quarta-feira, 15 de junho de 2022

BRV013.09 Uma noite na cabana


Era uma cabana situada dentro das terras de Brady.

Uma cabana pequena, com um candeeiro de petróleo em cima de uma mesa e tudo perfeitamente ordenado. A escuridão tornara-se mais densa ainda em torno dos dois homens quando estes desmontaram em frente da porta.

— Entra. Vou tratar-te dos ferimentos.

«Shoshone» começou a sentir uma espécie de estranha flutuosidade. Como se vogasse no meio de um mar de nuvens. Que o agitavam de um lado para o outro. Que o embalavam.

Resultava agradável deixar-se conduzir.

Abandonar-se.

Entregar-se à mais completa inércia.

Murmurou:

— Não quero que te arrisques por mim. Se Lamb nos encontra aos dois...

Lex pareceu zangar-se. 

— Se voltas a proferir uma baboseira semelhante, terei de aplicar-te um murro para que te recordes do nosso pacto. 

Depois de o ajudar a desmontar, entrou com ele na cabana. Enquanto acendia o candeeiro, disse:

—É melhor que tires o casaco e a camisa.

«Shoshone» obedeceu em silêncio. Fora durante dez anos um perfeito lobo solitário, e encontrar alguém que se preocupasse com ele produzia-lhe uma sensação estranha. No entanto, também era consolador. Teria de acostumar-se a isso. Lex era, agora, seu irmão de sangue. Ambos estavam obrigados a ajudar-se mutuamente na medida das suas forças sem exigir nada em troca. Era o pacto estabelecido.

Voltou a murmurar:

— Está bem. Faz o que quiseres. Depois falaremos quando eu estiver em condições de te poder dar um bom par de borrachos.

-- Encantado.

O candeeiro espargia em torno uma luz amarelenta. Os dois pares de olhos pareceram mergulhar na profundidade de poços negros. Não obstante, ambos se contemplaram e sorriram.

Tanto para «Shoshone» como para Lex, encontrar um amigo era um acontecimento extraordinário. Fora de série. Quase inconcebível. Embora Lex compreendesse que a «Shoshone» não bastaria aquilo enquanto não pudesse voltar ao seio dos da sua raça.

Durante alguns minutos nem um nem outro proferiram uma palavra. Lex observou detidamente os dois ferimentos, o do ombro e o das costas, e logo abanou a cabeça.

— Tiveste uma sorte incrível, «Shoshone». Nada disto é grave. As duas balas saíram da mesma maneira como te entraram no corpo.

Era a melhor noticia que podiam dar ao índio. O seu rosto escuro animou-se com um sorriso.

— Muito bem. Faz-me então um curativo e deixa-me ir embora.

Lex começou o tratamento, metendo-lhe nas feridas pedaços de gaze embebidos em álcool para as desinfetar. «Shoshone» manteve durante todo esse tempo uma atitude completamente impassível. O renegado branco moveu por fim a cabeça de um lado para o outro e disse:

— Está resolvido, «Shoshone». Não sairás de aqui antes de quatro dias, pelo menos.

«Shoshone» sentiu que a alma lhe caía aos pés. Quatro dias era demasiado.

— Mas é que eu preciso...

Recordava-se de Nalinle e da tarde anterior. E precisava da rapariga junto de si, mais do que nunca. Vê-la e abraçá-la.

Lex riu entre dentes. Parecia compreender sem necessidade de palavras. E foi com uma ponta de amargura na voz que disse:

— Irei ao charco. Se Nalinle estiver ali à tua espera, trazê-la-el comigo. Não estás tão fraco que não possas representar menos mal o teu papel de marido, mas não abuses. Precisas de bastante repouso.

«Shoshone» sentiu qualquer coisa que lhe apertava a garganta. Nunca pensara que entre os brancos existissem homens como aquele.

— Lex...

— Cala o bico. Aborrecem-me as cenas sentimentais.

Encasquetou o chapéu com um gesto brusco. Sorria. Mas o índio compreendeu quanto lhe custava aquele sorriso e calou-se. Era o melhor que podia ter feito naquele momento. Lex não lhe teria suportado mais uma única palavra. Saiu em absoluto silêncio, mas já na porta, voltou-se.

