domingo, 16 de maio de 2021

BIS009.01 Uma sombra sob a diligência

— Com um milhão de diabos! — gritou o cocheiro, indignado, ao ver a estrada obstruída por um grosso tronca de árvore, atravessado a toda a largura. -- Vigia, Jim! Tão certo como eu estar a ver-te, que se trata dum novo ataque desses salteadores de estrada — continuou cocheiro, vociferando uma catadupa de imprecações pouco académicas, para o homem que, de espingarda empunhada, o acompanhava sentado na almofada da diligência.

Este esquadrinhava o horizonte, em lodos os sentidos, desconfiado duma armadilha, dada a presença do obstáculo que os impedia de seguir a sua marcha. A diligência parou junto do tronco, entre o praguejar do cocheiro e o ruído dos travões.

—Maldito trabalho! — grunhiu Jim, atirando a espingarda para cima das bagagens empilhadas no tejadilho do carro, com um colérico encolher de ombros —. Vamos deitar fora esse tronco, Tom; não podemos oferecer resistência, levando como passageiros a menina Power, a sua criada preta e esse trio de adiposos comerciantes, que, se ouvissem um tiro, logo se meteriam debaixo dos bancos.

— Tens razão, Jim. Estou admirado que ainda não tenham aparecido os bandidos — prosseguiu, olhando intranquilo para todos os lados — Desçamos, e os passageiros que nos ajudem.

— Que aconteceu, Tom? — perguntou uma voz firme e serena, de melodiosas modulações.

—Não sei ao certo o que é, menina Ketty — respondeu o cocheiro, aproximando-se da janela do carro da qual se debruçava a figura duma mulher jovem, morena, de rara beleza, que contaria uns vinte e quatro anos. — Há uma árvore atravessada na estrada que nos impede de passar, e pergunto a mim próprio se isto não é obra de salteadores, que tão frequentes vezes têm intercetado a diligência.

— Se assim fosse, já teriam aparecido — respondeu a rapariga, com a maior tranquilidade — Porque estariam à espera?

— Não sei, mas tudo isto é muito estranho; vamos apressarmo-nos a tirar o obstáculo, e pomo-nos a andar o mais depressa possível. Os senhores — acrescentou, dirigindo-se às rubicundas cabeças que, com assustada expressão, apareciam atrás da rapariga — terão de descer para nos ajudar. Esse tronco deve ser muito pesado e não creio que nós dois o possamos remover sozinhos; se todos ajudarem, mais depressa acabaremos a tarefa.

—Nós também — interveio Ketty, sem que se lhe notasse a menor alteração, enquanto no interior do carro se elevara uma babel de alarmadas exclamações. — Assim aproveitarei para estender um pouco as pernas!

— Os homens, sim, é que deverão dar-nos uma ajuda, mas a menina não se incomode protestou o cocheiro, enquanto abria a portinhola e a ajudava a descer —. Nós cinco chegamos para afastar a árvore num instante.

A rapariga saltou para o chão, com agilidade. Era alta, bem proporcionada, de formas firmes e harmoniosas. Atrás dela, desceu com grande dificuldade uma volumosa negra, resmungando ininteligíveis palavras. Em seguida, três homens cujas idades oscilariam entre os quarenta e cinco e os sessenta anos, nervosos e excitados, os quais dirigiam olhares medrosos para a vegetação que bordava o caminho.

Logo que se apearam, juntaram-se todos a um lado da estrada, e, por isso, não puderam ver uma sombra que, com felina agilidade e cautela, apesar da sua extraordinária corpulência, deslizava do outro lado, e desaparecia debaixo da diligência.

Resfolgando e suando, os cinco homens, entre os quais três mal podiam com os avantajados estômagos, conseguiram, por fim, retirar da estrada o grosso tronco de árvore, voltando a ocupar os seus lugares.

Entre os gritos do cocheiro, radiante de nada lhes haver acontecido, o estalar do chicote nos lombos dos cavalos, e o ranger da desconjuntada carripana, afastaram-se a galope do lugar onde temiam deixar a bolsa, quando não a própria vida.

— Que pensas disto que nos aconteceu, Jim?

— Não sei o que quer dizer, nem o que pensar, Tom! Sem dúvida que o tronco não foi para ali sozinho. Reparei que na berma da estrada havia um profundo sulco que o tronco deixou ao ser arrastado e podes ter a certeza de que se não deram a esse trabalho só para nos pregarem um susto!

— Então julgas que nos armaram a ratoeira para nos assaltar e que, depois, por qualquer motivo que desconhecemos, abandonaram o projeto?

