A cidade estava engalanada com cartazes, bandeiras e lâmpadas a cores, que quase formavam um teto sobre a rua principal, caindo de cordas e arames que, esticados de janela para janela, a atravessam.
Pelos passeios, transitava uma heterogénea multidão, entre a qual sobressaíam as mantas de índios e mexicanos, com os seus desenhos garridos, as camisas dos «cow-boys» e as negras andainas dos comerciantes e jogadores.
Pela larga rua poeirenta, circulava toda a espécie de veículos enfeitados e alegóricos, conduzidos uns por ricaços comerciantes, banqueiros e fazendeiros, outros por famílias alegres que acudiam à cidade, dispostos a divertir-se.
Ao lado, trotavam cavalos de puras raças, ricamente ajaezados entre os quais se viam alguns com filigranas de prata de arte mexicana. De toda a região, e até da capital do Estado, acorrera uma multidão para presenciar os festejos e tomar parte nos concursos; equipas inteiras de buliçosos vaqueiros deslocaram-se dos ranchos onde trabalhavam.
Nos arredores crescia um mundo de carros de toldo, de gente que, prevendo a falta de acomodações em hospedarias ou hotéis, e até mesmo em casas particulares, pela grande concorrência em dias de festa, resolvia assim a hospedagem.
Em frente da estação do caminho de ferro, no extenso terreno sem construções, construíra-se o redondel, muito semelhante às praças de touros do México, Espanha e Portugal, dentro do qual havia bancadas, tribunas e currais. Sobre a porta principal, num enorme cartaz de fundo branco, destacavam-se as letras anunciando o grande «rodeo», com espetaculares exercícios de tiro à pistola, monta de cavalos e touros bravos, laço e prisão de reses, e outros mil difíceis exercícios, concursos e passatempos, assim como importantes prémios para todos eles.
Durante as noites, aquela mesma pista, bem batida e iluminada, serviria para o baile, aos acordes duma importante banda de música; que para tal fim o Município contratara. Homens e mulheres deambulavam pelas ruas, convertidas em passeio de carros e peões.
Estamos na manhã do primeiro dia das festas, e a banda de música percorrera todas as ruas com os seus alegres acordes. Sunshine preparava-se para se divertir à grande esquecendo os ódios e preocupações. Bandidos e salteadores, para os quais havia amnistia, cruzavam-se com os honrados comerciantes e vaqueiros, misturando-se entre si, e chegando mesmo a confraternizar.
Bailarinas de «cabarets» acotovelavam-se com puritanas donzelas, que em qualquer outro dia morreriam de vergonha só de se encontrarem com as «vedetas». Naquela tarde, começava o «rodeo».
Quem com antecedência não comprara bilhetes, estava embaraçado para os conseguir. Das inúmeras tabernas, cheias a trasbordar, saía o alegre ruído de risos e canções, entoadas por vozes roucas, avinhadas, sem ritmo, desafinadas, convertendo-se em verdadeira gritaria.
Rob, tranquilamente encostado a um dos postes dum estabelecimento, perto do qual estavam atados alguns cavalos, suportou os constantes empurrões da multidão que passava por ele.
Estava absorto na contemplação dos animais que puxavam alguns dos carros, poderosos cavalos de boa estampa, largo peito e pernas delgadas e fortes. - Inscrevera-se em grande número de provas, mas sentia-se desanimado; não conseguira encontrar um cavalo que inteiramente o satisfizesse. Conservava intactos os mil dólares recebidos de Kinney como recompensa de lhe salvar os trinta e cinco mil, que pusera à sua disposição para desenvolver o rancho «T-Barra». Gastaria o que fosse preciso, para adquirir um animal de que gostasse. Mas, até aquele momento, não o encontrara.
De repente, a sua atenção foi atraída por um formoso garanhão, grande e forte, cujas patas delgadas indicavam sangue e velocidade. Completamente branco, as suas crinas bem tratadas luziam ao Sol, e a cauda, limpa e farta, quase chegava ao chão.
Rob ficou tão enamorado do lindo animal, que nem sequer reparou no grupo que o seguia enquanto nos passeios parava toda a gente, para melhor admirar o cavaleiro. O nobre animal, de cabeça erguida, tendo na fronte branca uma mancha negra que parecia uma estrela, luxuosamente ajaezado de couro preto com adornos de prata, chegou perto dele.
