O barco fez soar a sua sirene à medida que se aproximava da margem direita do rio, seguindo o curso descendente. O cais de Riverwood já era visível lá ao fundo.
As pás das suas rodas batiam a água do velho Mississípi com um ritmo monótono que levantava montanhas de espuma.
Não era um grande barco, o Mississípi Lady. Como todos os casinos flutuantes e dos Showboots da época, as suas largas chaminés, a sua grande roda central e os seus dois andares, enfeitados com alegres bandeirinhas, davam-lhe aquele ar entre pesado e gracioso, das embarcações fluviais que, com a simples intenção de oferecer um espetáculo, às não menos simples povoações ribeirinhas, sulcaram o amplo curso do Mississípi.
O homem da ponte superior afastou os olhos do aglomerado das velhas edificações que constituíam a cidade de Riverwood e afastou-se uns passos da borda, aspirando com satisfação o fumo do seu aromático charuto.
—Crês que seja um bom sítio para trabalhar, «Anjo»? — perguntou nas suas costas o velho Swane.
Rush Marlowe, o «Anjo», voltou-se para ele com um sorriso que o outro conhecia muito bem.
— Claro, Swane — disse, com a sua voz grave e pastosa. — Qualquer cidade rica em algodão constitui um excelente campo de operações. Em Riverwood há fazendas tão vastas como produtivas. As pessoas não sabem em que gastar o ouro, amigo.
—Deus queira que seja assim—rogou fervorosamente Swane. — Em Greenville não foi nada boa a coisa.
—Aquilo era outro Estado, Swane. E, além disso o sheriff tornou-se pesado para nós.
— Por outras palavras, que se passou contigo?
— Oh, bem! Não é necessário explicar.
E com um sorriso cínico afastou-se pela coberta. Rush Marlowe era um homem distinto, por muito desavergonhado que fosse, pensou Swane vendo-o afastar-se.
Com os seus seis pés de altura e os seus amplos ombros, tanto a levita como as calças de fazenda branca, caíam-lhe como a qualquer elegante do Este. A camisa riscada com botões de brilhantes legítimos, e o laço negro e o amplo chapéu branco, também ajudavam a criar essa impressão de elegância, só alterada pela presença inquietante de dois revólveres pendentes do seu cinto, apenas cobertos pela levita.
De todos os trapaceiros e jogadores «vantagistas» que pudessem haver no Mississípi poucos seriam tão hábeis e audazes como Rush Marlowe, conhecido por «Anjo». E qualquer pessoa que visse as suas morenas feições de cândidos olhos azuis, sorriso brincalhão e loiros cabelos, reconheceria que existia algo de angelical no seu aspeto, tão falso como todo ele.
Rush desceu a escada até à coberta de baixo e ali se deixou ficar, com a vista fixa nas extensas plantações de algodão que bordejavam o rio. Em algumas, debaixo do sol já forte da manhã, que brilhava num céu sem nuvens depois da tormenta da tarde anterior, os negros e os brancos trabalhavam ativamente na colheita, algo antecipada naquele ano.
Debaixo dos alpendres das fazendas, pessoas indolentes dormitavam à sombra ou refrescavam as suas gargantas com bebidas geladas. O jogador observou-os calmamente, parecendo meditar.
— Sonhando em chegar a viver num sítio assim algum dia? — perguntou atrás dele uma voz feminina, em tom sarcástico.
As pás das suas rodas batiam a água do velho Mississípi com um ritmo monótono que levantava montanhas de espuma.
Não era um grande barco, o Mississípi Lady. Como todos os casinos flutuantes e dos Showboots da época, as suas largas chaminés, a sua grande roda central e os seus dois andares, enfeitados com alegres bandeirinhas, davam-lhe aquele ar entre pesado e gracioso, das embarcações fluviais que, com a simples intenção de oferecer um espetáculo, às não menos simples povoações ribeirinhas, sulcaram o amplo curso do Mississípi.
