sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

CLT024.06 Gatilhos

As mãos de Milton Carey tinham-se fechado furiosamente sobre as culatras negras.
— Estavas louco, Luigi! Não adivinhaste o que queria fazer? Porque diabo a deixaste a vigiar? Ê capaz de ter ido negociar com Wilburn Brakam!
Os olhos do calabrês estavam fixos no chão, e todo o seu aspeto denotava uma grande distração.
—Não me ocorreu, Milton. Como podia supor que ia fugir? Tinha um aspeto muito abatido, incapaz de tomar uma decisão...

— As mulheres só tomam as suas grandes decisões quando os homens pensam que elas estão a dormir. Alma enganou-te como a uma criança. Mas nós iremos em sua procura. Vamos, Luigi, tu serás o primeiro a montar a cavalo.
— Como? Montaremos por turno? Assim nunca conseguiremos sair do deserto, Carey?
Milton soltou as culatras, sobre as quais, sem adverti-lo, tinha pousado as mãos ao falar com Luigi Starza.
—Rem—disse com voz que de repente se tinha tornado calma e tranquila. — O evidente é que temos de sair daqui. Há um riacho a várias milhas de distância, cujo curso segui durante a minha galopada de ontem. A sua água não é potável, mas poderemos molhar a cara, e isso nos aliviará. Tenho intenção de voltar a Dusty Plain e arranjar ali dois bons cavalos. Não esperam este golpe de audácia; nas nossas circunstâncias, isto é a única coisa que nos pode salvar.
— Deverá ter ido também a Dusty Plain. Ali saberemos algo dela.


Luigi fez um gesto de dúvida.
— Ou saberá ela de nós. Os enterros são sempre anunciados numa tabuleta, junto à porta do juiz...
O sol estava já muito alto quando a rapariga chegou ao «Brakam Ranch». Era um formoso conjunto de edifícios, para chegar ao qual tinha de se atravessar acres e acres de terras cuidadas e férteis.
Wilburn Brakam vivia isolado dos seus vaqueiros, numa formosa casa branca de estilo colonial, e a magnificência das suas linhas denunciavam bem às claras a próspera fortuna do seu dono. Os olhos de Alma não tinham nenhuma expressão quando se enfrentou com Brakam.
—De modo que vens falar comigo, hem? Onde estão os teus amigos?
—Deles precisamente vim falar-te, Brakam.
—Então a nossa conversa será muito interessante. Entra.
De um empurrão, fê-la entrar no interior da casa, entrando em seguida numa saleta de receber, bem mobilada com um piano, três poltronas e um sofá. O rancheiro fechou a porta.
— Parece que a liberdade aumentou a tua formosura, Alma...
NOS lábios de Wilburn Brakam apareceu um sorriso cínico.
— Oh, sinto muito apresentar-me com este aspeto! Se me deixasses lavar, eu...
—Tu me farás cair antes se te deixar mudar de roupa e perfumar a cara, não ias dizer isso? Brakam aproximou-se dela. Alma sorriu e levou as mãos aos cabelos para ordená-los num gesto cheio de picardia.
Mas enquanto fazia isto, algo se passava no seu peito.
—Não sou uma mulher mentirosa; devias sabê-lo.
— Não, bem sei que não o és. —E adiantando-se um passo mais, Wilburn agarrou-a brutalmente por um braço. —Dizias que vinhas falar-me dos teus amigos. Onde estão?
A rapariga afogou um gemido, e olhou os olhos do homem, disposta a não se deixar vencer pela terrível repugnância que sentia. A imagem do pistoleiro a quem anos antes vira de cabeça para baixo saltou-lhe aos olhos... e aquele pistoleiro tinha a cara e as dimensões de Milton.
Engoliu saliva e ergueu o seu busto. Sabia que estava bem formada e que era tentadora. Algo lhe doía no peito, tanto que teve de apertar os lábios para não gemer. Os seus lábios brilharam cheios de terror e de vingança.
— Então... estão no deserto, Wilburn. Tu bem sabes que não podem sair dali.
