terça-feira, 9 de janeiro de 2018

PAS825. O singular sentido de humor de um tio testamenteiro

BOISE— 1855

Como se os seus movimentos houvessem sido previamente sincronizados, os dois homens chegaram ao mesmo tempo à porta da casa.
Qualquer observador casual tê-los-ia tomado por irmãos, porque existia entre ambos certa semelhança física. Não eram irmãos, todavia.
Um dos indivíduos, alto, magro, de cabelo castanho e olhar inteligente, trajava como um modesto vaqueiro: casaco curto de bombazina verde e calças de montar, com botas de meio cano. O outro calçava botas altas nas quais batia, de quando em quando, com uma badine de couro e vestia jaqueta de veludo, colete amarelo com ramagens e gravata cinzenta. Foi este último quem entrou em primeiro lugar. Iam ambos avançar ao mesmo tempo, mas o vaqueiro afastou-se.
Galgaram, depois um atrás do outro, os cinco degraus que conduziam ao escritório de «mister» Nehemiah Aaronson, o advogado mais solicitado e mais bem remunerado de Boise, no Idaho.
A porta abriu-se e um corredor levou-os a uma sala recheada de móveis de estilo isabelino, feios, mas aparatosos. «Mister» Aaronson pôs-se de pé, por detrás da secretária monumental. Ao sagaz judeu bastou apenas uma olhadela para diferençar os dois homens. –
— Bons dias — disse, com uma ligeira inclinação de cabeça.
— Suponho que o senhor será Karl Stanzer, não é assim? — acrescentou, dirigindo-se ao que entrara primeiro. O homem do colete amarelo assentiu.
Tinha olhos pardos, penetrantes, patilhas compridas e um pequeno bigode. As suas mãos pareciam não poder sossegar nem por uns instantes.
— E o senhor, portanto, deve ser Martin Stanzer —continuou, voltando-se para o outro.
Martin sorriu e moveu a cabeça.
— Bem, cavalheiros. Creio que os senhores não ignoram o motivo que me levou a chamá-los.
— Temos uma vaga ideia — disse Martin com um sorriso simpático.
— Mas preferimos que nos esclareça. No fim de contas, o senhor está na posse de todos os pormenores. Desejo frisar que me parece estúpido perder tempo com preâmbulos — observou Karl Stanger. —Entremos diretamente na questão.
«Mister» Aaronson mirou-o com um ar ressentido, mas não disse nada. Fez soar uma campainha e logo apareceu um dos seus empregados sobraçando um volumoso «dossier». Extraiu da pasta várias folhas de pergaminho de excelente qualidade e principiou a percorrê-las com o olhar.
— Como muito bem disse o seu primo — comentou, fitando Martin — prescindiremos dos pormenores. O senhor Laurent Stanzer, mais conhecido por «Alphabeth» Stanzer, irmão de vossos pais, faleceu na Europa. Deixa uma fortuna avaliada em cinco milhões de dólares. Salvo algumas disposições de somenos importância, todo esse dinheiro vai parar às vossas mãos.
Martin engoliu em seco. Era um homem de uns trinta e cinco anos, rosto juvenil e ar saudável. Karl, por seu turno, embora pretendesse dominar a emoção, mal o podia conseguir. As mãos e o queixo tremiam-lhe.
—Santo... Santo Deus! — murmurou Martin. — Não imaginava que existisse essa quantia em todo o mundo...
— Pois existe, senhor Stanzer, existe — disse \o advogado. — E essa importância pertencer-vos-á com... — neste momento um feixe de pequenas rugas surgiu--lhe em torno dos olhos. — Com a condição... — tossiu e calou-se.
— Vamos, fale! — exclamou Karl Stanzer, ofegante, enxugando o suor com um enorme lenço verde. — Não... Não há nada no mundo que eu não fizesse por essa soma!
— Acredito-o, senhor Stanzer — replicou friamente o judeu.
— Acredito-o. Pois bem, a condição é que os senhores serão obrigados a viver separados num espaço não superior a dez milhas. Para ser mais claro: se um de vós for morar a mais de dez milhas de distância do outro, perderá automaticamente o direito ao dinheiro.