O homem da ponte superior afastou os olhos do aglomerado das velhas edificações que constituíam a cidade de Riverwood e afastou-se uns passos da borda, aspirando com satisfação o fumo do seu aromático charuto.
—Crês que seja um bom sítio para trabalhar, «Anjo»? — perguntou nas suas costas o velho Swane.
Rush Marlowe, o «Anjo», voltou-se para ele com um sorriso que o outro conhecia muito bem.
— Claro, Swane — disse, com a sua voz grave e pastosa. — Qualquer cidade rica em algodão constitui um excelente campo de operações. Em Riverwood há fazendas tão vastas como produtivas. As pessoas não sabem em que gastar o ouro, amigo.
—Deus queira que seja assim—rogou fervorosamente Swane. — Em Greenville não foi nada boa a coisa.
—Aquilo era outro Estado, Swane. E, além disso o sheriff tornou-se pesado para nós.
— Por outras palavras, que se passou contigo?
— Oh, bem! Não é necessário explicar.
E com um sorriso cínico afastou-se pela coberta. Rush Marlowe era um homem distinto, por muito desavergonhado que fosse, pensou Swane vendo-o afastar-se.
Com os seus seis pés de altura e os seus amplos ombros, tanto a levita como as calças de fazenda branca, caíam-lhe como a qualquer elegante do Este. A camisa riscada com botões de brilhantes legítimos, e o laço negro e o amplo chapéu branco, também ajudavam a criar essa impressão de elegância, só alterada pela presença inquietante de dois revólveres pendentes do seu cinto, apenas cobertos pela levita.
De todos os trapaceiros e jogadores «vantagistas» que pudessem haver no Mississípi poucos seriam tão hábeis e audazes como Rush Marlowe, conhecido por «Anjo». E qualquer pessoa que visse as suas morenas feições de cândidos olhos azuis, sorriso brincalhão e loiros cabelos, reconheceria que existia algo de angelical no seu aspeto, tão falso como todo ele.
Rush desceu a escada até à coberta de baixo e ali se deixou ficar, com a vista fixa nas extensas plantações de algodão que bordejavam o rio. Em algumas, debaixo do sol já forte da manhã, que brilhava num céu sem nuvens depois da tormenta da tarde anterior, os negros e os brancos trabalhavam ativamente na colheita, algo antecipada naquele ano.
Debaixo dos alpendres das fazendas, pessoas indolentes dormitavam à sombra ou refrescavam as suas gargantas com bebidas geladas. O jogador observou-os calmamente, parecendo meditar.
— Sonhando em chegar a viver num sítio assim algum dia? — perguntou atrás dele uma voz feminina, em tom sarcástico.
Rush voltou-se com indolência, para olhar a pessoa que lhe tinha falado. Apenas despegou os lábios ao responder: — Não. Compadecido com essas pessoas, Jean-nine.
— Porquê?
Jeannine Goulard, a bela morena proprietária do Mississípi Lady, franziu as suas finas sobrancelhas, cravando uns surpreendidos olhos, da cor das águas do rio, no cínico rosto de Rush.
Era uma mulher extraordinariamente bela, não necessitando de todos os excessivos enfeites e adornos para brilhar de um modo surpreendente. A tez bronzeada, os cabelos negros e o corpo de curvas bem feitas, dentro do atrevido vestido comprido, formavam um total fascinante.
—Porquê? — repetiu o «Anjo». — Eles estão sempre no mesmo sítio. Veem passar a vida sem se preocuparem em vivê-la.
Jeannine avançou uns passos, com os olhos perdidos nas águas agitadas pela roda.
— Julgo que é mais natural admirá-los por isso. Não é melhor ver passar a vida do que passar por ela de um lado para o outro?