— Demonstrarias ser um verdadeiro sábio se apagasses o candeeiro. Este é o meu refúgio particular no «rancho» de Brady, mas não convém que vejam luz. Se os homens de Lamb passassem por aqui, podiam sentir curiosidade e bisbilhotar.

«Shoshone» assentiu:

—Concordo contigo.

E soprou o candeeiro, apagando-o. A silhueta de Lex recortou-se por alguns instantes no fundo negro da noite. E logo a porta se fechou.

Em face da escuridão, Lex Norman esteve durante algum tempo imóvel, sentindo nas fontes o agitado palpitar do coração. «Nalinle!» Não era sua. Pertencia a outro homem. Sabia-o. Mas sabia também que durante muito tempo recordaria aquele rosto e sonharia com ele. Embora fosse a esposa de «Shoshone».

Suspirou.

Enfiou um pouco mais o chapéu na cabeça. Foi buscar o seu cavalo e dirigiu-se para o charco, sem que qualquer dos homens de Lamb o incomodasse pelo caminho.

A noite estava escuríssima. Milhões de estrelas brilhavam no alto, mas o seu resplendor não chegava a iluminar a paisagem que o rodeava.

Durante alguns momentos, Lex deteve-se no alto de uma lomba, imóvel. Nenhum ruído estranho turvava o silêncio que reinava em torno. Então, suspirou mais uma vez, e retomou o caminho interrompido. Chegou ao charco dez minutos depois. E voltou a deter-se. Havia um cavalo índio junto de uma das rochas. E uma voz feminina proferiu com suavidade:

— «Shoshone».

Lex experimentou a sensação de ter recebido uma bofetada. Ou um golpe em pleno rosto com um ferro em brasa. Algo lhe atenazou a garganta e durante alguns momentos não pôde responder. Por fim, fez uma tentativa para falar. E foi com uma voz rouca e trémula, que não lhe pareceu a sua, que proferiu:

— Não sou «Shoshone».

A frágil, esbelta figura de Nalinle pareceu brotar de entre as rochas. Quase lhe caiu em cima como um ciclone.

— Quem és tu? Que procuras aqui?

Rapidamente, Lex agarrou a mão direita da índia. Ao fazê-lo, sentiu como se através daquela suave e morena pele lhe fosse transmitida uma descarga elétrica. Mas foi só um momento. Dominou-se com algum esforço e continuou a sujeitar-lhe a mão, impedindo-a de o agredir.

— Sou Lex, Nalinle.

Ela afrouxou a tensão do seu corpo e o renegado largou-a.

— Porque estás aqui, Lex?

Teria querido responder uma coisa muito diferente. Mas disse, simplesmente:

— «Shoshone» quer-te ao pé dele.

—E manda-te como seu emissário?

— Está ferido, Nalinle, embora não de gravidade. E eu vim buscar-te para te levar para junto dele.

A índia guardou silêncio uns instantes. Na escuridão que a rodeava, a água que escorria dos rochedos parecia despedir cintilações luminosas. Mas era apenas o reflexo das estrelas. Ela disse, por fim:

— És um bom amigo, Lex.

Nem suspeitava que com aquela frase dera uma punhalada no espírito do homem. Lex encolheu-se sobre si mesmo e a sua boca crispou--se. A obscuridade impediu Nalinle de surpreender aquele gesto de dor. E com uma voz serena, que não revelava quanto sentia naquele momento, disse:

— Vamos, depressa. Ele está à tua espera.

Ao ajudá-la a montar, advertiu-se das palpitações da rapariga, daquela espécie de tensão que a agitava. Sabia muito bem a que se devia, e teve dificuldade em resistir ao impulso de a fazer descer do cavalo e não permitir que ela fosse nessa noite para junto de «Shoshone». Mas «Shoshone» era, agora, seu irmão de sangue e ele não podia amar aquela que sabia que era a sua legítima mulher. Seria uma traição para a qual nenhum castigo resultaria suficiente. Ela perguntou ainda:

—És seu amigo, Lex?

