalos do que os necessários para a alimentação do seu pessoal. 

«Shoshone» deteve-se na porta do barracão que servia de escritório. Os seus olhos escuros caíram sobre o acampamento, com certa mistura de nostalgia e ódio contido. Um acampamento diferente, umas tendas diferentes que pareciam flutuar ante a sua vista.

«Nalinle». 

Era um passado já bastante distanciado. Não obstante, voltava a pisar a terra que lhe fora negada pelos seus. 

Começou a caminhar lentamente com os polegares metidos no cinturão-cartucheira. O sol era um disco de fogo no céu azul. Deitou o chapéu para os olhos. Alguns homens voltaram-se, ao vê-lo passar. Era um tipo bastante diferente do de todos os caçadores Contratados por Sharp até àquele momento. Houve uma certa inquietação num dos grupos quando o índio se lhe dirigiu. 

— Onde posso encontrar Geo Lamb? 

Um olhar às suas negras pupilas, ao seu rosto aquilino. Alguém disse, por fim: 

— Ali. 

Apontava para outro barracão sobre cuja porta havia uma tabuleta onde se lia:


BUFALO LAMB 


«Shoshone» agradeceu com um silencioso movimento de cabeça e continuou a andar, sentindo nas suas costas os olhares do grupo. De qualquer modo, contava com aquilo desde que Sharp o contratara. 

Chegou à porta do barracão. Bateu com os nós dos dedos e esperou. 

— Entre. 

Entrou. 

Geo Lamb era um indivíduo de olhos incolores, cabelo incolor e rosto incolor. Parecia nunca se haver exposto ao sol. E tinha umas mãos compridas, magras e cuidadas como as de uma mulher. A «Shoshone» o homem não lhe agradou nem muito nem pouco. Tresandava a pistoleiro a considerável distância. A pistoleiro profissional, desses que só não matam por menos de cem dólares. 

Mas anunciou-se: 

— Sou «Shoshone». Sharpe contratou-me. 

Os frios olhos de Lamb observaram-no silenciosamente. Viu um rosto cobreado, uns olhos muito negros, um cabelo mais preto ainda, escapando-se por debaixo do chapéu. «Shoshone» era índio dos pés à cabeça. E para o demonstrar, não cortara o cabelo. Usava-o em tranças que lhe caíam aos lados do rosto, como os guerreiros da sua tribo. Todavia, tal pormenor não prejudicava em nada a virilidade da sua aparência e, em contrapartida, acrescentava um ar selvático à sua já de si selvagem presença.

Para cúmulo, ostentava numa das tranças uma pena azul atada com uma estreita fita encarnada. Em linguagem «shoshone», significava quinze inimigos mortos em combate. Uma boa marca para um pistoleiro índio. 

Lamb assinalou a pena e disse com ironia. 

— Mataste-os com o «tomahawk»? 

«Shoshone» não alterou a sua atitude. Mas antes que Lamb pudesse pestanejar sequer, viu-se alvejado pelo «44» do lado direito do índio. E ouviu a sua voz fria proferir: 

—Com isto. Mais alguma pergunta? 

Nada havia a objetar àquela tremenda demonstração de rapidez. Lamb teve de reconhecer que se enganara com aquele tipo. Parecia perigoso e era-o. Se possuía tanta pontaria como rapidez, todos os caçadores ao seu serviço podiam despedir-se dos seus prémios especiais por número de animais mortos. 

— Nenhuma, por agora. Começarás amanhã. Ao nascer do sol, dar-te-ei as instruções. Espero que sejas um bom rasteador, hem? 

Era uma pergunta tola. Todo índio é um excelente rasteador. É congénito neles. 

«Shoshone» não respondeu. Lamb semicerrou os olhos e sorriu. Foi um sorriso especial. Como o de uma hiena à espreita. 

— Nesse caso, não precisarás de companhia para caçar. Indicar-te-ei uma zona só para ti. Quase todos os meus caçadores precisam de um rasteador para encontrar as presas. n uma sorte que tu sejas índio. 