—Isso é o que tu pensas. Qualquer dia casarás com um fazendeiro e passarás os anos vendo apanhar algodão e os teus filhos a brincar no alpendre. Então serás muito feliz, verdadeiramente feliz. Mas eu não, diabo! Não nasci para apodrecer num canto, e sem ver todo o horizonte.
Jeannine olhou-o desgostosa.
— Pensas viver muito ainda? As pessoas conhecem-te já muito bem, desde Minnesota a Louisiana e desde o Colorado a Virgínia, Rush. Qualquer dia alguém se cansará de ti... e aí acabará a tua carreira.
Rush soltou uma breve gargalhada.
— Excelente. Assim, os dois teremos o fim que cada qual mais deseja.
— Gostaria compreender-te alguma vez, Rush —disse Jeannine, amargamente.
— Desgosta-me esta conversa, querida — cortou com brusquidão o jogador, dando-lhe um beijo nos lábios e dispondo-se a abandonar a coberta.
— Um corpo humano a boiar!
A voz sonora e vibrante do timoneiro pôs todos em alvoroço. Estabeleceu-se enorme pânico no barco. As raparigas do conjunto que Jeannine levava a bordo, para animar as salas de jogo e ajudar a depenar os incautos, começaram a correr de um lado para outro.
Rush Marlowe, que tinha parado, fixou os seus olhos azuis na preocupada Jeannine.
— Vês — sorriu o jogador. —Riverwood dá-nos as boas-vindas.
Depois acercou-se da borda do barco, onde já se amontoavam os croupiers, empregados e coristas do casino flutuante, seguido por Jeannine.
O corpo flutuava próximo do barco, ainda que o impulso das pás o afastassem de vez em quando. O Mississípi Lady foi manobrando até se aproximar dele e alguém agarrou num croque para trazê-lo ao alcance do barco. Rush, impassível, viu a manobra, que por fim foi coroada de êxito.
O cadáver, içado para bordo, foi depositado no meio da coberta, e os homens trataram de afastar as raparigas.
Jeannine, pálida mas decidida, abriu caminho até chegar ao corpo. Este estava inchado e pouco agradável de se ver. Contemplou-o com o maior sangue-frio.
—Algum suicida—comentou, indiferente. —Ou talvez algum acidente. Avisaremos o sheriff quando chegarmos. Não gosto destas coisas.
Sentiu-se suavemente afastada para um lado, quando a elevada e esbelta figura de Rush Marlowe se plantou diante do corpo sem vida.
- Suicídio, disseste? — Rush soltou uma gargalhada entre dentes. — Tens uma vista deplorável,
encanto. Tem o peito cheio de sangue e podem ver-se buracos na camisa. Ninguém dá tiros em si próprio antes de deitar-se ao rio.
Jeannine olhou-o.
— Que queres dizer?
— Nada. Mas se isto não é um assassinato eu sou um frade missionário. Embora Jeannine não gostasse da palavra «assassinato» viu-se forçada a reconhecer que a opinião de Rush tinha uma desagradável solidez.
— Que vamos fazer, Rush? Não gosto destes assuntos.
—Nem eu. Mas não podemos atirá-lo outra vez ao rio. Ao chegarmos a Riverwood, e se ainda continuar como sheriff o velho Fox, far-lhe-emos a entrega do nosso presente. Suspeito que achará tão pouca graça como nós.
Jonathan Fox achou muito menos graça do que eles ao ver o cadáver. Conhecia muito bem Matt Howland, para saber que aquele era o corpo do veterano fazendeiro. E as balas no peito não deixavam margem a dúvidas. Tapou de novo o cadáver e voltou-se para Rush, que estava com ele na agência funerária de Homer.
— Boa maneira de dar as boas-vindas, eh, Rush? —resmungou o velho sheriff acariciando maquinalmente o seu grande bigode cinzento. —Suspeito que vais levar uma fraca impressão desta cidade.
— Não creias — sorriu o jogador. — Em Nosth Rockies, uma povoaçãozinha do Norte, receberam--nos uma vez a tiros. Aquilo foi pior.