Um silêncio. Lex Norman passou a língua pelos lábios. Contemplava através da obscuridade aquela sombra que tinha na sua frente. Era Nalinle e estava a menos de dois metros de si. E, no entanto, um universo inteiro os separava.

— Sim — respondeu.

— Nesse caso, estou tranquila. Sei que não o abandonarás.

A própria Nalinle tinha tratado de Lex quando os «shoshones» o recolheram, ferido, alguns anos antes. Convivera na tribo como se fosse um dos seus guerreiros, e preferia parte das suas roupas para vestir. Mas, nesse momento teria dado metade da sua vida para esquecer o passado e continuar a ser um pistoleiro branco. Para não ter aquela dívida de gratidão com Tondeyaha e os seus e não ter conhecido jamais a mulher que tinha agora na sua frente.

— Devemos apressar-nos — propôs afogadamente. — Andam à procura de «Shoshone» e não convém que nos vejam. Podem seguir-nos e encontrá-lo.

Nalinle não perguntou mais nada. Esperou que Lex montasse e seguiu-o silenciosamente até à cabana. Ao abrir Lex a porta, uma densa obscuridade ofereceu-se aos olhos de ambos.

— «Shoshone».

A voz do índio chegou-lhes do negrume.

— Entrem. Estou aqui... sozinho.

Lex riu entre dentes.

— Será melhor, então, que eu desapareça...

E deixou entrar Nalinle, fechando a porta a seguir. Durante uns instantes, no interior da cabana, tudo foi silêncio e escuridão. Depois, «Shoshone» acendeu um fósforo e uma pequena chama amarelenta rasgou as trevas.

— Nalinle.

O seu rosto pareceu emergir da obscuridade. Ela suspirou uns momentos e disse:

— Estou aqui.

E correu para ele, deslizando entre os seus braços. «Shoshone» largou o fósforo e deixou que se apagasse. Não necessitavam de luz para nada.

Nessa noite, Lex Norman dormiu na pradaria, o rosto voltado para as estrelas. E teve muito tempo para pensar.

Tanto como tiveram os dois habitantes da cabana para não pensar nem dormir. Quando amanheceu um novo dia e Nalinle saiu da cabana à procura de água, os seus olhos brilhavam de maneira extraordinária. Em contrapartida, os de Lex pareciam toldados por um véu opaco. Mas ambos se saudaram amistosamente, e Nalinle nunca saberia o motivo daquela expressão cansada que havia nas pupilas do renegado branco.

— Tencionas voltar ao acampamento «shoshone», Nalinle?

Ela sorriu. Aquilo não parecia preocupá-la grandemente.

— Não posso fazê-lo, Lex. Faltei uma noite inteira e meu pai não me admitirá de novo.

— Compreendo.

Não obstante, a ideia de se converter numa renegada não parecia inquietar a rapariga. Lex viu-a dirigir-se para o poço que havia a poucos passos da cabana, cantarolando qualquer coisa. Com um olhar pensativo, entrou, por sua vez, na choça. «Shoshone» parecia muito melhor.

— Animado? — perguntou-lhe Lex.

O ferido sorriu.

— Sim.

— Isso alegra-me. Não te movas da cabana para coisa alguma. Tenho de ir ao «rancho», a fim de realizar o meu trabalho de todos os dias.

— Trabalho?

— Refiro-me a acompanhar Brady aonde quer que vá. Para alguma coisa sou o seu guarda-costas.

— Um pouco aborrecido, não?

— Como deves calcular.

Lex apertou a mão de «Shoshone» e saiu, acompanhado pelo olhar do índio. Este notara aquela expressão velada nas pupilas claras do amigo e compreendeu a razão disso. Talvez não devesse ter permitido que Lex fosse na noite anterior em busca de Nalinle. Tinha sido demasiado.

Quando a rapariga regressou com a água, encontrou-o pensativo, com o queixo entre as mãos. Contemplou-o um momento, surpreendida.

— Em que pensas, «Shoshone»?

E a resposta surpreendeu-a ainda mais.

—No que os homens brancos são diferentes uns dos outros.

 

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