A cara de Karl Stanzer não era nada agradável de se ver naquele momento.
— Não me pode fazer isso a mim! — disse numa voz estrangulada, enquanto volvia para o primo os olhos espantados. — O tio «Alphabeth» sabia perfeitamente que eu odeio este indivíduo, que o desprezo, que não posso suportar sequer a sua presença...
—É possível — admitiu o judeu — que o seu tio soubesse isso, mas também toda a gente lhe conhecia o seu singular sentido do humor.
— Karl e eu nunca nos pudemos tolerar — observou Martin num tom calmo — embora não saiba porquê. Quero dizer, embora eu ignore as origens do caso. Apenas sei que ele me odeia.
— Se te odeio! — exclamou o outro, pondo-se de pé, num rompante.
— Detesto-te! Seria capaz de te matar agora mesmo! Odeio-te de tal maneira! Matava-te!...
— Se fizesse isso perderia dois milhões e meio de dólares, senhor Stanzer — objetou o judeu fitando o testamento. — Não podem matar-se um ao outro. Proíbe-o o vosso defunto tio. Karl parecia prestes a explodir. Martin voltou-se para o advogado.
— E é tudo, «mister» Aaronson?
— Não. O senhor «Alphabeth» Stanzer tem... tinha umas terras no condado de Elmore, terras regadas pelo rio Boise. Sugere no testamento que poderiam muito bem construir ali as vossas casas, separadas, caso o prefiram, por uma distância de dez milhas, isto é, pela distância limite.
Os olhos de Martin brilharam.
— Terras de amanho e de gado?
O seu interlocutor assentiu.
— Assim é, senhor Stanzer. Terras excelentes para o cultivo e para o gado.
— Sou vaqueiro, «mister» Aaronson, e o meu maior sonho é o de poder vir a ter, um dia, um rancho com a maior grandeza possível, onde aplicasse à agricultura e ao gado todas as descobertas recentes. Aceito o alvitre — disse Martin, com os olhos a reluzir.
— Mas não eu — exclamou Karl, com as mandíbulas retesadas. — Terás de procurar outra coisa.
«Mister» Aaronson voltou a mirar os papéis, muito divertido, ao que parecia.
— Pois, nesse caso, o senhor Stanzer pode perder o seu dinheiro — advertiu-o.
— O vosso tio especifica que, se as terras agradarem a um dos senhores, o outro terá de conformar-se. Só na hipótese de nenhum dos dois as querer é que poderiam escolher outro local. Está bem explícito... senhor Stanzer.
— Maldito seja o senhor e maldito seja «Alphabeth»! -- ululou Karl. Depois, com um esforço visível, conseguiu dominar-se. — Está bem — disse, por fim, numa voz apagada. — Aceito. Há alguma povoação nessas terras?
— Uns quantos casinhotos de rendeiros, precisamente nos limites da propriedade.
— Bom... — quedou-se pensativo, um momento. E em seguida continuou: — Edificarei lá uma povoação, uma verdadeira cidade. Sempre ambicionei possuir uma bela casa de jogo.
Aaronson ergueu o sobrolho, com um ar de desaprovação.
— Casa de jogo?
— Sim, «mister» Aaronson. Não sabe o que é? Um sítio onde — voltou-se e mirou o primo com uma tal maldade que Martin estremeceu — deixem o dinheiro, todos os sábados, os vaqueiros, os rancheiros e os pesquisadores de oiro. Sim, é isso o que eu pretendo. E raparigas formosas que falem ternamente aos rapazes cansados após uma longa cavalgada. E essas modernas máquinas, onde por um níquel podem sair duzentos... ou não sair nenhum. Sim, «mister» Aaronson, a perspetiva já não me parece tão desagradável.
— Mas permita-me que lhe diga, senhor Stanzer, que isso é uma indecência — disse o velho judeu, com uma expressão de repulsa.
Karl respondeu:
— Indecente ou não, com o meu dinheiro posso fazer o que me pareça bem, não é verdade?
— Sim, com efeito — o advogado examinou atentamente várias cláusulas do documento, desejoso de descobrir uma que impedisse aquilo.
— Sim, com efeito acrescentou o ancião, um pouco desiludido. — Pode fazer com o seu dinheiro o que lhe der na gana.