—Diabo, Rush, mas isto é um sítio relativamente pacífico. Salvo uns incêndios acidentais numas plantações, não houve nada de particular em dois anos.
—Incêndios? Não são frequentes nesta região.
— Não, de acordo. Mas o pobre Matt teve infelicidade.
— Matt? —Rush olhou a forma tapada pelo lençol.
O sheriff assentiu.
— Exato. Matt Howland foi infeliz duas vezes.
Os olhos cândidos do «Anjo» brilharam de uma forma estranha, mas não disse nada. Pelo contrário, agarrou no seu amplo chapéu branco e encaminhou-se para a porta.
— Bem, Fox, vou-me embora — disse. — Jean-nine precisa de mim.
—Ah, Rush! Preciso de dizer-te uma coisa.
—Bem... —O jogador franziu as sobrancelhas e olhou para o sheriff. — Na minha jurisdição não tolero batota, sabes. Ou se joga limpo ou tu e o teu barco que vão para o inferno.
—Assombras-me, Jonathan. Parece que não me conheces.
— Precisamente porque te conheço muito bem, te digo isto.
Rush sorriu cinicamente, despediu-se com um aceno, e saiu para a rua depois de cruzar com uma sala cheia de feios e negros ataúdes. Entre eles o seco homem tornava-se quase tão feio e sombrio como eles.
A rua principal de Riverwood, como qualquer outra rua semelhante numa cidade do Médio--Oeste, era uma ampla rua de terra solta, agora ladeada por filas de irregulares edificações de madeira. Cada casa tinha a sua galeria saliente, que servia de alpendre e em cujas portas ou colunas muitos amarravam as suas montadas.
Rush Marlowe dirigiu-se para o outro lado. A sua elevada figura, vestida de branco, cruzou debaixo do cálido sol seguida pelo olhar curioso de alguns transeuntes.
Encaminhou-se para o saloon de Big Wilkes, cujo nome luzia na frente do edifício, com letras vermelhas, muito brilhantes, Rush empurrou o batente, entrando na pesada atmosfera do local.
Já então, todo o Riverwood sabia que Matt Howland tinha sido assassinado e o seu corpo pescado pelo pessoal do casino flutuante, nas águas do rio. Os olhares dos frequentadores cravaram-se como um só na figura de Rush quando este cruzou a entrada e se aproximou do comprido balcão.
—Um whisky duplo, amigo—pediu ao homem grande e barrigudo que servia ao balcão.
— Em seguida, forasteiro — e o homenzarrão tirou um copo e uma garrafa, ao mesmo tempo que olhava com interesse as feições inocentes do «Anjo». —Veio no barco, não?
Rush confirmou com um sinal de cabeça.
— Que diz da morte de Matt Howland?
Rush pousou no homem as suas cândidas pupilas.
— Era Howland, o morto do rio? — perguntou fingindo ignorância. O outro disse que sim e ele continuou: — Se alguma vez vi um homem assassinado, que me enforquem se este não o era.
—Por uma matilha de cães! —bramou o que devia ser Big Wilkes. — Eu adverti Matt que não os desafiasse...
—A quem? —a pergunta de Rush era, ao que parecia, indiferente.
—Esses malditos Milligan. Matt jurava que eram eles os autores dos incêndios. Slim e Harry disseram, ao inteirarem-se, que se não retirasse essa acusação, para que o dissesse em frente deles.
Os restantes clientes juntavam-se à escuta. Rush pensou que não lhe importava muito conhecer os detalhes de tudo aquilo, e muito menos diante de tantos curiosos. Deitou uma moeda para cima do balcão.
— Bom, Wilkes, depois voltarei por aqui. Não me interessam os mexericos de Riverwood.
