— Bravo! — disse uma voz, à retaguarda de Martin Palácios. — Foi uma linda cena de amor. Ao senhor Alcântara talvez lhe interesse, a partir de hoje, conhecer os passeios da esposa.
Martin Palácios mudou de cor, ao mesmo tempo que sentiu como um vácuo no estômago. Voltou-se devagar e viu diante de si Pete Marklyn e um outro pistoleiro, que o contemplavam com expressão irónica.
A sua rapidez em puxar do revólver não podia comparar-se com a daqueles profissionais. Mas compreendeu que a reputação de Beatriz correria sério e grave perigo, bem como a sua felicidade, se os dois pistoleiros saíssem vivos dali. Mas como agir contra ambos, se até empunhavam cada qual uma arma?
— Julguei que os pistoleiros ao serviço dos Quintana fossem homens com algum brio da profissão. Nunca pensei que se portassem como reles assassinos, prontos a servirem-se da vantagem traiçoeiramente adquirida.
Slim Burrell, o companheiro de Marklyn, olhou interrogativamente para este.
Trocado esse olhar, ambos meteram os revólveres nos coldres.
— Vamos fazer-te em bocadinhos. Tu assim o quiseste, Palácios.
Martin não lidava bem com armas. Era mesmo pouco destro. Mas, nos dez anos de trabalhos forçados, enrijara os músculos até limites incríveis. Era uma oportunidade que se lhe oferecia a de resolver o assunto daquele. modo — e não devia desperdiçá-la.
Os dois pistoleiros lançaram-se contra ele, simultaneamente, com ímpeto de feras. Saltou para o lado. O punho direito de Burrell assobiou-lhe junto da cara. O de Marklyn atingiu-o dolorosamente no estômago, quase na zona do fígado. Mas, por seu turno, socou o pistoleiro no queixo.
Pete Marklyn, entontecido, cambaleou. Burrell atacou-o por trás, com um soco na nuca. Martin voltou-se velozmente e desferiu no adversário uma chuva de murros no rosto e obrigou-o a cobrir-se com as duas mãos.
Marklyn voltou à carga. Rasgou, a soco, a sobrancelha direita de Martin e atingiu-o ainda num ombro, quando ele tentava esquivar-se ao segundo ataque. Mas Palácios viu uma oportunidade e aproveitou-a. Enterrou-lhe os dois punhos no estômago e derrubou-o, com o fôlego perdido.
Burrell agarrou-o por trás. Cravou-lhe um joelho na cintura e puxou por ele, dobrando-o. Marklyn ainda não estava, porém, em condições de o ajudar. Caído no chão, respirava com dificuldade, ofegante.
Os seus olhos refletiram o ódio que se apoderara dele e a deliberação que tomara repentinamente. A sua mão direita pareceu voar para o colt, como garra de ave. Agarrou-o e aperrou-o numa fração de segundo. A morte palpitava no semblante de Pete Marklyn.
Martin teve a consciência do que ia suceder. Rodou com velocidade incrível, pondo na sua frente o corpo de Burrell. Marklyn já não pôde suspender a compressão do gatilho. Slim, ferido de morte na espinha dorsal, largou a presa e começou a escorregar. Martin susteve-o e arremessou-o em seguida para cima de Marklyn, ao mesmo tempo que puxava do revólver.
Marklyn pouco pôde fazer para evitar o choque. Disparou, contudo, mais uma vez. A bala, zumbindo, passou longe do alvo.
Martin Palácios teve pontaria muito mais eficiente. Um só tiro lhe bastou para acabar com o pistoleiro, que recebeu a bala em pleno coração. A morte acolheu-o nos seus braços.
Ainda cambaleante, como consequência da peleja travada, Palácios guardou o revólver. Não se sentia orgulhoso com o êxito conseguido. Era qualquer coisa de irremediável, nada mais. Mas, assim, nunca ninguém saberia que Beatriz se tinha encontrado ali com ele, naquele local que fora muda testemunhas de tantas entrevistas. O bom nome dela ficava incólume. Nunca Marcos Alcântara viria a ter conhecimento da fraqueza que atingira a esposa e que tão caro lhe poderia custar.
Olhou para os dois corpos, inertes e sem vida, dos pistoleiros. Aquilo não ia agradar a Craig Larson. E a ele não o ia favorecer. Hesitou quanto ao que devia fazer-lhes.
Deixá-los ali, sem mais, repugnava aos seus princípios, pois serviriam de pasto a abutres e a quadrúpedes carnívoros. Levá-los para Corrales e expor a Larson o que sucedera implicava uma dificuldade de imprevisíveis consequências, porque um deles fora morto com um tiro nas costas.