— Pois então — Karl, com os olhos faiscantes, não deixava de observar, o primo — pois então farei o que disse. E mostrarei a este maldito labrego que não irá rir-se de mim...
— Escuta — disse Martin erguendo-se. — Começo a fartar-me de ti. Faz o que quiseres, mas não julgues que podes ir tão longe quanto ambicionas.
— Silêncio, cavalheiros! Não admito brigas no meu escritório! — exclamou Aaronson. E depois, voltando-se para Martin Stanzer:
— Desejo-lhe as maiores felicidades, senhor Stanzer e espero que triunfe nos seus intentos. Se eu tiver a sorte de o senhor continuar a confiar-me os seus assuntos não restam dúvidas de que apenas haverá motivo para ambos nos felicitarmos.
— Evidentemente — disse Martin estendendo-lhe a mão. — Ninguém melhor que o senhor poderia fazê-lo...
— Os meus negócios serão tratados por outro advogado, claro — resmungou Karl.
— Nem por um instante duvidei disso — respondeu Aaronson. — Não lhes tocaria nem com uma vara de quinhentas jardas de comprimento.
Karl Stanzer, com os olhos brilhantes de raiva, de fúrias, e, ao mesmo tempo, de satisfação, abandonou o seu lugar.
— Ver-nos-emos — disse, já da porta. E desapareceu.
— O senhor veio sozinho a Boise? — perguntou o advogado a Martin.
— Não. Minha mulher e minha filha acompanham--me — respondeu este. — Minha filha — acrescentou com um contentamento mal reprimido — tem agora seis anos.
— Quero que jantem comigo — respondeu o advogado. — Não. Não admitirei desculpas de qualquer es-pécie. E... — hesitou um pouco — posso saber o que se passa entre os senhores, que são primos e da mesma idade?
— Isso — explicou Martin, encolhendo os ombros —é uma história longa e complicada. Sabe? Educaram-nos juntos, por ordem de «Alphabeth», quando os pais de Karl e os meus morreram no mesmo acidente. Eis o sentido de humor desse homem: quando Karl desejava uma coisa davam-na a mim. Não interessava que eu a entregasse imediatamente ao meu primo. Ele já não a aceitava. Criou-me ódio. Creio que era isso o que «Alphabeth» pretendia. Por fim, cada um seguiu caminhos diferentes, mas antes, há sete anos, conhecemos a que hoje é minha mulher. Ela escolheu-me a mim — acrescentou com simplicidade. — Ao que parece, Karl nunca me perdoou esse triunfo.
— Bem, senhor Stanzer. Vá procurar a sua esposa e a sua filhinha e venham, em seguida, buscar-me. Conduzi-los-ei a casa, na minha «charrette». Sente-se satisfeito com esta inesperada fortuna, «mister» Stanzer? — disse Aaronson.
Os olhos de Martin brilharam.
— Imagine. O sonho de toda a minha vida. Um rancho... Um rancho modelo...
— Magnífico, senhor Stanzer! Magnífico!...
 
*************************************************************************

Quinze anos depois, numa maravilhosa tarde de Verão, um homem chegou a Stanzerville. O sol tostara--lhe a pele, dando-lhe um ar saudável. Era magro, mas muito largo de ombros e musculoso, de rosto afilado e olhos acinzentados.
Deteve-se à entrada da povoação, apoiou o cotovelo no arção da sela e o queixo na mão enluvada. Diante dele estendia-se 'um amontoado de casas, a maior parte das quais eram «saloons» ricamente ornamentados, hotéis, botequins e lojas. Àquela hora, próxima do anoitecer, as ruas iam-se enchendo de urna multidão em que predominavam os homens. Quando a noite caiu definitivamente e se acenderam as luzes de gás, tudo aquilo apresentava um aspeto sumamente agradável. A luz dava mais animação ao ambiente. O forasteiro dirigiu-se pela Main Street, olhando ora para a direita, ora para a esquerda. Por fim, uma tabuleta atraiu a sua atenção:

«STANZER'S»

 Apeou-se do cavalo, prendeu-o à barra ali colocada para esse efeito e penetrou no local.
Este homem, respondendo ao apelo de um amigo, procurava o rancho Stanzer’s

Sem comentários:

Enviar um comentário