segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

PAS831. Vozes na noite escura

Carol abandonou a cerca e dirigiu-se lentamente para o rancho. Ia só mas não o sentia. De cabeça baixa passou pelos últimos grupos de trabalhadores que se retiravam, após o jantar no amplo refeitório.
O silêncio que principiava a envolver tudo só era quebrado, de quando em quando, pelo trinar de uma viola ou pelos latidos de um cão.
Uma Lua quase cheia elevava-se no horizonte, emprestando uma claridade fantástica aos edifícios da propriedade. Ergueu os olhos para a casa; vendo luz no escritório do pai perguntou a si própria que motivos o levariam a permanecer acordado até tão tarde.
Subiu para o quarto, que ficava precisamente por cima do escritório, mas não se deitou. A noite parecia-lhe bela demais para que o fizesse. Assomou-se à janela e não tardou que as lágrimas lhe inundassem os olhos.
—Pobre Bertie — murmurou.
Mas sabia que não podia andar a enganar-se por muito tempo.
Não chorava por causa de Bertie cujo ferimento, no fim de contas, era superficial. Chorava pelo mesmo motivo que tem feito chorar tantas raparigas, uma ou mais vezes na vida: uma ilusão fracassada. Chorava por um sonho que, embora fugaz, lograra deixar um rastro na sua alma. Não sabia havia quanto tempo se encontrava a janela.
Sabia apenas que devia estar havia muito, pois todos os ruídos do rancho, incluindo o latido dos cães, haviam desaparecido. Ia retirar-se para a cama, quando lhe pareceu ouvir vozes no escritório. Reconheceu logo urna delas.
Era a de seu pai. Não podia, contudo, distinguir as palavras. Achou muito estranho que se encontrasse alguém com ele àquelas horas, mas também podia ser que o pai estivesse a falar sozinho. Descobrira recentemente que o seu progenitor possuía esse hábito.
Procurou deitar-se mas havia algo que lhe impedia a realização do intento. Era como se uma força misteriosa a grudasse ao chão. Fez um esforço e dirigiu-se para a cama. Nesse instante, o ranger abafado de uma porta chamou-lhe a atenção. Era a porta do escritório. Foi até ao corredor.
Nada mais escutou, apesar de ter apurado o ouvido. Depois, pareceu-lhe sentir gente à porta principal da casa. E, então, decidiu-se. Desceu rapidamente a escada, mas sem fazer ruído, e chegou ao rés-do-chão. Levava na mão o revólver, uma arma. pequena, de cabo nacarado, oferta do pai quando ela festejara os seus vinte anos.
Com efeito, a porta estava aberta e no seu limiar via-se a silhueta de um homem. Ela não seria capaz de dizer se aquela sombra tentava entrar em casa ou se procurava sair.
— Não se mexa — bradou. — Quieto!
A sombra deu um salto e desapareceu no exterior. A jovem correu para a porta e ainda pôde ver o vulto a atravessar o vasto terreiro que ia da residência até às outras casas da propriedade.
A rapariga preparava-se para regressar ao quarto, quando apanhou um dos maiores sustos da sua vida. Sentiu no ombro o peso de uma mão, ao mesmo tempo que uma voz lhe dizia:
—Porque não te deitaste, Carol?
A jovem recuou instintivamente e abriu a boca para soltar um grito, embora já tivesse reconhecido a voz do pai.
— Que significa isto, pai?... Havia aqui um homem. Eu vi-o. Desapareceu por ali... É preciso segui-lo!
— Não — reSpondeu o pai. — Não é necessário irmos atrás dele. Posso encontrá-lo, quando quiser realmente encontrá-lo.
No auge do espanto, Carol perguntou:
— Que representa tudo isto? — Esse homem não é um inimigo, querida. Pelo contrário... É uma pessoa que... Digamos que me mantém ao corrente do que se passa «no outro lado». Vamos, querida... Deves ir descansar...