— Não sei, Tom, não sei!... De qualquer maneira, fustiga os cavalos, porque só estarei tranquilo quando nos encontrarmos em Sunshine, diante dum copo de «whisky».

— Tens razão, Jim, penso da mesma maneira.

Durante uma hora a diligência continuou na sua correria, arrastada pelos seis fogosos cavalos de crinas ao vento; num galope incansável, bordejando as pequenas colinas que se erguiam à direita e à esquerda, cobertas de emaranhada vegetação, Para além, divisam-se os montes Mogollones, e, à direita, uma vasta planície onde crescia viçosa erva.

— Olha, Tom -- gritou, de repente, o vigia, mostrando ao companheiro a ameaçadora figura dum cavaleiro, no alto duma colina próxima; destacava-se nitidamente, contra o azul do céu, e parecia observá-los — Esses malditos afinal não desistiram! Fustiga os cavalos, a ver se conseguimos afastar-nos o mais possível! Veremos se conseguimos manter a distância.

—Malditos patifes! — vociferou o cocheiro, pondo-se de pé e fazendo estalar o chicote no dorso dos cavalos, que se lançaram em galope desenfreado —. Ainda nos faltam mais de duas horas para chegar à cidade, Jim! Não creio que consigamos livrar-nos desses cães!

A viatura parecia desconjuntar-se no mau piso da estrada, cheia de covas, arrastada pelos poderosos equídeos; estes eram incitados pelos gritos do condutor e pelo contínuo estalar do chicote. O veículo bamboleava dum lado a outro da estrada, em consequência da velocidade; voltar-se. De repente, de ambos os lados da estrada, surgiram alguns vultos que lhes tolhiam o passo, apontando os revólveres aos dois homens instalados na boleia.

—Atira, Jim! — gritou o cocheiro, enérgico —Desta vez, não pararemos!

No mesmo instante, soou a espingarda manejada por Jim e um dos bandidos rolou pelo chão, mortalmente ferido, por bala certeira. Dos lados, e sobre as cabeças dos dois homens silvaram as balas dos salteadores. O carro manteve-se a toda velocidade. O valente condutor, desprezando o perigo pôs-se de pé na boleia, fustigando os animais, a fim de imprimir maior velocidade à viatura.

De repente, sentiu-se arrastado do seu lugar por um choque no peito A seu lado, de novo, troou a espingarda, e os seus olhos quase velados, viram cair outro bandido ferido de morte. Com um esforço sobre-humano procurou segurar as rédeas que lhe fugiam das mãos, ao mesmo tempo que abandonava a excitação do perigo e da luta, invadindo-o uma estranha serenidade.

Já não viu como o bom Jim saiu também da almofada, ferido mortalmente, caindo sobre a garupa dum cavalo, e dali rolar para o chão, nem tampouco sentiu o salto do carro passando-lhe por cima do corpo inerte. Os assaltantes galoparam ao lado da diligência; dois deles adiantaram-se até aos cavalos da frente, sustendo-os pelas rédeas.

— Vamos, senhores! — comandou a voz dum dos bandidos, que parecia ser o chefe, aproximando-se da portinhola que abriu de repelão, com a mão esquerda, enquanto com a direita apontava um revólver para o interior —. Abandonem o carro, e depressa! Muito bem, menina Ketty — acrescentou a seguir. descobrindo-se e fazendo uma vénia trocista — já contava com a sua presença.

— Você é o famoso Sam Lou? — perguntou ela com a maior serenidade —. Ouvi falar muito de si, mas, afinal, recebi uma grande desilusão; O senhor não passa não passa de um vulgar salteador e assassino...

O homem estremeceu, como se o esbofeteassem, empalideceu de raiva, embora por breve momento. Depois sorriu, como se achasse graça à situação, e o seu rosto mostrou-se alegre, destacando-se uma dentadura sã e forte.

— Pois eu fui mais feliz! Não enganaram, ao afirmar-me a sua extraordinária beleza! Vejamos, agora, se também é verdade trazer consigo os quinze mil dólares que recebeu da venda do pequeno rancho que lhe deixou o seu tio Jesse.

— Parece muito bem informado sobre os meus negócios...

—Oh! Tanto como acerca dos restantes. Estes três nutridos cavalheiros que a acompanham, pertencem ao Conselho de Administração duma importante companhia de Chicago, e vêm encarregados de adquirir grandes quantidades de gado' para os seus matadouros! Ora como não tiveram grande êxito na visita efetuada aos ranchos desta região, voltam ao seu quartel-general, levando consigo grande parte do dinheiro que trouxeram para esse fim. Também os aliviarei do incomodativo peso dos dólares!

