quarta-feira, 21 de julho de 2021

BIS245.02 O regresso do passado

O passado acorria à mente de Martin Palácios, com recordações agónicas. Beatriz Quintana, a filha do homem de cuja morte o acusaram. Tinha dela uma formosa recordação. Via-a na mente: cabelos louros, longos e sedosos; olhos pardos, perturbantes; pele de brancura inexcedível; corpo esbelto, delicado.

Apesar do muito que lhe quisera, de pouco mais se recordava. Dez anos eram insuficientes para apagar uma lembrança espiritual, mas o bastante para diluir uma presença física nos seus pormenores. Não o deu a entender perante Craig Larson — ou, pelo menos, assim o julgava — mas certo era que a resposta do xerife tinha sido para ele um rude golpe, o chamado «golpe de misericórdia» nos seus recalcados sonhos.

Beatriz... Ao evocar o seu nome afluíam ao cérebro de Martin Palácios longínquas recordações, com o ímpeto de torvelinhos. E, como remate de todas, as daquela noite que jamais poderia esquecer.

Durante dez anos, quase dia a dia, voltava-lhe à mente, o acontecido então. Desdobrou as horas em minutos; os minutos em segundos; e os segundos em parcelas que, embora mínimas, eram espaços de tempo também. E foi nessas parcelas mínimas que sondou, polegada a polegada, com matemática precisão e um rigor que nunca supusera vir a ser possível. Assim chegou a um resquício de luz. Mas tarde, excessivamente tarde para dele poder aproveitar-se. Seis dias. Apenas seis dias antes de ser libertado faiscou essa luz. Por isso, voltou a Corrales.

Estavam ali os seus, com um labéu, a mancha injusta. Um Palácios nunca podia ser um assassino — e, para mais, um traiçoeiro assassino. Repugnava-lhe ser considerado desse modo, mesmo numa povoação como aquela, carecida de moral e de costumes nobres.

Antigamente, os Palácios e os Quintana tinham sido os senhores de quase toda a povoação. Tinham convivido juntos, numa paz respeitada. Em três parte se podia considerar dividida Corrales. Duas quase iguais: uma dos Palácios, outra dos Quintana. E a central, como terra divisória, a povoação, propriamente dita. As duas famílias chamavam-lhe, por gracejo, «a terra de ninguém».

Violento bater das portas obrigou Martin a regressar ao presente. Levantou os olhos e o rosto, com a altivez própria de um Palácios, a altivez instintiva, que nem dez anos de presídio conseguiram anular.

No espelho que tinha em frente despontou um rosto que conhecia bem, muito bem. Voltou-se. Larson, que também se voltara, interveio energicamente:

— Não quero violências, Quintana!

— Muito velozmente correm as notícias, em Corrales, Luís. Esperava-te, mas noutro momento — murmurou Martin Palácios.

Luís Quintana, o irmão de Beatriz, sorriu friamente. Mas a sua mão direita não se afastou da negra coronha do colt.

— Vai-te embora, Martin! Vai-te! Ainda estás a tempo de o fazer. Não é agradável a tua presença em Corrales.

— Não matei o teu pai, Luís. Sempre o disse e repito-o. Venho vingá-lo, esta é a verdade. E fazer pagar dez anos da minha vida a quem o assassinou.

— Não te acreditámos nunca. E também não o acreditaremos agora. Sai de Corrales, Martin!

— «Acreditámos»? Plural?

— Sim. Beatriz, o meu tio, Marcos e eu.

A seca resposta provocou em Martin um gesto de amargura. Larson notou-o e compreendeu-o. Quis evitar a crescente tensão. Lloyd Cormon, como desde que chegara, mantinha-se em expectante silêncio.

 

— «Blackie»! — chamou o xerife. — Arranja um copo para Quintana.

— Não bebo com assassinos, Larson. Acamaradar com eles, nunca! Para xerife está bem. A placa dá para lidar com os criminosos.