Optou por levá-los e pô-los em terras dos Quintana, onde os pudessem encontrar com facilidade. Deitou-os, atravessados, nas selas dos cavalos que lhes pertenceram e que estavam presos a um cedro. Montou no seu corcel e, levando pela arreata os que transportavam a fúnebre carga, partiu em direção à extrema de El Nobledal, na sua vizinhança com o rancho dos Palácios.
Tinha percorrido três milhas, ou pouco mais, quando chegou até ele o crepitar, longínquo, de armas de fogo. De ouvido alerta, procurou descobrir a localização do tiroteio. Provinha, sem dúvida da Charca Grande, um terreno dos Palácios, onde avançava um pequeno lago, cujas margens, pelo Sul, pertenciam aos Quintana.
Muito gado, de uns e de outros, ia ali matar a sede. O desfrute em comum dessas águas que serviam de fronteira fora causa frequente de discussões e escaramuças entre as duas famílias e, muitas vezes, resolveram-nas a tiro.
O nutrido fogo que nesse momento ribombava à distância fazia crer que, dessa feita, o atrito era mais violento do que nunca. Martin, dada a sua forçada ausência, desconhecia o grau de intensidade dos embates havidos nos últimos tempos, na Charca Grande.
Com nervosismo, acelerou o ritmo do galope. O terreno era chão ótimo para pastos — mais do que para agricultura — e característico do Novo México. Ali, porém, na zona próxima de Corrales, apresentava algumas pequenas lombas.
Do alto de uma delas divisava-se, não muito longe, o cenário da luta. Notou que o número de contendores dos dois grupos era quase igual, de um lado e do outro.
O gado mostrava-se inquieto com os tiros e ameaçava a debandada em fuga sem tino. Todos os pelejadores estavam a cavalo e nenhum ousaria pôr o pé em terra, tanto mais que as reses, devido à excitação, já começavam a investir, por vezes, contra os cavalos, o que tornava a luta muito mais difícil.
Assim, os contendores não só tinham de se defender dos tiros dos inimigos, como também livrar-se das cornadas das reses embravecidas. Distinguiu o irmão, Enrique, e seis dos seus homens.
No bando dos Quintana encontravam-se Luís, Marcos Alcântara e cinco pistoleiros. O que sucedia no vale sugeriu-lhe uma ideia que rapidamente pôs em prática. Dos arções das montadas dos pistoleiros mortos pendiam laços.
Cortou um em quatro partes e, embora com esforço, pôs os cadáveres eretos nas selas dos respetivos animais. Prendeu-lhes as mãos aos picos, com um pedaço de corda, e com outro atou-lhes os pés por baixo do ventre dos cavalos. Em breve conseguiu arranjar dois aparentes cavaleiros.
Montando entre ambos, atiçou os cavalos e esporeou o seu, arremetendo os três pela colina abaixo, e levando já na mão a Winchester tirada do coldre. Dando vários tiros, galopou em boa velocidade, juntamente com os dois mortos, para as hostes dos Quintana, que, surpreendidos, só viam três cavaleiros numa densa nuvem de pó e ouviam as balas zunindo agoirentas.
De súbito, Martin obrigou o seu cavalo a parar, deixando que os outros continuassem na louca corrida. Quintana e os seus homens, de atenção posta no que julgavam um novo ataque proveniente daquele flanco, receberam os «inimigos» com uma saraivada de balas.
Martin Palácios guardou a espingarda e, rindo interiormente, fez o cavalo dar meia-volta em espaço curtíssimo. Fugindo o melhor que pôde aos projéteis que o procuravam, dirigiu-se, galopando, para o campo dos seus, deitado sobre o pescoço do cavalo para oferecer um alvo mínimo.
Um coro de gritos e exclamações de raiva chegou até ele, quando os seus inimigos reconheceram os dois cavaleiros, que, apesar do muito chumbo recebido, ainda continuam eretos sobre as selas. Para os Quintana ficaria uma dúvida: estariam vivos ou não aqueles dois, antes de iniciarem a galopada ao seu encontro?
— Quem eram os que vinham contigo? — perguntou Enrique ao irmão, deveras surpreendido.
— Marklyn e um outro pistoleiro dos Quintana. Tive um encontro desagradável com eles e vi-me obrigado a matá-los — respondeu Martin, sucintamente.
— Estavam mortos, então? —O mais novo dos Palácios parecia não querer acreditar no que tinha ouvido.
