sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

PAS824. À procura da jovem de olhos cinzentos

Quando acordou, a luz do sol entrava como uma tromba de fogo pela janela estreita da cela. Abriu e fechou os olhos até se habituar à claridade.
Recordou o sucedido com Dora e disse para consigo que tivera um sonho maravilhoso, mas ao esfregar os olhos sentiu os ferimentos e os adesivos que ela lhe pusera e descobriu com prazer que fora tudo verdade.
«Uma aventurazinha?», perguntou a si mesmo.
Mas não lhe agradou o epíteto. Notava que Dora deixara vestígios na sua alma e que era um insulto considerar aqueles maravilhosos momentos como uma aventura igual a tantas outras que surgem na vida.
No entanto, fora o que ela insinuara. Dissera-lhe que partisse de Llano sem se despedir e que considerasse o que se passara como uma simples aventura.
Tinham perdido a cabeça, esta é que era a verdade, e corrido o risco de praticar algo irreparável. Logicamente, a rapariga, quando reagira, devia ter-se sentido envergonhada.
Dennis tinha a certeza de que Dora era boa, era pura, embora ...
Sentia a cabeça vazia. Não quis pensar em nada até se recompor. Tinha sede, como se tivesse bebido muito na noite anterior e agora sofresse os efeitos da ressaca.
Para se deitar na tarimba, tirara apenas o chapéu, • o cinturão e as botas. Calçou-se e pôs-se em pé, disposto a não pensar em nada, e distraiu-se a observar os desenhos da cela e as frases escritas.
Os desenhos eram todos pornográficos, feitos por diversas mãos, mas todos imperfeitos, e convertiam em monstros horríveis figuras humanas que desenhadas por um artista seriam encantadoras.
Os textos, ou eram datas, ou perguntas e insultos.
Um deles parecia muito recente. Dennis Blake juraria que não fora gravado havia mais de um mês. No solo húmido, colado, estava o pó vermelho que se desprendera do tijolo, o que indicava que, provavelmente, mais ninguém entrara ali. O texto, escrito em maiúscula, com notável falta de jeito, dizia: «Estou inocente! Senhor juiz, Octave Block está inocente!»
Dennis sentiu como um vácuo dentro de si. Imaginou o condenado à morte a arranhar com desespero a parede, para deixar gravado nalgum lado o protesto da sua inocência.
Não insultava, o juiz; somente dizia que estava inocente. Talvez considerasse que poderia ser acreditado por alguém que viesse a ocupar aquela cela, com o que se contentaria ou se sentiria talvez um pouco compensado.
Teria gostado de conhecer aquele homem. Imaginou-o pequeno, com os cabelos revoltos, os olhos desmesuradamente abertos ...
O nome não lhe dizia nada; nem sequer sabia que em Llano se realizara uma execução um mês antes. Eram muito poucas as notícias que chegavam a Menard,
e em todo o caso a morte de um homem seria a última a chegar. A não ser que fosse uma personagem famosa.
Voltou a ler a inscrição e sentiu outra vez invadi-lo a mesma profunda e dolorosa tristeza. Ao ler a palavra «juiz», recordou-se de Dora, sorriu, encolheu os ombros e murmurou:
— Lamento, Octave.
Pegou no chapéu e pô-lo na cabeça. Deixara o cavalo na cavalariça que pertencia ao escritório do xerife. Dirigiu-se para lá, selou-o, deu-lhe de comer e pensou no que devia fazer.
O desejo de se despedir de Dora, pelo menos de a ver pela última vez e de se convencer de que não era um sonho, pôde mais do que todo o resto. Tirou o cavalo da cavalariça, fechou a porta, montou e afastou-se.
Teve de se orientar para saber como chegar a casa do juiz. Encontrou a travessa pela qual desembocara na Main Street na noite anterior e seguiu-a. Antes de acabar de a percorrer, divisou a vistosa moradia do juiz.
Debaixo da luz do sol, que brilhava esplendoroso já muito alto, ainda era mais bonito aquele edifício. No jardim havia rosas e gerânios, girassóis e violetas.
Um homem regava as plantas, com indolência, segurando com aia duas mãos um enorme regador. Não levantou a cabeça quando o cavalo de Dennis se deteve, mas fê-lo quando o jovem desmontou.
— Bons dias, xerife — cumprimentou-o o jardineiro, pousando o regador no chão. — Posso servi-lo nalguma coisa? O senhor donde é?
— Sou o xerife de Menard e certamente me poderá dar uma informação. O juiz está?
— Sim, mas a dormir ... Lamento, mas tenho ordem de não o acordar. — Melhor — sorriu Blake.