Os cinco passageiros já apeados da carruagem, encontravam-se ante quatro bandoleiros, poderosamente armados, fortes e resistentes.

— Pois confesso que não sinto desiludi-lo!... Recebi esse dinheiro, mas seria estúpido fazer esta viagem arriscando o meu dinheiro... Passeia por Winthrop, onde há uma sucursal do meu Banco.

Naquele momento, ouviram-se os passos dum cavalo que se aproximava, e os prisioneiros voltaram a cabeça naquela direção, na esperança de qualquer auxílio; desiludiram-se, ao verificarem a tranquilidade dos bandidos, que nem sequer moveram a cabeça quando chegou junto deles o novo cavaleiro.

—Alguma novidade, Lee? — inquiriu Sam Lou, voltando-se para o recém-vindo, sem haver respondido à afirmação da rapariga.

— Nada, Sam! — tranquilizou o outro —. A estrada está completamente deserta! Onde estão Jeff e Tate?

— Tombou-os o ajudante da diligência. Foram dois tiros certeiros infelizmente! E agora, menina Ketty prosseguiu, volitando.se para a rapariga—parece-me que lamentará não trazer consigo esse dinheiro! Ver-me-ei obrigado a levá-la comigo, até que um dos meus homens vá ao Banco, com um cheque seu, levantar aquela importância.

— Você não levará a minha menina para parte nenhuma, seu monstro! — protestou a negra, que não deixara de resmungar desde o começo do assalto —. Ai, menina Ketty! Eu bem lhe disse que não era bom a menina viajar sozinha!

— Cala-te, monte de banha — riu, divertido, o bandido —. E não te preocupes que não te roubaremos nada! Senhores, — acrescentou, dirigindo-se aos três cidadãos de Chicago — venha o dinheiro.

— Um momento, senhor! — interveio Ketty, intensamente pálida —. É verdade não trazer comigo o dinheiro, mas prefiro entregá-lo, quando e como quiser. Não é preciso que me raptem, pois dou-lhes a minha palavra do honra que lhe entregarei o dinheiro, da forma que quiser.

— Você é urna mulher, e eu seria um doido rematado, se acreditasse na sua palavra. É muito mais seguro acompanhar-me e, quem sabe?, — acrescentou com um olhar intencional — talvez me resolva a ficar consigo. Encontro-me só, e...

Não pôde concluir a frase. A rapariga, com o rosto congestionado pela vergonha e pela ira, deu-lhe dois murros com tal violência que, colhendo-o desprevenido, fê-lo cair redondo no chão.

Houve um movimento de assombro. Todos os olhares se fixaram no salteador, esperando uns, e receando outros, a sua reação; mas ainda Sam Lou não recuperara os movimentos, quando soou uma gargalhada sonora, alegre, cantante. Uma gargalhada era tudo quanto menos se podia esperar naquelas circunstâncias.

Num só movimento, todas as cabeças se voltaram na direção da risada. Tranquilamente recostado à traseira do carro, apontando contra os bandidos as negras e ameaçadoras bocas de dois «colts», estava um homem. Franco e despreocupado sorriso emoldurava-lhe o rosto duro e atraente. Em qualquer lugar aquele desconhecido faria voltar a cabeça a homens ou mulheres, pois ele era a personificação da força e da audácia. Ninguém podia imaginar donde viera.

— Cuidado, amigos — recomendou a voz agradável do homem, misto de Hércules e Apolo, com a pronúncia arrastada dos oriundos do Texas —. Deixem cair os seus brinquedos, porque talvez os incomodem.

A surpresa foi tão grande e havia tal força e decisão naquela figura de quase um metro e noventa de altura, que os quatro bandidos não hesitaram em obedecer, enquanto Sam Lou, no chão, com as mãos muito perto das armas que metera nos coldres, esperava um descuido do inesperado intruso, para o liquidar.

—Eu não faria isso, Sam! — sorriu aquele, adivinhando-lhe as intenções. —É melhor deixares esse gesto para outra ocasião em que não estejas caído aos pés de tão formosa senhora!...

Por momentos pareceu que a troça excedia tudo quanto o bandido poderia suportar. As suas mãos enclavinharam-se como garras; no entanto ao compreender que o seu intento seria um louco suicídio, afrouxou os músculos e levantou-se devagar.

— Talvez tenhas razão! — concordou —. Esperarei nova oportunidade. Não será mau recordar que sempre ri melhor aquele que ri no fim. Para já, levas a vantagem de saber o meu nome, enquanto eu ignoro o teu. Queres dizer-me como te chamas, para, quando nos encontrarmos, sermos já velhos amigos?