— Sim — disse ela, obediente.
Beijou o pai na face e dirigiram-se ambos para a escada. Martin Stanzer seguiu-a com o olhar e, logo que viu Carol fechar-se no quarto, recolheu aos seus aposentos.
Mas Carol não se deitou. Precisamente, sob a sua janela, encontrava-se o pequeno alpendre que protegia um dos ornatos que quebravam a monotonia da fachada. Quando era criança, tinha saltado muitas vezes para esse telhadinho e dali para o solo, sem que seus pais o soubessem. Havia muito tempo que não executava aquela espécie de acrobacia, mas o seu corpo era forte e ágil. Gastou apenas dois segundos para sair pela janela e ficar em cima da cobertura. Esta aguentou perfeitamente o peso da jovem.
«No fim de contas — pensou — a dona do rancho sou eu. Posso muito bem sair por uma janela, se me der na gana.»
Saltou para o chão e correu, sem ruído, até chegar ao extremo do imenso pátio. Dali em diante, o sol descia ligeiramente. Ela tinha visto a sombra desaparecer naquele sítio.
Parou, ofegante. No peito, sentia o bater descompassado do coração. Porque é que tinha feito tudo aquilo era algo que não conseguia compreender, agora que se encontrava na obscuridade, sem o latido familiar dos cãos e não muito perto do dormitório dos vaqueiros de seu pai que poderiam ajudá-la, em caso de perigo. Mas a verdade é que se encontrava ali. Olhou para a estrada ladeada de álamos e, de súbito, pareceu-lhe divisar um vulto no meio do arvoredo.
Carol vestia uma camisa muito escura e calças de veludo negro, pelo que não se tornava facilmente visível. Todavia, sentiu um enorme desejo de fugir.
Com efeito, umas sombras moviam-se entre as árvores. Era um homem que conduzia, pela rédea, um cavalo. As palavras do pai haviam sido claras e terminantes e Carol perguntava, a si própria, se não deveria tê-las acatado. À sua frente estava a pessoa que podia esclarecer várias coisas, qualquer das quais «muito» importante para ela.
— Não se mexa! — ordenou. — Estou a apontar--lhe o meu revólver...
A figura pareceu estacar. Foi então, com verdadeiro terror, que a rapariga verificou tê-la perdido de vista. Desde, que não se movesse daquele local, continuaria perfeitamente invisível.
— Apareça — disse. — Disparo se não sair do arvoredo!
Nesse instante, surgiu das árvores um cavalo, sozinho, que avançou para ela em passo vagaroso. Sentiu um calafrio a percorrer-lhe a espinha. Onde estaria o cavaleiro?
Voltou-se.
Era uma jovem corajosa, mas não estava habituada a situações como aquela. As pernas puxavam-na para trás, para o rancho, e o cérebro dizia-lhe que, se desejava «saber a verdade», teria de caminhar para diante. Mas os seus pensamentos foram interrompidos bruscamente. Viu-se agarrada por dois braços robustos e até ela chegou o ruído de uma respiração. Abriu a boca para soltar um grito, mas não conseguiu fazê-lo porque uma mão enluvada lhe tapou os lábios.
— Não guinche — disse-lhe uma voz ao ouvido. —Não lhe vou fazer mal nenhum.
Ela debateu-se, quase enlouquecida de pavor, mas não logrou libertar-se. Julgou reconhecer aquela voz, apesar de tê-la apenas ouvido num sussurro. Obrigaram-na a voltar-se e a mão deixou de tapar-lhe a boca.
Aspirou profundamente e quando quis gritar não pôde fazê-lo. Dois lábios delgados e ardentes quase que lhe roubaram o fôlego.
Sentiu-se desmaiar e as forças abandonaram-na. Soltaram-na imediatamente, tão de súbito que esteve prestes a cair no chão. Um ruído de passos, um vulto que salta para o cavalo... e Carol compreendeu que havia ficado só E tinha perdido a vontade de gritar.

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