— Precisamente o que quero é que não o acorde. Pode chamar «miss» Dora sem o acordar?
— Não o entendo.
Dennis sorriu, compreensivo.
— Quero que diga a «miss» Dora que o xerife de Menard a deseja ver ... mas procure não acordar o juiz.
— Ouça ... — o jardineiro olhou-o com pasmo, mas depois sorriu. — Há quanto tempo não vinha a Llano ?
— Bem, pelo menos há quatro anos. Porquê.
— Nada. Assim já se compreende.
— O que é que se compreende ?
— Que não saiba nada.
Dennis disse para consigo que o juiz devia ser um tipo despótico, que não permitia que lhe fizessem a corte às criadas, ou então Dora ...
— Miss Dora — disse o jardineiro, sublinhando as palavras — morreu.
— Como ?! — gritou Dennis, sentindo que o sangue lhe fugia da cabeça.
— O médico disse que da comoção.
— Repita isso ... Disse que morreu?
— Exatamente.
— Meu Deus!
O coração pulsou-lhe desesperadamente dentro do peito, com a mesma força com que o fizera na noite anterior, mas por motivo muito diferente.
De repente, recordou algumas palavras dela, quando insinuara que morreria. Até chegara a dizer que seria envenenada.
— Onde está?
— Quem?
— Ela! — gritou, desesperado. O jardineiro pareceu aborrecer-se.
— No cemitério ... — disse com uma naturalidade que chegava a ser insultante.
Dennis agarrou-o pela camisa e sacudiu-o brutalmente.
— Fala claro, maldito; de contrário, parto-te a cara.
O homenzinho empalideceu intensamente, julgando ter caldo nas mãos de um louco.
— Pergunte a quem quiser! — gritou com voz suplicante. — «Miss» Dora morreu e foi sepultada no cemitério da cidade.
— Mas ... quando ?
— Há um mês ...
A camisa rasgou-se nos dedos de Dennis. Esteve quase a esbofeteá-lo, mas por fim compreendeu que se tratava de uma confusão, largou-o, acalmou-se e disse:
— Eu refiro-me a «miss» Dora ... a actual criada do juiz.
— «Miss» Dora, a criada do juiz, morreu há um mês — repetiu o jardineiro, a medo.
— E como se chama a actual criada?
— Não temos nenhuma. Não é fácil arranjar uma, no Oeste, como deve saber. Dora era do Leste e veio com a mãe, que também morreu, mas há muitos anos.
— Não pode ser! — gritou Dennis.
— Nesse caso, o juiz informá-lo-á melhor do que eu — respondeu o homenzinho, pretendendo escapulir-se.
A mão do xerife agarrou-o e reteve-o.
— A rapariga a quem me refiro tinha os olhos cinzentos e nariz um pouco arrebitado; era muito bonita e devia contar uns vinte e cinco anos.
— «Miss» Dora tinha os olhos cinzentos.
— É a mesma que eu digo?
— «Miss» Dora tinha, pelo menos, a idade que o senhor diz... e, de facto, era muito bonita. Toda a povoação sentiu muito a sua morte.
Dennis julgou enlouquecer.
— Oiça, bom homem; eu estive ontem à noite com «miss» Dora. Compreende?
O jardineiro olhou-o como se se tratasse de um louco. A situação não era ridícula, era terrível para Dennis. 
— Não vive mais ninguém nesta casa?
— O senhor juiz e eu.
— Mais ninguém?
— Mais ninguém.
Dennis fazia um esforço desesperado para se acalmar; de contrário, teria amachucado a cabeça do jardineiro contra os gerânios.
— Chame o juiz.
— Não posso... Já lhe disse que...
Dennis não insistiu. Percorreu o carreiro de saibro e entrou na casa, sem dar ouvidos à voz do homem‘, que o chamava desesperadamente.
Parou no melo do corredorzinho, sem saber que direção tomar, pois ignorava onde dormia o dono da casa.
Ao ver a escadaria de mármore, teve a impressão de que o coração lhe subia à boca, deixando-lhe aquele sabor que tem a comoção.
Não fora um sonho e, portanto, era realidade, e se era realidade...
O jardineiro continuava a gritar. Calou-se de repente quando uma porta se abriu e apareceu um homem metido num roupão. Era de meia-idade, não devia ter ainda cinquenta anos, alto e esbelto; possuía cabelos prateados nas têmporas e feições correctas.
— Que barulho é este, Sam? — inquiriu com voz suave, olhando Dennis Blake dos pés à cabeça.