Parou junto dum poste, mesmo ao seu lado. Só então Rob reparou no cavaleiro que desmontava, uma feia e grotesca figura. Era um homem que, da cintura para cima, apresentava a constituição de um gigante. O tórax largo e abaulado, o pescoço de touro suportando uma disforme cabeça, feições toscas, largas bochechas que denunciavam o sangue «apache» que lhe corria nas veias; os ombros. poderosos e largos, não correspondiam às pernas curtas, dando ao seu estranho corpanzil o aspeto dum gorila. Os braços compridos quase lhe tocavam os joelhos. Aquele homem que, a ser proporcionado, ultrapassaria os dois metros, devia andar pelo metro e oitenta, pesando aproximadamente cento e vinte quilos, todo nervo e músculo.
Sem dar por isso, seguindo um cego impulso, guiado apenas pela admiração pelo animal, em duas passadas chegou junto do simiesco indivíduo que, a despeito da corpulência mal configurada, era ainda mais alto que Rob. Bateu-lhe ligeiramente no ombro, para chamar a sua atenção.
Apesar do alheamento produzido pela ideia de vir a ser dono de tão soberbo animal, o melhor sem dúvida que vira em toda a sua vida, notou que, ao seu gesto se seguiu um movimento, um murmúrio, que não pôde determinar imediatamente, mas que pressentiu, ser de tensa espectativa.
O subconsciente advertia-o dalguma anomalia que não podia precisar, qualquer coisa que se detivera, som que deixara de se ouvir e que, ao desaparecer, lhe dava a impressão de estar surdo. Mas, de repente, fez-se luz no seu cérebro, e compreendeu tudo!
O mar humano imobilizou-se, os carros paravam de rodar, os cavalos já não batiam os cascos no chão, a multidão deixara de arrastar os pés, toda a gente permanecia fascinada e emudecida, guardando um curioso silêncio. Todos desejavam presenciar o seu encontro com o homem do cavalo branco. Como o surdo fragor da tempestade amortecido pela distância, foi morrendo o sussurro; alguns abandonaram os passeios para se encarrapitarem nos carros, como uma praga de mexilhão; parecendo aguardar interessantes acontecimentos.
Com esforço tentou compreender a estranha atitude de toda aquela gente, procurando entre as suas recordações alguma razão que o justificasse. Não tardaram a acudir ao seu pensamento as palavras ouvidas havia pouco tempo: «O Gorila Buck Russel». Como era possível haver no mundo dois homens tão parecidos com tais símios, era indubitável que se achava ante o sinistro bandido.
Num golpe de vista verificou o grupo de cavaleiros que seguia o tristemente célebre cabecilha, uma quadrilha de bandidos brutais e estúpidos, sujos e acanalhados, precisamente do tipo que podia aceitar tão bestial indivíduo como chefe. Alguns deles já se haviam apeado e mantinham-se na expectativa, segurando as rédeas com a mão esquerda, e tendo a direita muito próximo da coronha dos revólveres, enquanto os que ainda estavam montados vigiavam Rob, do alto dos cavalos, dispostos a abrir caminho a tiro, se tão arriscada medida se tornasse necessária. O seu sentido de bom humor esteve prestes a fazê-lo soltar uma gargalhada, no momento em que Buck se voltava lentamente para ele, até fixá-lo, com os seus olhos oblíquos, pequenos, frios, incolores, que pareciam mortos, se não fora a intensidade e força hipnótica daquelas pupilas sem brilho, que lembravam as dum reptil.
— Que deseja o senhor? — perguntou o mastodonte, com uma voz tão doce, que ninguém o poderia supor.
Rob maldisse não haver observado mais cedo todos os pormenores que agora lhe identificavam aquele indivíduo repugnante, com quem não desejava manter outras relações a não ser através do ponto de mira da sua espingarda. Já que chegara até ali, decidiu continuar.
— Gosto muito do seu cavalo e, caso o não incomode, desejaria saber se estaria disposto a vender-mo, mediante uma soma que fosse razoável — respondeu, com indiferença, como se não soubesse a quem se dirigia.
Buck olhou-o ainda com maior estranheza, indubitavelmente perplexo ante a vontade daquele homem que não conhecia, e que, pelos vistos, também o não conhecia a ele. Observou-o durante um momento. A, seguir voltou-se para os seus quadrilheiros com um gesto interrogativo, como se esperasse que algum deles lhe dissesse quem era tão audaz indivíduo. Porém, não havia nenhum mais bem informado que ele.
— Que lhes parece o patego, rapazes? — perguntou, por fim, arrancando uma gargalhada aos seus homens, e sorrindo ele também, deixando ver uma fileira de dentes grandes, amarelos e muito separados.
— Não vejo que a minha pergunta dê vontade de rir, senhor! — a voz de Rob soou metálica e fria como o gelo. — Se não quer vender o cavalo, diga, e é assunto arrumado.