A «shoshone» também não agradou a voz daquele homem. Nem a sua expressão — se é que havia alguma expressão no seu rosto — ao proferir aquelas palavras. Puxou o chapéu para a frente. Uma linha de sombra dividiu-lhe as feições ao meio. 

— Mais nada? 

— Mais nada. Espero que sejas pontual amanhã. 

— Claro. 

Saiu, fazendo balancear os seus dois «44». No exterior, os olhares continuaram a segui-lo com curiosidade. Ouviu alguns comentários. 

— Não era indispensável que Sharp contratasse esse selvagem. 

— Mal nos descuidemos, arrancar-nos-á a cabeleira. 

O índio quase sorriu. De qualquer modo, não estava interessado em tirá-los do seu engano. Cada um que ficasse com as suas próprias ideias. 

Assobiou ao seu cavalo. Um magnífico alazão negro, de patas nervosas e cabeça esguia. Um animal por cuja posse qualquer índio teria jogado a vida. 

Olhou ao longe. 

O sol continuava a ser um disco de fogo sobre a planura. Pensou nos milhares de vezes que contemplara aquela paisagem, aquele sol, aquela terra. E estremeceu. 

«Nalinle». 

Provavelmente, ela estaria já casada. Uma mulher índia tem de aceitar o marido que seu pai lhe imponha. E Nalinle era uma mulher índia. Uma mulher «shoshone», embora fosse tão bela que quase não o parecia. 

Ergueu os ombros. 

Velho, amargo e sepultado passado. Já não era Winstonah. Apenas um pistoleiro índio a quem chamavam pelo nome da sua tribo. De uma tribo que o tinha repelido. 

Montou lentamente. 

Usava uma sela mexicana negra, com adornos de prata. Um dos seus numerosos troféus. Ganhara-o a um pistoleiro chamado Martinez, que tivera a desfaçatez de se julgar superior a ele. Mas a coisa saíra-lhe mal. E a sua sela de montar, único objeto que verdadeiramente interessou a «Shoshone», passou à sua posse. O resto ficou com o cadáver. Apesar de tudo, e embora não lhe fizesses falta, «Shoshone» estava certo de que Martinez gostou de ser enterrado com o seu revólver. 

Esporeou a montada e lançou-se a trote para a saída do acampamento. 

Sol. 

Céu. 

Terra parda e vigas de aço até ao limite do horizonte. 

Sobre uma lomba deteve-se a contemplar o que via: O acampamento dos trabalhadores da via, composto de tendas de lona branca que o sol e a poeira acabaram por tornar de cor indefinida. Os barracões dos escritórios, que podiam montar-se e desmontar-se num só dia. A maquinaria. Os vagões já carrilados, que esperavam o dia seguinte para avançar mais alguns metros. 

Sol. 

Céu. 

«Shoshone» suspirou cansadamente. Dez anos antes, ele era um homem livre naquelas terras. Mas nem sempre as coisas resultavam como uma pessoa queria. A felicidade não era eterna. E Nalinle tinha um prometido que não era ele. 

Pouca sorte. 

Embora Tondeyaha lhe tivesse chamado «assassínio». Era tudo de acordo com o ponto de vista de cada um. 

Deu meia-volta, puxando as rédeas, até voltar as costas ao acampamento. Precisava de ir a determinado sítio. Certificar-se de que tudo continuava na mesma. Embora isso se lhe tornasse doloroso. 

E com um grito, um grito raivoso que era quase de desespero, esporeou o seu cavalo em determinada direção. O coração parecia desfazer-se-lhe no peito ao contemplar cada pedra e cada grão de areia que ia deixando para trás. Mas no seu rosto cobreado não transparecia qualquer emoção. 

Como um verdadeiro índio. 

Como um verdadeiro índio que fora durante aqueles dez anos, não obstante as palavras em contrário de Tondeyaha. 


*


Era um lugar delicioso. Uma fonte que brotava entre duas rochas, num pequeno promontório que quebrava a solitária monotonia da paisagem. 

«Shoshone» desmontou lentamente e, com o cavalo pelas rédeas, aproximou-se. 

