Tinha sido Corrales uma cidadezinha quase selvagem. Agora, dominava-a, com o brilho da sua estrela de prata, luzindo ao peito, um homem chamado Craig Larson.
As violências sucederam-se sem trégua nas suas ruas, provocadas pelo ódio que fazia enfrentar duas famílias e outras pessoas que alimentavam esse fogo de morte. Corrales ficava perto da fronteira com o Novo México e era constante refúgio de pistoleiros profissionais.
Só um homem com a garra de Craig Larson poderia ter tido a coragem e o valor para realizar o milagre. Não conhecia o medo, ou, pelo menos, sabia não o exteriorizar. A rapidez do cérebro correspondia a rapidez das mãos, principalmente da mão direita.
Agora, a paz reinava em Corrales. Mas tinha sucedido qualquer coisa que poderia quebrá-la. O homem que vinha correndo no passeio tentava precisamente evitar esse mal, dando a conhecer a sua causa.
Lloyd Cormon, ofegando, entrou de rompante na barbearia.
— Trago uma notícia, Larson! É muito importante... muito importante!
— Vai para o diabo, tu e as tuas malditas notícias! Sempre escolhes o momento menos apropriado para as dar. Não estás a ver? Ainda tenho sabão na cara. Compreendes? Sabes o que é fazer a barba? Deixa-me em paz! Rua! Espera que eu acabe e depois cospe essa notícia!
Lloyd Cormon sorriu compassivamente, abanando a cabeça. Larson iria mudar de opinião dentro de pouquíssimos segundos. Era tão certo isso como dois e dois serem quatro ou...
— Voltou Martin Palácios — foi só o que disse, quase em murmúrio. E rodou nos calcanhares para ir embora, ou simulando-o.
Larson deu um salto. Arrancou a toalha que tinha ao pescoço e limpou o sabão do rosto, ao mesmo tempo que lançava uma série de palavrões capazes de provocarem assombro num condutor de carros do Vale da Morte.
— Maldito idiota! — exclamou por fim, uma vez esgotado o seu vocabulário pornográfico. — Isso não é apenas uma notícia importante, com mil raios! É má, é péssima, é... sei lá quê! Tens esse hábito, mafarrico! Um dia, sofres um desgosto, Lloyd! Juro-to! És a parte feia da minha sombra.
Lloyd Cormon sorriu abertamente. Mais que habituado estava ele àquelas explosões de Craig Larson! E, longe de se aborrecer com os insultos, até achava graça a despertar o mau génio do xerife, que sempre se traduzia num chorrilho de obscenidades e frases contundentes, refinadas de vez para vez.
Em duas passadas, o xerife alcançou o cabide. Encasquetou na cabeça o stetson cinzento de abas largas. Olhou-se ao espelho e, com o punho da manga, varreu da cara os últimos vestígios de sabão.
— Volto mais logo! — anunciou, como trovejando, a relancear os olhos para o barbeiro. — Tu, vem comigo, pedaço de asno! — Dirigia-se a Cormon. — Se te deixo para aí sozinho, arranjas-me sarilhos dos mil demónios!
Lloyd Cormon sorriu de tal modo que pôs bem à mostra os feios dentes enegrecidos pelo tabaco.
— Sua excelência manda! — Curvou-se em cómica e irónica mesura.
Larson fingiu não reparar nisso, nem no estilo da frase.
— Onde viste esse louco? — perguntou, dando um piparote na estrela, como a limpá-la de imaginário pó.
— No Saloon Império.
O Saloon Império era o nome elegante sob o qual se ocultava um tugúrio que já seria honradíssimo com o de taberna. Apesar disso, era o melhor dos cinco existentes em Corrales. E era o mais frequentado, talvez porque o seu uísque tivesse pouco do que devia ter e muito mais de álcool. Daí, uma das causas do seu enevoado ambiente. Quem sofresse dos pulmões morreria só por entrar lá. Sim, porque a mau uísque corresponde, em geral, abundante e mau tabaco.
Larson, o xerife cinquentão, varou com o olhar vivaz a densa névoa do fumo de cigarros, e não tardou a descobrir, encostado ao balcão, um vulto conhecido — o que procurava.
Martin Palácios, aparentemente, não mudara, naqueles dez anos. Só uma diferença mais sensível: o rosto— que se refletia no espelho da frente, acima de poeirentas garrafas e no meio de escuras manchas fabricadas por moscas — era mais escuro, queimado por sóis.
— Olá, Martin! — saudou-o.
Martin Palácios ergueu os olhos para o espelho. Depois, foi-se voltando lentamente. Deparou-se-lhe o brilho de uma estrela e depois uns olhos coruscantes: os de Craig Larson. Não, Larson não tinha mudado, no decurso daqueles anos. O mesmo já pensara de Corrales e do asqueroso uísque vendido por «Blackie» Marqués.