Deu meia volta, encaminhando-se para a porta. Então esta abriu-se e apareceu um novo cliente. Era um jovem delgado e muito loiro, de feições infantis e tez sardenta. Nada nele era digno de chamar a atenção, salvo o seu ar de seminarista que não enquadrava bem naquele ambiente.
Rush teria passado junto dele sem mais preocupações, mas nesse momento começaram a acontecer coisas. Big Wilkes mastigou um nome em voz baixa:
—Jess Milligan!
O jogador continuou a andar, mas ao chegar à porta parou. Voltou-se lentamente, pressentindo que algo ia acontecer. Com efeito, Jess Milligan encontrava-se imóvel, como se estranhasse a frieza das caras hostis cujos olhos se fixavam nele.
Big Wilkes, apertava as mandíbulas, numa dura expressão. De entre os clientes, um de cara barbuda adiantou-se aos demais.
— Olá, Jess. Vem festejar o acontecimento?
A Rush pareceu-lhe muito bem fingida a surpresa do jovem. Tanto que parecia verdadeira.
— Festejar o quê, Burton? — perguntou intrigado.
—De sobra o sabes, maldito porco! —bramou o chamado Burton, piscando levemente os seus olhitos malignos. — Não era o que queriam todos os da vossa família? Eliminar Matt Howland?
— Howland? Não o entendo, Burton.
— Pergunta a esse forasteiro, farsante!
Jess pareceu que ia a replicar violentamente. Mas a curiosidade pôde mais do que ele. Voltou-se para Rush.
— Que se passa, senhor? Ignoro a que vem tudo isto!
— Encontrámos o corpo de um tal Matt Howland no rio—informou rapidamente Rush, observando a palidez que se espalhava pela cara sardenta do jovem. — Tinha duas balas no corpo.
O silêncio era denso. A expressão de menino incrédulo de Jess parecia verdadeira.
— Mas..., mas isso é horrível. Horrível!
O agressivo Burton deu outro passo para ele.
— Não servem fingimentos, coiote cobarde. Tu e os teus irmãos assassinaram-no. São uns asquerosos assassinos e...
Jess reagiu com urna velocidade assombrosa. Estendeu o braço, desfechando o punho no queixo do seu acusador com uma força formidável.
Apanhado de surpresa, o barbudo foi projetado contra umas mesas, tombando-as e quase caindo ele também. Recuperando, no entanto, o equilíbrio, lançou urna maldição entre dentes.
Outro dos indivíduos presentes no saloon, levou velozmente a mão ao coldre. Jess, ocupado em vigiar Burton, não deu pelo que se passava senão quando soou o disparo. Mas não foi a sua arma que falou.
Na mão de Rush Marlowe, como num jogo de magia, aparecia agora um revólver fumegante e os cândidos olhos do jogador cravaram-se com dureza no homem que agarrava a mão ensanguentada, tendo a seus pés o revólver que não chegara a utilizar.
— Que alguém repita o mesmo e receberá outro aviso igual—falou em tom cortante o «Anjo».
— Porquê?
Jeannine Goulard, a bela morena proprietária do Mississípi Lady, franziu as suas finas sobrancelhas, cravando uns surpreendidos olhos, da cor das águas do rio, no cínico rosto de Rush.
Era uma mulher extraordinariamente bela, não necessitando de todos os excessivos enfeites e adornos para brilhar de um modo surpreendente. A tez bronzeada, os cabelos negros e o corpo de curvas bem feitas, dentro do atrevido vestido comprido, formavam um total fascinante.
—Porquê? — repetiu o «Anjo». — Eles estão sempre no mesmo sítio. Veem passar a vida sem se preocuparem em vivê-la.
Jeannine avançou uns passos, com os olhos perdidos nas águas agitadas pela roda.
— Julgo que é mais natural admirá-los por isso. Não é melhor ver passar a vida do que passar por ela de um lado para o outro?