Um relâmpago de fúria perpassou nos olhos de Martin Palácios.

— Tem cuidado, Luís! O afeto que votei ao teu pai e a Beatriz nunca foi extensivo a ti, que sempre gostaste de nos provocar. Os Palácios não são assassinos. Alguém nos andou a indispor contra vocês, os Quintana, durante anos e anos. Poucos restamos agora. Mas o nosso orgulho compensa tudo. Não nos curvamos a pressões ilegais. A Justiça é igual para todos. Vim, livre, juntar-me aos da minha família. Só me irei embora quando quiser e se o quiser.

— Quintana — interveio também Craig Larson. — Martin não te provocou nem te ofendeu. Não tolerarei que, na minha presença, o ameaces. Tenho mantido a tranquilidade em Corrales durante estes anos todos. Para isso pagaram-no, e por vezes bem caro, é certo, aqueles que a perturbaram. Se insistires em dar origem a qualquer espécie de zaragata, ver-me-ei obrigado a exigir que me faças entrega do revólver, a fim de evitar futuras complicações.

— Experimente, Larson, e Corrales ficará sem xerife, que nenhuma falta nos faz.

Larson dirigiu-lhe um olhar glacial. As suas mãos iniciaram um lento avanço para a arma que empunhava Luís Quintana, a fim de lha tirar. Martin Palácios afastou-se um pouco do balcão, depois de ali deixar o copo.

Foi a voz de Cormon que se fez ouvir então. Sem que ninguém o notasse — excetuando Martin, a quem dirigira um piscar de olho significativo — colocara-se por trás de Luís Quintana e, com o revólver a apoiar-lhe nas costas, declarou:

— Aprecio muitíssimo os Quintana, Luís, mas Larson tem razão. É perigoso perturbar a paz. Desencadeiam-se paixões e... é o diabo! Lamento proceder assim, mas, se fizer um só gesto antes de Larson lhe tirar o revólver... disparo.

Rapidamente, o xerife arrebatou a arma da mão de Luís Quintana. Luís mordeu o lábio inferior, com raiva, ao sentir-se desarmado.

— Não esquecerei esta ofensa, Larson. Nem a tua estupidez, Cormon. Quanto a ti — encarou Martin — quero saber-te fora de Corrales antes da meia-noite. De outro modo, ficarás, sim, mas para sempre, com uma jarda de terra por cima.

— Vai-te, Quintana! — ordenou Larson. — Já ouvi demasiadas tolices. Prefiro acreditar que estás nervoso, fora de ti. Por isso te desculpo. Mas se tentares algum disparate, juro que to farei pagar muito caro. Amanhã, se o quiseres, manda buscar o revólver à Delegacia.

Luís Quintana não dissimulou a fúria nem o ódio que o acicatavam. O seu rosto, queimado pelo sol, tinha agora um matiz violáceo. Os negros olhos coruscavam. Antes de dar meia-volta, apartou, com um empurrão, Lloyd Cormon, que mal resistiu a reagir de igual modo, mas que, dominando-se, acabou por guardar o revólver.

Fecharam-se as portas com estrondo, à saída do enfurecido Quintana. O habitual ruído de vozes apoderou-se novamente do saloon, apagando o silêncio que se seguiu à partida de Luís. Pouco a pouco, foi cedendo também a tensão gerada nos últimos minutos. Larson suspirou:

— Obrigado, Cormon. De alguma coisa me há de servir a tua feia sombra. Parece que irei começar a apreciar-te. O que fizeste foi muito acertado.

Depois, encarou Martin Palácios:

— Vês, amigo? Boa arranjaste, com o teu regresso!

«Blackie» Marques, deslizando rente ao balcão, aproximou-se deles. Ia dizer qualquer coisa. Não lho permitiu Larson. Jogou-lhe em cara:

— Traz outros copos dessa beberagem, maldito! E vais ingerir um também, para ver se rebentas!

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