A água brotava a dois metros do solo e escorria pelos rochedos até formar um pequeno charco de seis metros de largura por dois de profundidade. Ali conhecera Nalinle. Ela estava a banhar-se quando ele chegara para dar de beber ao cavalo, ignorante da sua presença. Ignorante até ao momento em que ouviu a sua voz, encontrava-se ele já a poucos metros do charco. 

—Não te aproximes! Se o fizeres, meu pai matar-te-á! 

Mas Winstonah era um dos guerreiros mais atrevidos da pequena tribo. E ao escutar aquela voz feminina, qualquer coisa pareceu esporeá-lo, agitando-o. E avançou. 

Ela estava a banhar-se, placidamente, naquela pequena extensão de água. E se a profundidade desta era suficiente para cobrir a sua beleza, não o era a sua límpida transparência. 

Durante uns momentos o guerreiro ficou imóvel a contemplar a mulher que chapinhava na água. Qualquer coisa pareceu alvoroçar-lhe o sangue nas veias. E ao fixar as pupilas femininas não viu nelas nem vergonha nem furor. Apenas uma expressão estranha, misto de surpresa e complacência. Uma expressão que aumentou aquela agitação que o invadira. 

Ela disse, então: 

— Vai-te. 

Mas não parecia ter medo. Winstonah permaneceu na margem do charco, imóvel, sem conseguir interromper a sua contemplação. Conhecia aquela rapariga. Era Nalinle, a filha de Tondeyaha. E Tondeyaha era o chefe supremo do pequeno grupo «shoshone». Se Nalinle falasse, Tondeyaha mandá-lo-ia matar. Winstonah sabia que ela estava prometida a Wapatomeka. 

Mesmo assim, não se mexeu. E proferiu numa voz emocionada: 

—És muito formosa. Muito mais do que eu supunha. 

Nalinle não parecia ofendida com a audácia do guerreiro. Mergulhara até ao pescoço, agitando a água de maneira a esbater as suas formas em aberrativas ondulações azuladas. 

— Vai-te embora. Se meu pai chega a saber... 

Ele só em parte lhe fez a vontade. Voltou-lhe as costas e afastou-se o suficiente para que ela emergisse da água e se vestisse, respeitando-lhe o pudor. Depois, apertou nos braços o seu corpo húmido e palpitante, com suavidade e ternura. 

— És tão formosa com um espírito dos rios, Nalinle. 

Bastaria que ela quisesse e nesse mesmo instante se converteria em esposa de Winstonah, segundo o costume índio. A simples união era suficiente para estabelecer entre eles o laço do matrimónio. Mas ela teve forças para o afastar de si. 

— Não, Winstonah. Assim, não. Tenho de falar primeiro com Wapatomeka. Não podemos traí-lo. Não podemos cobri-lo de vergonha. Ele é um guerreiro valente e meu pai prometeu-me como sua «squaw». 

— Mas é a mim que tu amas. 

Só um instante e teria sido suficiente, até porque aquela forma primitiva de amor era para os da sua raça insolúvel e duradoura. 

— Sim, é a ti que eu amo. 

O guerreiro soltou-a e ela sorriu-lhe, dizendo: 

— Wapatomeka compreenderá. E, então, serei tua. 

Mas Wapatomeka não compreendera. Acusara Winstonah de lhe haver tirado e desonrado a sua prometida, sem que os protestos de Nalinle pudessem valer. E, logo, desafiara-o para um duelo. Winstonah vencera, e o cadáver do seu rival quedara a seus pés. Então, Tondeyaha negara-lhe a filha e expulsara-o da tribo com um anátema eterno, proibindo-o para sempre de voltar ao seio da grande família «shoshone». 


*


«Shoshone» suspirou. Aquele nome que os brancos lhe davam quase parecia uma troça. Não era um «shoshone», embora o seu coração pertencesse aos da sua raça. Também não era um branco. Jamais conseguiria que o admitissem entre eles. Toda a sua vida teria de suportar sobre si a palavra «renegado». Quando tudo o fizera por uma mulher. Por Nalinle. 

Agora, Nalinle e a sua beleza pareciam estar muito longe de ali. 