— Quero falar com o senhor... Pelo menos, parece mais cordato do que aquele estúpido — disse o xerife, adiantando-se.
— A hora é um pouco intempestiva, mas tratando-se da Lei... Sente-se, por favor.
Dennis recusou o convite. O juiz Austin Driffield, porém, sentou-se numa cómoda poltrona, tirou um cigarro de uma caixa de tabaco e acendeu-o. Depois, cruzou as pernas e dispôs-se a escutar Dennis, que, nervoso, tirara o chapéu e o volteava nas mãos.
— Quero que me diga onde está Dora.
— Dora? — o gesto de ignorar tudo pareceu perfeito.
— A sua criada.
— Sim... — Driffield expeliu uma baforada de fumo e repetiu: — Sim. Você é Dennis Blake, o xerife de Menard, a quem o nosso chefe de Polícia pediu que viesse para que se respeitasse a ordem na noite de sábado, não é verdade?
— Diga-me onde está Dora — pediu, raivoso, o jovem xerife.
— Era o que ia fazer. Você talvez a tenha conhecido, e como esteve ausente não soube da sua triste sorte. Dora Young morreu no dia vinte e três de Agosto, isto é, faz hoje... bem, exatamente vinte e oito dias. Lembro-me perfeitamente porque, além de ser uma excelente criada, a sua morte coincidiu com uma execução,
Dennis deixou-se cair na poltrona colocada diante da que o juiz ocupava. Este estendeu-lhe a caixa de tabaco, mas ele recusou-a com um gesto.
— Escute-me... escute-me bem — disse Dennis, nervosamente. Ontem à noite conheci uma rapariga alta, de olhos cinzentos, muito bonita, que se chamava Dora e era criada, nesta casa. Onde está?
O juiz fez um gesto que denotava que estava disposto a ter paciência com ele.
— Não sei quem possa ser essa rapariga a quem se refere, embora se pareça tanto com a criada que tive. Mas pode estar certo de que nada tem a ver com ela.
—Não?
Dennis voltou a levantar-se.
— Estivemos aqui, compreende? Subimos essa escada de mármore até ao seu quarto. Um quarto de paredes cor-de-rosa, com lençóis cor-de-rosa na cama, da mesma cor do vestido que ela trazia.
— Lamento — disse o juiz, levantando-se também. — Não tenho nenhuma criada; é tudo quanto posso dizer-lhe... embora me permita pôr em dúvida o que acaba de me contar.
— O senhor não estava cá ontem à noite.
— Não, evidentemente; quase nenhuma noite de sábado passo em Llano. Nesse pormenor não posso desmenti-lo, se afirma que esteve aqui... Contudo, não acredito em aparições; Dora Young morreu e, portanto, não pôde estar consigo ontem à noite.
— Que fazia então eu aqui?
O juiz sorriu compreensivo.
— Bebeu?
—Não!! — gritou Dennis.
Desesperava-o a situação. Colérico, subiu os degraus de mármore, percorreu o corredor e entrou no quarto em que estivera com Dora.
A cama não tinha roupa, nem sequer colchão. A vela do castiçal que se encontrava no toucador estava intacta, sem que tivesse alguma vez sido acesa.
Driffield parara à porta, a olhar friamente para o xerife.
— Eu estive aqui! Acendi aquele castiçal!
— Porquê?
— Dora fora buscar petróleo, porque se lhe acabara...
— Acabar-se o petróleo?... — o juiz sorriu.
Dennis irritou-se. Ia cometer um disparate; pressentia que a cabeça lhe ia estalar, mas teve suficiente inteligência para descobrir que não estava em condições de pensar e compreendeu que o melhor era acalmar-se.
Saiu do quarto seguido do juiz. Na escada deteve-se, baixou-se e procurou no chão.
— A escada foi varrida esta manhã — disse o juiz. — Pelo menos, foi o que me pareceu ouvir do meu quarto.
— Por quem? — perguntou Dennis, sem desistir.
— Pelo jardineiro, que é o único criado que tenho.
Por fim, Dennis encontrou o que procurava; um bocado de fósforo, um resto que deitara fora depois de acender outro. Estava junto ao pé de uma das colunazinhas da balaustrada.
— Sabe o que significa isto? -- perguntou, mostrando-o ao juiz. — Que eu estive aqui ontem à noite.
— Ninguém o pôs em dúvida... embora gostasse de saber porque veio cá.
Dennis continuou a descer a escada.
 Saiu. O jardineiro fugiu ao vê-lo.
Aproximou-se do cavalo, ficou pensativo e depois, muito devagar, montou.

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