Martin referiu-lhe o seu estratagema, em poucas palavras. Enrique não pôde deixar de rir com gosto. E coube a vez a Martin de fazer também a natural pergunta:
— Que se passou aqui?
— O gado tinha sede. Trouxemo-lo à Charca. De repente, começaram a surgir esses malditos, como nascidos do chão e disparando. Causaram-nos uma baixa. E não há maneira de chegar até ali.
Martin Palácios permaneceu uns segundos em silenciosa meditação. Por fim...
— E se nós provocássemos uma fuga de gado sobre eles? Os animais já estão muito inquietos, porque sentem a água perto e por causa dos tiros. Não será difícil conseguir esse objetivo. Se nos lançarmos para a Charca, suponho que não perderemos grande número de reses. A água acabará por travar-lhes a debandada. Desse modo, talvez consigamos esmagar alguns desses canalhas. E quanto menos houver, mais facilmente será restaurada a paz em Corrales.
Enrique Palácios concordou, cheio de entusiasmo:
— Boa ideia, irmão!
Em poucos minutos, reuniram os seus homens, à retaguarda dos animais, e referiram-lhes o plano, pouco se importando já com as balas dos inimigos.
Rodearam e impeliram o gado com os gritos habituais. Assim, começaram a empurrá-lo para o destino imaginado por Martin. Alcântara foi o primeiro a perceber o iminente perigo, pois compreendera a manobra dos Palácios e dos seus homens, que já desistiam de disparar contra eles.
— Luis! Corre! — gritou. — Fujamos antes que as reses nos cortem a retirada!
— Fujam! — gritou, por seu turno, Quintana aos vaqueiros, empinando-se no cavalo e fazendo porta-voz com as mãos.
Ruído semelhante ao de um continuado trovão abafou--lhe a voz. A debandada tivera o seu início. Três dos homens conseguiram evitar a onda de reses embravecidas que devoravam rapidamente o terreno debaixo das patas.
Os outros foram infelizes. Com gritos de terror, desapareceram, espezinhados e esmagados por aquela massa rugiente que os envolveu. Tal como calculara Martin, as primeiras reses foram reduzindo a velocidade, ao aproximarem-se da margem, se bem que as de trás, assustadas, continuassem a empurrar, provocadas pelos cavaleiros e acicatadas pela sede.
Algumas das que iam à cabeça caíram e foram esmagadas, mas foi isso em número reduzido, porque, perante o obstáculo, a frente da manada abriu caminho, separando Luís Quintana de Alcântara e os dois pistoleiros sobreviventes.
Todos faziam desesperados esforços para que os cavalos ganhassem em rapidez àquela multidão de reses, que os perseguiam com fúria irresistível. Marcos e os seus homens conseguiram-no. Luís foi menos feliz.
O cavalo tropeçou e ele viu-se arremessado por cima do pescoço do animal, indo estatelar-se no chão. Martin Palácios, que galopava nesse flanco, atiçando as reses e impelindo-as para o centro, a fim de não permitir que se espalhassem demasiadamente, deu pelo perigo que Luís corria.
Este, entontecido com a pancada e agarrado à perna direita, pusera-se de pé, mas cambaleava, prestes a cair de novo.
Martin passou junto dele, como um furacão, e, dobrando-se, com força incrível, lançou-lhe as mãos por baixo dos braços, puxou-o para cima e pô-lo atravessado no dorso do cavalo. Uns segundos mais e o revolto oceano de reses tê-lo-ia destroçado, se é que não o reduzisse a pedaços, com morte horrível.
Pouco a pouco, Martin Palácios foi-se afastando do perigo das reses em fúria. Pôde ver, ao longe, Alcântara e os seus homens, que continuavam a fugir em desesperado galope, deixando para trás Quintana e os cinco cadáveres.
Martin deteve o cavalo, apeou-se agilmente e ajudou Luis Quintana a fazer o mesmo, saindo este da sua incómoda posição. Como Luís não pudesse manter-se de pé, Martin segurou-o para que ele não caísse. Era óbvio que fraturara uma perna. Apoiado desse modo, Luís avançou penosamente para uns penhascos, aonde se deixou cair com desalento. Palácios fitava-o em silêncio. Assim permaneceram os dois longos minutos.
— Porque me salvaste? — perguntou finalmente Luís Quintana.
— Porque não havia de o ter feito? Nada tenho contra ti.
— Isso não modificará as coisas. Sabes que te odeio, porque assassinaste o meu pai.