—Porque não, meu caro Sam?! Chamo-me Roberto do Rojas. Meu pai era espanhol — explicou—. Mas os meus amigos, tratam-me por Rob. E já agora, falando de provérbios, prefiro o que diz: «Candeia que vai adiante, alumia duas vezes».

—Bem, Rob. Falaremos disso noutra ocasião. Podemos ir?

— Um momento, querido Sam! Creio que tens em perspetiva uma larga caminhada, e não posso consentir que vás tão carregado. Com muito cuidado, e não empregues a mão esquerda, pois a teres de ficar maneta é preferível que seja da direita, tira o cinturão e deita-o para o chão.

Calou-se por um instante.

—Muito bem, assim. Agora tu, — prosseguiu, dirigindo-se a um dos bandidos que, imóvel e silencioso, conservava as mãos na cabeça para evitar equívocos, — vai aos cavalos e deita fora as espingardas. Toma cuidado, não te escondas atrás dos animais para me fazeres alguma partida!... Sempre te ficam as pernas a descoberto, e é uma pena ficares coxo para toda a vida.

—Mas vai deixar em liberdade esses ladrões e assassinos?! — interveio a rapariga, até ali muda de surpresa.

— É verdade, menina Power! — respondeu, com aquele estranho sorriso que o tornava muito mais novo — Esperei que algum destes senhores me espicaçasse o que permitiria mandá-los para o inferno; mas, em vista da sua prudente conduta, e de que preciso de conduzir o carro, não posso ocupar-me deles. Além disso como não confio nestes senhores de Chicago, pois considero-os incapazes de guardarem estes bandidos e ainda porque repugna ao meu estômago matá-los a sangue frio, o melhor é deixá-los ir, despedindo-nos deles com os nossos lenços brancos. Já ouviste, querido Sam? — continuou, voltando-se para o chefe dos bandidos… —. Podes abandonar o campo.

— Adeus, Rob. — saudou aquele, acenando com mão enluvada, do alto do fogoso cavalo, enquanto os seus homens se afastavam a galope, ansiosos de se encontrarem longe daqueles sítios e contentes de saírem vivos de tal aventura —. Não esquecerei o que aconteceu hoje e havemos de encontrar-nos outra vez.

—Adeus, Sam, não é preciso mandares-me nenhuma prenda de Natal para demonstrares o teu agradecimento — correspondeu, trocista.

Quando o último dos bandoleiros desapareceu numa curva da estrada, Rob rompeu numa série de gargalhada até saltarem-lhe as lágrimas, ante a admiração dos passageiros da diligência que o olhavam assombrados, perguntando a si próprios se o desconhecido não estaria doido.

— Pode saber-se a que acha tanta graça? —perguntou a rapariga olhando-o intrigada.

— Não me diga que isto tudo não tem imensa graça! — respondeu um pouco mais tranquilo—. Imagine que nos meus dois revólveres não há mais que uma bala! — e voltou a rir à gargalhada —. A cara que eles fariam se o soubessem!

Ketty olhou-o com assombro e horrorizada, pensando o que teria sucedido, se efetivamente, os bandidos, percebessem que tudo não passava de fanfarronada.

— Mas como é possível?! — inquiri, admirado, um dos homens gordos, que resultava dum ridículo extraordinário ao lado daquele jovem gigante, de ombros descomunais e cintura estreita —. Não é possível que lhes fizesse frente com um revólver descarregado, e outro quase!

— Não é possível, hem? — respondeu o rapaz, com serenidade, empunhando as armas que pouco antes guardara no cinto, e disparando para o ar.

Um dos revólveres troou ruidosamente, e logo se ouviram os estalidos secos dos percutores batendo em falso.

 Meu Deus! — gemeu o homenzito, aterrado, ante o que podia ter acontecido.

— Bem, senhores — gargalhou Rob, divertido com a expressão apavorada dos circunstantes —. Agora possuímos um verdadeiro arsenal, de molde a cada um poder escolher a arma que quiser. Para já, vou substituir um dos meus revólveres com cinturão e tudo, pelos de Sam Lou que são uma verdadeira obra de arte. Garanto-lhes ser um dos meus sonhos, possuir um revólver tão moderno, como este, de coronha de nácar e coldre mexicano, de grande categoria! Uma preciosidade! — acrescentou, pondo-os à cintura, depois de abandonar os seus —. Ficarei também com a espingarda.

Num momento, todos apanharam o armamento abandonado no chão, e puseram-no no carro, exceto as armas e as munições que Rob guardara.

—Senhores passageiros, todos para os seus lugares! gritou alegremente o rapaz, subindo para a boleia e empunhando as rédeas, que tirou das mãos inertes do desgraçado cocheiro.

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