—Isso é o que tu pensas. Qualquer dia casarás com um fazendeiro e passarás os anos vendo apanhar algodão e os teus filhos a brincar no alpendre. Então serás muito feliz, verdadeiramente feliz. Mas eu não, diabo! Não nasci para apodrecer num canto, e sem ver todo o horizonte.
Jeannine olhou-o desgostosa.
— Pensas viver muito ainda? As pessoas conhecem-te já muito bem, desde Minnesota a Louisiana e desde o Colorado a Virgínia, Rush. Qualquer dia alguém se cansará de ti... e aí acabará a tua carreira.
Rush soltou uma breve gargalhada.
— Excelente. Assim, os dois teremos o fim que cada qual mais deseja.
— Gostaria compreender-te alguma vez, Rush —disse Jeannine, amargamente.
— Desgosta-me esta conversa, querida — cortou com brusquidão o jogador, dando-lhe um beijo nos lábios e dispondo-se a abandonar a coberta.
— Um corpo humano a boiar!
A voz sonora e vibrante do timoneiro pôs todos em alvoroço. Estabeleceu-se enorme pânico no barco. As raparigas do conjunto que Jeannine levava a bordo, para animar as salas de jogo e ajudar a depenar os incautos, começaram a correr de um lado para outro.
Rush Marlowe, que tinha parado, fixou os seus olhos azuis na preocupada Jeannine.
— Vês — sorriu o jogador. —Riverwood dá-nos as boas-vindas.
Depois acercou-se da borda do barco, onde já se amontoavam os croupiers, empregados e coristas do casino flutuante, seguido por Jeannine.
O corpo flutuava próximo do barco, ainda que o impulso das pás o afastassem de vez em quando. O Mississípi Lady foi manobrando até se aproximar dele e alguém agarrou num croque para trazê-lo ao alcance do barco. Rush, impassível, viu a manobra, que por fim foi coroada de êxito.
O cadáver, içado para bordo, foi depositado no meio da coberta, e os homens trataram de afastar as raparigas.
Jeannine, pálida mas decidida, abriu caminho até chegar ao corpo. Este estava inchado e pouco agradável de se ver. Contemplou-o com o maior sangue-frio.
—Algum suicida—comentou, indiferente. —Ou talvez algum acidente. Avisaremos o sheriff quando chegarmos. Não gosto destas coisas.
Sentiu-se suavemente afastada para um lado, quando a elevada e esbelta figura de Rush Marlowe se plantou diante do corpo sem vida.
- Suicídio, disseste? — Rush soltou uma gargalhada entre dentes. — Tens uma vista deplorável,
encanto. Tem o peito cheio de sangue e podem ver-se buracos na camisa. Ninguém dá tiros em si próprio antes de deitar-se ao rio.
Jeannine olhou-o.
— Que queres dizer?
— Nada. Mas se isto não é um assassinato eu sou um frade missionário. Embora Jeannine não gostasse da palavra «assassinato» viu-se forçada a reconhecer que a opinião de Rush tinha uma desagradável solidez.
— Que vamos fazer, Rush? Não gosto destes assuntos.
—Nem eu. Mas não podemos atirá-lo outra vez ao rio. Ao chegarmos a Riverwood, e se ainda continuar como sheriff o velho Fox, far-lhe-emos a entrega do nosso presente. Suspeito que achará tão pouca graça como nós.
Jonathan Fox achou muito menos graça do que eles ao ver o cadáver. Conhecia muito bem Matt Howland, para saber que aquele era o corpo do veterano fazendeiro. E as balas no peito não deixavam margem a dúvidas. Tapou de novo o cadáver e voltou-se para Rush, que estava com ele na agência funerária de Homer.
— Boa maneira de dar as boas-vindas, eh, Rush? —resmungou o velho sheriff acariciando maquinalmente o seu grande bigode cinzento. —Suspeito que vais levar uma fraca impressão desta cidade.
— Não creias — sorriu o jogador. — Em Nosth Rockies, uma povoaçãozinha do Norte, receberam--nos uma vez a tiros. Aquilo foi pior.