— Ouve, grandalhão, meu galinho da India e provocador — continuou o gigante voltando-se de novo para ele, e rindo-se francamente, como se alguma ideia engraçada lhe tivesse ocorrido —. Não se aborreça, rapaz, porque gosto dos galos lutadores. Quanto dá pela placa?
— Servem-lhe trezentos dólares? — ofereceu Rob, pensando que o homem deveria ter sido educado em alguma missão espanhola da fronteira do México, e interrogando-se como podia ter chegado a tão baixo extremo. Lera a intenção do bandido, como num livro aberto; sabia que lhe venderia o cavalo, para depois lho roubar.
— Olhe, rapazola, não venha com parvoeiras — respondeu o outro, enfadado —. Você julga este bicho algum “piléco” coxo e cheio de mazelas? Não lho dou por menos de mil dólares!
— Por esse dinheiro posso adquirir uma cavalariça.
— De lazarentos, talvez...
— Por cem dólares compro um bom cavalo, ora eu ofereci-lhe trezentos, o que significa um preço exorbitante.
Rob dispunha-se a dar até ao seu último dólar pelo animal, mas como adivinhara a intenção criminosa de Buck, resolvera adquiri-lo por um preço razoável. Depois, cuidaria de o conservar.
— Se o «Raio» lhe interessa, é seu por mil dólares, mas nem um centavo menos! — repetia firmemente —. Já lhe disse, e não gosto de repetir.
— Bem! — conformou-se, com resignação, disposto a sacrificar os mil dólares que lhe dera Kinney. — Aceito o preço, se mo entrega tal como está neste momento, isto é, ajaezado.
O «Gorila Buck» ficou um momento pensativo. Por fim, aceitou com um leve encolher de ombros, pensando que, quando recuperasse o cavalo, recuperaria também os arreios. Estava falho de dinheiro e precisava daqueles mil dólares que tão facilmente lhe vinham às mãos.
— É seu, e cuide bem dele, rapazola; não o marque com ferro, e nunca lhe meta as esporas. Quando, quiser que ele corra mais que o vento, não tem mais que inclinar-se e gritar-lhe junto a uma orelha; depois, segure-se bem se não quer saltar da sela! — riu estrepitosamente, por verificar que fazia uma operação honrada, pois o pai do «Raio» era um enorme garanhão que roubara em Utah, e a mãe uma égua de puro sangue inglês, que encontrara junto do cadáver do seu dono, numa das suas corridas pelo deserto.
— Aqui estão os mil dólares! — respondeu Rob, aceitando os conselhos e tomando nota mentalmente das indicações recebidas.
— E aqui está o cavalo! — ripostou Buck, igualmente correto, entregando-lhe as rédeas com um dos seus desagradáveis sorrisos, e olhando-o duma forma que o obrigou a pôr-se em guarda contra possíveis eventualidades.
Sem troca de mais palavras, esticou os estribos até os pôr na medida das suas pernas; montando dum salto, disposto a afastar-se, muito calmo, se lhe permitissem conservar as suas pacíficas intenções, do que muito duvidava.
A objeção veio donde menos esperava. Pelos vistos, «Raio», não estando na mesma disposição, recusou-se a aceitar o novo dono. Com um salto brusco, tentou desmontar o desprevenido cavaleiro, e com certeza o teria conseguido, se aquele se não agarrasse desesperadamente à cabeça da sela.
Ainda mal refeito da surpresa, Rob viu-se sacudido por uma série de cangochas do endiabrado «Raio»; com as patas rígidas e a galharda e fina cabeça metida entre as mãos, parecia saltar sobre o terreno, como se fosse uma bola, ameaçando desarticular-se até ao último osso.
Durante um espaço de tempo interminável, continuou o cavalo a protestar, de crinas e cauda flutuando ao vento, brilhando ao Sol a sua imaculada pele, sob a qual, como se fossem molas de bem temperado aço, se enchiam e estendiam os músculos do animal.
Só por estar rodeado de carros e cavalos, Rob não se estatelou no chão, apesar de ser um excelente cavaleiro; durante largos anos dedicara-se a domesticar cavalos bravos. Nunca encontrara em toda a sua vida um animal capaz de o deitar ao chão; as suas pernas, fortes e longas, mantinham-no cravado na sela, ao mesmo tempo que fatigavam os selvagens equídeos, mas neste momento, colhido de surpresa no primeiro salto da montada e antes que se tivesse fixado bem, já não podia agarrar-se e dispor de espaço para se movimentar à vontade.
Durante alguns instantes estabeleceu-se confusão descomunal. Toda a gente gritava e encabritava-se nos troncos e nos carros, procurando refúgio. Quando Rob conseguiu dominar o cavalo, fixando-se na sela, chegaram aos seus ouvidos as gargalhadas do bandido.