— Olá, Craig! Muito depressa voam as notícias, em Corrales. Chegas a tempo de eu te convidar. A minha intenção é boa. O uísque não, como dantes. Olá, Cormon! — acrescentou, ao ver a «sombra» do xerife.
— Que tal vai isso? — correspondeu Lloyd.
— Para que voltaste, Martin? — atacou imediatamente Craig Larson.
Palácios não respondeu. Olhava para mais longe, como para além da própria garrafeira, da parede, de tudo. «Blackie» Marqués, um homem obeso, com aspeto mais de pistoleiro do que de dono de uma taberna, apresentou um copo a Larson, em silêncio, e retirou-se para o outro extremo do comprido balcão, embora não deixasse de observar de revés os dois homens que se enfrentaram.
— Bebe, Craig. É mau e custa caro. Talvez isto o faça parecer melhor. Um copo destes equivale a dias de prisão. Muitos...
— Para que voltaste, Martin? — repetiu o xerife. —Tudo mudou, no tempo em que estiveste fora, e...
— Há coisas que, mesmo em dez anos, não mudam.... e não podem esquecer-se — atalhou Martin Palácios. —Eu não matei Rodrigo Quintana. Mas paguei a conta do assassino. É isso o que eu procuro agora em Corrales: um nome. Nem mais, nem menos. Dez anos são demasiados para serem esquecidos. Dantes, aspirava o aroma das flores, até o pó da rua! Como achei falta de tudo isso!... Olhava para o sol que me queimava... Mas tudo me parecia negro como a pior das noites, por trás daqueles varões de ferro. Larson, eu tinha de voltar, à procura do passado, de um passado que, para mim, era o presente e o próprio futuro que me roubaram. Farei pagar esse crime a quem o praticou, ou, pelo menos, morrerei de cabeça erguida, com a hombridade de o haver tentado.
— Sim, Martin, compreendo-te. E, mesmo que não acredites, admiro-te. Nunca te julguei culpado. Mas, hoje, não aprovo o teu intuito. E uma loucura que ninguém sabe até aonde pode levar-te. Em devido tempo, como sabes, eu procurei os rastos...
— E todos vinham ter a mim, Craig. Todos. Mas não fui eu.
Larson, como dez anos antes, leu a sinceridade nos olhos do homem que tinha diante de si.
— Depois, tive tempo de sobra para pensar —prosseguiu Palácios. — Mais do que tu, mais do que ninguém. E agora vejo claras muitas coisas que dantes me pareceram obscuras, incompreensíveis.
— Tem cuidado, Martin Palácios. Não te esqueças de que no peito de um amigo, talvez o único que ainda conserves aqui, há um pedaço de metal... — Os seus dedos roçaram a prateada estrela. — Não a atraiçoarei por nada deste mundo. Nem deixarei de fazer o que ela me ordene. Agi, então, daquele modo, porque tudo te acusava. Mas, enfim, procurarei ajudar-te nessa tua loucura, desde que não saias das marcas, do equilíbrio. Quando ao copo que me oferecias, deixa ser eu a envenenar-te. Se por acaso me matasse, pagando-o tu, ficarias em maus lençóis, inclusive porque não ganharias nada com isso.
Riram ambos, com riso amarelo, do que, se excedesse a brincadeira, seria um dito de mau gosto.
— Não, Craig. Encontrar um bom amigo, ao fim de dez anos, permite-nos incorrer num perigo desses, mesmo a pensar no que ele custa. Desculpa, mas pago eu.
Larson deu uma palmada nas costas de Palácios e bebeu uns quantos goles da beberagem.
— E Beatriz? — perguntou, de súbito, Martin Palácios, num murmúrio.
Larson tivera, desde os primeiros momentos, o receio de que Palácios lhe fizesse aquela pergunta e ainda mais o de lhe responder. Agora, chegara esse momento indesejado, mas fatal. Mastigou em seco e, tão baixo que mal se ouviu a sua voz, respondeu:
— Pois... casou, Martin.
Palácios aspirou o ar como se o não fizesse havia muito. As narinas agitaram-se repetidas vezes. Ficou longos segundos sem poder falar. Quando o fez, as palavras fluíram quase naturalmente de entre os lábios. Mas no seu íntimo abrira-se uma funda e dolorosa brecha:
— Marcos Alcântara, não é verdade? — perguntou, sussurrando.
Larson disse que sim, com a cabeça. Nem ousava abrir a boca. Fez-se, entre ambos, longo silêncio. O passado acorria à mente de Martins Palácios, com recordações agónicas.
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