— Certamente. Há homens em Dusty Plain e em Estaca Vermelha. Homens que matarão sem compaixão essas hienas logo que apareçam por qualquer dos extremos do deserto. E tu, sabendo-o, vieste aqui, porquê?
Os olhos de Brakam brilhavam divertidos. Adivinhava-se que conhecia a resposta.
--- Vim fazer um tratado contigo-- disse, com voz que não pôde ser firme apesar da decisão que tratou de imprimir-lhe. — Vim aqui só, sabendo ao que estou exposta, para pedir-te que em troca deixes esses dois homens com vida. Eles não te molestarão mais.
— Prometeram-to?
-- Sei que não te molestarão mais.
—Alegra-me ouvir-te dizer isso, porque o mais jovem é um anjo. Enviou-te aqui?
Os olhos da mulher brilharam, e a sua mão direita levantou-se para cair raivosa sobre a cara de Brakam. Mas pôde deter-se a tempo. O rancheiro soltou-a, e afastou-se dela um passo. Depois, de repente, pôs-se a rir. Todo o cinismo que se refletia nas suas feições materializou-se agora na sua gargalhada e concretizou-se como um golpe descarregado no rosto de Alma.
A rapariga encolheu-se ao ouvi-lo rir assim. Todo o valor de que se tinha intentado armar, pensando na sorte que aguardava os que a tinham salvo uma vez, esfumou-se agora em breves segundos. E, por reação, o sentido da sua própria dignidade, a ideia da baixeza em que tinha estado a ponto de cair, ainda que se fundando numa causa nobre, o desprezo por si própria, por ter chegado até àquele homem, juntaram-se no seu espírito.
Os seus olhos brilharam, despedindo todo o ódio e toda a selvática decisão da Sua raça. As mãos cerraram-se sobre os seus próprios músculos, num espasmo, e sentiu a tentação de saltar violentamente sobre Wilburn.
Este não advertiu o câmbio operado na rapariga. Com os olhos semicerrados pelo riso, começou a falar:
-- Os anos que levas vividos no «Brakam Ranch» deviam-te ter ensinado algo, inocente pomba. Pensas que, depois de ter-te à minha mercê, vou perdoar a esses dois ladrões, a esses dois assassinos? Pretendias que eu mesmo lhes levasse um barril de água ao seu esconderijo no deserto? És estúpida, Alma. A tua estupidez impressiona-me tanto como a tua beleza! Agora tenho as duas coisas, pomba! Tenho-te a ti e tenho esses dois homens encurralados e com a garganta seca, esperando que os matem com chumbo!...
Rindo ainda, e com um inconfundível desejo nos olhos, o rancheiro aproximou-se novamente da rapariga. O seu braço direito foi a apossar-se da cintura da rapariga, e então esta reagiu. Todo o ódio que aquele homem lhe inspirava, todo o desprezo que sentia para consigo mesmo por se ter posto naquela situação humilhante, deram-lhe valor para revoltar-se contra Brakam com uma força que este não esperava nem podia supor.
Um punho embateu contra o seu olho direito, e um dedo longo e afilado cravou-se no seu pescoço. Estas duas ações simultâneas apanharam-no desprevenido, e lançou um gemido de surpresa e de dor.
Quando abriu os olhos, e crispando ambos os punhos quis atirar-se sobre a rapariga, as coisas tinham mudado de uma forma muito estranha, que agora era Alma que lhe passava a mão pela cintura, como se quisesse dedicar-lhe as suas ternuras.
Brakam compreendeu demasiado tarde. Quando quis retroceder, o cano dum dos seus revólveres estava--lhe encostado ao estômago. Os olhos da rapariga cravavam-se nos seus como dois punhais de ódio.
—Vou acabar contigo, miserável rato dos esgotos. Vou apertar o gatilho, e os teus homens te encontrarão babando no mesmo sítio onde quiseste humilhar-me.