— É contigo, Luis. Mas quanto ao assassínio — disse Martin Palácios, cansadamente —, vou repetir-to pela última vez: não matei o teu pai.
—Tudo te acusou.
—Menos o senso comum. Pensa, idiota! Eu tive dez anos para o fazer. Qual podia ser o motivo? Respondo-te: nenhum! O teu pai era meu amigo. O meu enlace próximo com Beatriz resolveria velhas rixas de família. Palácios e Quintana, juntos, seriam poderosíssimos. Que podia ganhar eu com a sua morte? Nada! Eu não o matei, Luís. Mas calculo quem o tenha feito. Por isso, desejo falar com o teu tio Matias e com Craig Larson, a esse respeito.
— Nunca o meu tio consentirá falar contigo. Sabes muito bem disso.
— Pois é imprescindível — insistiu Palácios. — E não menos urgente para evitar loucuras como as de hoje. Porque nos atacaram?
—Em Corrales, Palácios ou Quintana estão a mais. Não há lugar para os dois.
— Iam cometer uma barbaridade.
— Íamos vingar o nosso sangue.
—Não dizes que matei o teu pai? Em quem iam vingar-se, portanto? No meu irmão mais novo? Nos nossos vaqueiros? É uma loucura, Luís! É uma horrível loucura, que deve acabar de uma vez para sempre, antes que dê cabo de todos nós.
Martin Palácios passeava nervosamente de um lado para o outro, sem se afastar muito, deixando-se arrastar pela paixão implícita nas suas palavras.
— Ontem vi os meus pais, passados dez intermináveis anos. Sabes o que é isso? Não, não o podes saber! Que diferente a imagem que eu tinha na retina em relação a dez anos atrás! Minha mãe está com o cabelo branco, e não pela idade, mas sim pelo sofrimento. E o meu pai, Luís? Sabes qual é a sua doença? Vou dizer-to: cansaço, tristeza, desânimo; ver como um belo mundo ruiu à sua volta, por estupidez alheia! Tu, Luis, sabes muito bem que o teu pai e o meu eram dois bons amigos.
Luís Quintana escutava-o em silêncio, de cabeça baixa e olhos fitos na biqueira da bota, que, impelida pelo pé, ia desenhando riscos no pó.
—E o meu primo Lorenzo? — tornou Martin. —Porque o mataram? Por ser um Palácios?
Luís Quintana ergueu a cabeça altivamente, ao responder com firmeza:
— Não fomos nós! Juro-to!
— Ah! — exclamou Martin. — Não ousarás pedir-me que eu acredite. Que têm os juramentos dos Quintana para serem julgados superiores aos dos Palácios? Vá, Luís, reflete. Acabemos com este ódio.
—E tu, Martin... tu serias capaz, por exemplo, de desculpar Beatriz por não ter esperado por ti?
—Mais que desculpar, já lhe perdoei. A vida endureceu-me, com os reveses; ensinou-me a perder mais do que a ganhar. Estimei tanto Beatriz que só posso desejar-lhe felicidades. Se ela aceitou Marcos, é de supor que o fez por amor sincero. Desejo-lhe, portanto, que seja feliz.
Luís Quintana baixou novamente a cabeça, em parte com vergonha de ter posto o dedo naquela ferida de Martin Palácios.
Ao longe, Enrique Palácios e os seus homens continuavam ainda a reagrupar o gado, que já aplacara a sede.
— De tanto falar, não prestei atenção à tua perna — disse Martin, de súbito. — Dói-te muito?
Luís Quintana fez um gesto afirmativo.
— Devo ter várias fraturas. A princípio, nem sequer a sentia; só uma vaga noção de calor. Agora, já me dói. Muitíssimo.
— Vou levar-te à povoação. Suponho que, em Corrales, há médico para te tratar convenientemente.
— Não te incomodes por mim. Não vale a pena.
Martin Palácios não respondeu. Nem ouvira, talvez, Quintana. Já andava à procura de paus. Encontrou um ramo que entendeu servir-lhe. Com esses troncos e dois lenços, o dele e o de Luís, apertou-lhe a perna para a fixar.
— Vamos! — disse, concluído o trabalho. — Ajudo-te a montar, Luis.
Os dois, no cavalo de Martin, dirigiram-se para onde estava Enrique e os vaqueiros. AI chegados, Martin declarou que ia Corrales levar o ferido. E riu intimamente, ao pensar no efeito que faria entrarem em Corrales, montados no mesmo cavalo, um Palácios e um Quintana. Que boa notícia para Lloyd Cormon apregoar!
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