Teve de fazer um grande esforço para não rir também, e tê-lo-ia feito se com isso não aborrecesse aquele gorila. Nunca o aborrecia uma brincadeira, por mais pesada que fosse, ainda que reconhecesse que aquela era das boas.
— Esqueceu-me de dizer-lhe que o «Raio» nunca foi montado por qualquer outra pessoa que não fosse eu! Não gosta de sentir no lombo outro cavaleiro — gritava Buck, afogado pelo riso.
— De qualquer forma, como vê, não foi preciso! —respondeu Rob, abrindo caminho por entre os espectadores, admirados por alguém se atrever a interpelar o famoso «Gorila Buck», comprando-lhe o seu famoso cavalo branco, e afastando-se com toda a calma, são e salvo.
Os bandidos desapareceram tragados pelas portas da taberna, e logo se restabeleceu a normalidade do passeio de carros e peões, elevando-se o murmúrio de colmeia. Os mais próximos do local onde se desenrolaram os acontecimentos dedicavam-se a descrevê-los, com todo o luxo de pormenores, aos que não haviam tido a sorte de assistir.
A notícia correu toda a cidade, com as inevitáveis alterações e exageros. Rob de Rojas, o homem que vencera em luta nobre e leal o temível «sheriff» Snell, detivera em plena rua o «Gorila Buck», e comprara-lhe o seu cavalo branco.
Seguido pela curiosidade das pessoas que o viam passar, e o apontavam discretamente com receio de o aborrecer, Rob parou diante do hotel dirigido por Ana, e no qual se hospedavam Ketty, Kinney e os seus colegas, e ele próprio.
Atou o cavalo a um poste e cruzou o umbral da porta. Entrou no vestíbulo cheio de pessoas que procuravam quartos por qualquer preço, sem se darem por vencidas, apesar da afirmação da gerente de que o hotel tinha a lotação esgotada.
O barulho produzido por uma dúzia de pessoas que falavam aos gritos assemelhava-se a uma gaiola de grilos.
Convencido de que não poderia falar com a rapariga, Rob subiu as escadas a grandes passos, dirigindo-se ao seu quarto para ir buscar algum dinheiro, antes de procurar acomodação para o cavalo.
«É pitoresco o que acontece — meditava, absorto pelas suas próprias reflexões —. Fiquei com o cinturão. com a espingarda e com o revólver de Sam Lou. Em boa verdade, os mil dólares que me deu Kinney, tirei-lhos a ele, com os quais agora pude comprar o cavalo de Buck Russell. Por este andar vou-me armando e equipando, à custa dos mais famosos bandidos da região.»
Chegara em frente da porta do seu quarto. Abriu-a tranquilamente, e logo parou assombrado, ao ver a cama ocupada por um grande vulto, deitado dentro dos lençóis, dos quais sobressaía 'uma curta, encrespada e morena cabeleira.
Espalhadas pelo quarto e amontoadas sobre uma cadeira, viam-se as peças de roupa do adormecido hóspede. A sua riqueza, invulgar entre «cow-boys», verificava-se à primeira vista. Todas as roupas eram pretas, assim como a bandoleira dependurada na cama, ao alcance da mão, e da qual se destacava a nacarada culatra de um grosso «colt» calibre quarenta e cinco.
Rob parou, indeciso, por uns instantes, perguntando a si próprio se não se teria enganado no quarto. Este pensamento fê-lo voltar ao corredor, verificando que se houvera erro, não era seu.
Adquirida esta certeza, fechou a porta para não despertar o adormecido, e, com passos cautelosos, chegou à cabeceira da cama, apoderando-se da arma para evitar surpresas desagradáveis. Depois de verificar que o «hóspede» não havia tocado nos objetos que lhe não pertenciam, sentou-se numa cadeira vazia, pensando como pagar o atrevimento do intruso. O ligeiro ranger da cama, avisou Rob de que o seu aborrecido visitante despertava.
Momentos depois, contemplava umas feições que pareciam suas conhecidas.
— Meu bom amigo, Roberto, de Rojas -- cumprimentou num gesto de troça a voz de Sam Lou, enquanto se apercebia de que lhe fora arrebatada a pistola —. Com franqueza, não esperava encontrá-lo tão depressa, e muito menos nestas circunstâncias.
-- Acredito, meu amigo Sam! — respondeu igualmente trocista —. É curioso que estivesse a pensar em você, no momento em que entrei no meu quarto, muito longe de supor que o encontraria deitado na minha cama. Ainda não pude esquecer os seus votos para nos encontrarmos em breve, e como velhos amigos!
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