Wilburn compreendeu que a rapariga estava disposta a tudo. Que naquele momento não reagia, e que era escrava dos impulsos do seu sangue. Ainda que ele tivesse outro revólver no coldre esquerdo, soube que um só movimento do seu braço não faria mais que assinalar o instante da sua morte.
Com as feições brancas ia a dizer algo, e naquele momento notou uma mudança nos olhos da rapariga.
— Não quero sujar o resto dos meus dias disparando agora, Brakam — disse para despedir-se.
—Procura-Me por toda a Califórnia, e procura Milton Carey, o homem a quem tens encurralado no deserto. Procura-o e põe-o de cabeça para baixo, se puderes! E cem vezes mais homem do que tu!
Alma não podia contar com tantas facilidades para a sua fuga como as que lhe proporcionou a simples menção daquele nome. Viu como se transfigurava o rosto do rancheiro, que parecia perder a noção do lugar onde estava.
De um salto, a rapariga afastou-se.
Algo muito importante parecia suceder no rancho. Dois homens, no alpendre, passaram junto dela sem prestar-lhe a menor atenção, correndo como condenados para o extremo do prado fronteiro, onde havia vários vaqueiros rodeando dois corpos estendidos sobre a erva. Dois cavalos negros revolviam-se inquietos em redor do grupo.
— Aqueles homens tinham-se atrevido a chegar até Dusty Plain! —ouviu como dizia um dos vaqueiros, ao passar junto dela. —Jim e Farey, que os esperavam, regressaram feridos!
O primeiro impulso de Alma, a quem não tinha sido difícil montar novamente em «Satan», foi dirigir-se para a poeirenta cidade da planície, onde conhecera Milton Carey.
Mas, ainda que o seu cavalo tivesse comido erva fresca durante o descanso, e ainda que agora já parecesse disposto a galopar, depressa compreendeu que não estava livre para ela o caminho do Este, o que levava a Dusty Plain.
Uma pequena tropa de pistoleiros, sem dúvida enviada pelo capataz, galopava naquela direção. Se ia atrás deles, estava perdida. Por outro lado, Brakam organizaria em poucos instantes um grupo de perseguição, e era preciso escapar pela direção menos suspeita.
A esta ideia se deveu que a rapariga, depois de sair a galope dos limites mais imediatos do rancho, empreendesse a fuga em direção do Nordeste.
O «Brakam Ranch» estava situado nos confins da Califórnia com o Estado da Nevada, ainda que o seu dono possuísse terrenos e gados em muitos outros lugares do Sudoeste. O caminho que empreendeu Alma, depois de deixar para trás as terras férteis do rancho, era poeirento, batido pelo sol e percorrido por ventos cálidos que levantavam o pó e cegavam a vista.
Depressa a rapariga procurou o caminho das montanhas, à sua direita, e perdeu-se por entre os atalhos. Desde ali, oculta, viu como três cavaleiros percorriam a planície.
«Tive sorte ao fugir no momento em que chegava aquela notícia— pensou Alma. —Todos os homens do rancho estavam desorientados. Mas agora já acalmaram e procuram-me por todas as partes, como a uma fera.»
Os pistoleiros tomaram, ao meio da tarde, o caminho das montanhas, mas Alma já se tinha adiantado tanto no labirinto rochoso que não deram com ela. Ao cair da noite abandonaram a sua busca. Alma deixou descansar o seu cavalo, e permitiu que aproveitasse umas raquíticas hastes de erva que cresciam entre os penhascos. Vendo-o comer, ela recordou que não tinha provado nada em todo o dia.
«Tenho de regressar a Dusty Plain — disse. — Tenho de regressar a Dusty Plain...»
Mas ainda que aquele pensamento lhe desse forças, não deixou de compreender que Milton Carey não podia já falar-se no povoado. Que ele e o seu companheiro haviam fugido ou estavam mortos no centro da rua, onde ela viu cair os homens de Brakam. Que procurar, então, em Dusty Plain? E aquela pergunta desconsoladora deixou-a atónita, como se de repente visse com uma mágica claridade o infundado de todas as suas esperanças. Onde encontrá-los, então? Onde?