Mas não podia deixar de recordar as palavras de Tondeyaha: 

«Nunca terás direito a sentar-te com os nossos guerreiros nos conselhos da tribo! Serás maldito para sempre, e quando os «shoshones» ouvirem o teu nome, cuspirão para os quatro pontos cardiais, em sinal de desprezo!» 

Os seus tinham-no rechaçado. Os brancos não o admitiam. Toda a sua vida não seria outra coisa que a de um ser solitário e vencido. 

Totalmente vencido, até ao dia em que um adversário mais rápido o matasse. Mas que lhe importava isso? 

Ajoelhou-se junto do charco. Meteu as mãos na água. Sentia como uma dor física ao recordar tudo aquilo que se esforçava por esquecer, sem o conseguir. 

«Nalinle!» 

Ela devia ter agora vinte e cinco anos. Mais dez que então. E Tondeyaha ter-lhe-ia encontrado um marido entre os seus guerreiros. Era o mais normal. Winstonah tinha morrido para todos eles. 

Inclusivamente para ela. 

Retirou as mãos pressurosamente. Doía-lhe o coração. O seu rosto estava impassível, mas o coração doía-lhe de uma maneira insuportável. Foi quando ouviu uma voz atrás de si. Uma voz suave, cariciosa, que lhe produziu uma alfinetada na nuca. 

—A recordar, Winstonah? 

Voltou-se. 

Ela. Nalinle! Mais formosa do que nunca, na plenitude da sua beleza, perfeitamente desenvolvida... E vibrátil, como dez anos antes. Estremecendo e agitando-se na sua presença, como se ambos estivessem a viver de novo a cena de então. Ele pôs-se em pé. 

— Olá, Nalinle. Continuas a ser a mais formosa das mulheres da tribo. 

Ela tinha os olhos cintilantes. Uma fita verde e rubra cingia-lhe a fronte, sujeitando as suas grossas e longas tranças de azeviche. Tinha os olhos muito negros, o corpo esbelto... A sua respiração era acelerada, quase ansiosa. 

De súbito, aproximou-se do homem e pôs-lhe as mãos no peito. Tremiam-lhe os lábios e as narinas. 

— Há dez anos que te espero, Winstonah. 

Dez anos à sua espera! 

Aquela simples frase produziu em «Shoshone» urna espécie de calafrio. Tomou-a pelos ombros. Ambos se encontravam tão agitados que não se atreviam a aproximar-se mais. 

Dez anos era demasiado tempo. Mas algumas pessoas podem conservar sensações adormecidas no fundo de si mesmas, esperando o momento preciso para despertá-las. «Shoshone» conhecera muitas raparigas de «saloon». E aqueles amores fugazes convertiam-se agora em cinzas na presença de Nalinle. Ante os seus olhos, a sua boca, seu corpo. Disse numa voz magoada: 

— Tondeyaha jamais o permitiria... 

Não lhe perguntava que tinha ido ele fazer ali, parque vestia daquela maneira, a razão dos dois revólveres que trazia à cintura. Uma mulher índia nunca faz perguntas a um homem índio. E Nalinle continuava a ser uma «shoshone». 

Ele disse, de súbito: 

— Sou um renegado. 

— Não me importa, Winstonah. 

— Já não sou Winstonah. Agora todos me chamam «Shoshone». 

— Eu também te chamarei assim, se o preferes... 

— A minha vida é errante como a dos bisontes. Ninguém consegue prender-me a um sítio por mais de um ano. 

Um sorriso entreabriu os lábios femininos. Estava tão formosa que ao pistoleiro lhe parecia um sonho tê-la ali. E ouviu-a proferir: 

— Nalinle seguir-te-á. Mesmo que Tondeyaha não queira admitir-te de novo na tribo. Entretanto, Nalinle guardará o segredo do nosso matrimónio. 

«Shoshone» não quis analisar as sensações que o agitavam. Durante dez anos convivera com os homens brancos. Procurando assimilar os seus costumes, a sua forma de vestir e de viver, a sua mentalidade. E, de súbito, bastava-lhe a presença de uma mulher para fazê-lo compreender que continuava a ser um índio. Um índio «shoshone» de pura raça, pesasse a quem pesasse. E respondeu: 

— Seja. 


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