A lua tinha surgido já por cima dos penhascos, e iluminava uma tétrica paisagem das montanhas. Caminhos inacessíveis elevavam-se sobre a sua cabeça, e Alma teve naquele momento uma angustiosa sensação de solidão. Conduzindo o cavalo pelas rédeas, começou a descer cuidadosamente. A luz da lua chegava bem a todos os recantos, mas ainda assim era iminente o risco duma queda mortal. «Satan» deixava-se conduzir docilmente, e dava mostras duma grande prudência.
Duas horas mais tarde, Alma chegou a um pequeno deserto redondo, de umas quinze milhas de raio, rodeado por um verdadeiro círculo de montanhas. O chão era de grossa areia que a erosão do vento tinha ido depositando ali durante milhares de anos. Próximo da montanha por onde ela descia, uma superfície irregular denotava a presença dum antigo lago.
Mas o sol abrasador tinha evaporado as águas, e agora já não ficava ali mais do que um fundo de sal. A lua arrancava daquele lugar estranhos reflexos de prata. Nenhuma pegada humana estava marcada na areia do deserto. A solidão espantosa do lugar, onde o calor do sol se tinha concentrado como num gigantesco forno, caiu sobre Alma.
Pegada ao corpo do cavalo, como uma criança desmaiada que se protege atrás das defesas insignificantes, a rapariga índia sentiu desejos de chorar. O calor era ali tão asfixiante, apesar da noite, que Alma teve de se deixar cair no chão com aspeto abatido, desolador. Aquela temperatura queimava por completo as suas escassas energias.
«Faz demasiado calor aqui — pensou. — Haverá um furacão».
E não se equivocava. Cinco minutos depois, a primeira onda de ar começou a mugir entre as montanhas que cerravam o deserto pelo Norte. Igual como uma onda, a areia levantou-se suavemente a uma milha de distância, e foi pousar-se de novo aos pés de Alma como que uma advertência tétrica.
«Estou em perigo. Devo voltar para as montanhas —pensou. —Não me estranha que ninguém chegue aqui. Este é um lugar maldito.»
Mas quando se punha novamente em pé, uma rabanada de vento fê-la cair ao chão. «Satan» encabritou-se com um relincho. Alma quis-se arrastar e chegar até junto das rochas. Era tarde. O vento, penetrando pelas brechas do Norte, mordia materialmente a areia e formava enormes ondas nuns lugares para encaminhar-se para outros.
Alma sentiu como que se uma roda gigantesca girasse debaixo do seu corpo. Gritou, tapando os olhos e a boca, e intentou agarrar-se às patas de «Satan», que não se tinha movido de junto dela. O animal intentou arrastá-la mordendo-lhe as roupas, mas não pôde consegui-lo.
O vento fazia girar Alma e enviava-a a cinco ou seis jardas de distância para devolvê-la depois ao mesmo sítio. Encabritando-se de novo. «Satan» fugiu para um refúgio próximo dos penhascos. Alma gritou novamente, sabendo a inutilidade de fazê-lo.
De repente, o furacão cessou. Causado por um excesso de calor naquela reduzida zona, a sua morte foi tão instantânea como o seu nascimento. O vento cessou de assobiar, e a areia, abandonada ao seu peso, caiu desde o ar como uma espessa chuva.
«Estes furacões devem-se produzir aqui com muita frequência —, pensou Alma, enquanto intentava levantar-se — ainda que talvez não tão fortes como este. Tenho de procurar sair daqui.»
Mas quando resolveu pôr-se definitivamente em pé, deu--se conta de que as suas mãos não se apoiavam no chão de areia. Onde esta formava antes uma pequena colina, havia agora uma imensa cratera. A rapariga apalpou umas tábuas que deviam ter estado sepultadas ali durante anos e anos. Umas tábuas largas, fortes. Apalpou-as, atónita. O que tinha debaixo do seu corpo era um antigo carro enterrado naquele maldito sítio.

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