—Diabo, Rush, mas isto é um sítio relativamente pacífico. Salvo uns incêndios acidentais numas plantações, não houve nada de particular em dois anos.
—Incêndios? Não são frequentes nesta região.
— Não, de acordo. Mas o pobre Matt teve infelicidade.
— Matt? —Rush olhou a forma tapada pelo lençol.
O sheriff assentiu.
— Exato. Matt Howland foi infeliz duas vezes.
Os olhos cândidos do «Anjo» brilharam de uma forma estranha, mas não disse nada. Pelo contrário, agarrou no seu amplo chapéu branco e encaminhou-se para a porta.
— Bem, Fox, vou-me embora — disse. — Jean-nine precisa de mim.
—Ah, Rush! Preciso de dizer-te uma coisa.
—Bem... —O jogador franziu as sobrancelhas e olhou para o sheriff. — Na minha jurisdição não tolero batota, sabes. Ou se joga limpo ou tu e o teu barco que vão para o inferno.
—Assombras-me, Jonathan. Parece que não me conheces.
— Precisamente porque te conheço muito bem, te digo isto.
Rush sorriu cinicamente, despediu-se com um aceno, e saiu para a rua depois de cruzar com uma sala cheia de feios e negros ataúdes. Entre eles o seco homem tornava-se quase tão feio e sombrio como eles.
A rua principal de Riverwood, como qualquer outra rua semelhante numa cidade do Médio--Oeste, era uma ampla rua de terra solta, agora ladeada por filas de irregulares edificações de madeira. Cada casa tinha a sua galeria saliente, que servia de alpendre e em cujas portas ou colunas muitos amarravam as suas montadas.
Rush Marlowe dirigiu-se para o outro lado. A sua elevada figura, vestida de branco, cruzou debaixo do cálido sol seguida pelo olhar curioso de alguns transeuntes.
Encaminhou-se para o saloon de Big Wilkes, cujo nome luzia na frente do edifício, com letras vermelhas, muito brilhantes, Rush empurrou o batente, entrando na pesada atmosfera do local.
Já então, todo o Riverwood sabia que Matt Howland tinha sido assassinado e o seu corpo pescado pelo pessoal do casino flutuante, nas águas do rio. Os olhares dos frequentadores cravaram-se como um só na figura de Rush quando este cruzou a entrada e se aproximou do comprido balcão.
—Um whisky duplo, amigo—pediu ao homem grande e barrigudo que servia ao balcão.
— Em seguida, forasteiro — e o homenzarrão tirou um copo e uma garrafa, ao mesmo tempo que olhava com interesse as feições inocentes do «Anjo». —Veio no barco, não?
Rush confirmou com um sinal de cabeça.
— Que diz da morte de Matt Howland?
Rush pousou no homem as suas cândidas pupilas.
— Era Howland, o morto do rio? — perguntou fingindo ignorância. O outro disse que sim e ele continuou: — Se alguma vez vi um homem assassinado, que me enforquem se este não o era.
—Por uma matilha de cães! —bramou o que devia ser Big Wilkes. — Eu adverti Matt que não os desafiasse...
—A quem? —a pergunta de Rush era, ao que parecia, indiferente.
—Esses malditos Milligan. Matt jurava que eram eles os autores dos incêndios. Slim e Harry disseram, ao inteirarem-se, que se não retirasse essa acusação, para que o dissesse em frente deles.
Os restantes clientes juntavam-se à escuta. Rush pensou que não lhe importava muito conhecer os detalhes de tudo aquilo, e muito menos diante de tantos curiosos. Deitou uma moeda para cima do balcão.
— Bom, Wilkes, depois voltarei por aqui. Não me interessam os mexericos de Riverwood.
Deu meia volta, encaminhando-se para a porta. Então esta abriu-se e apareceu um novo cliente. Era um jovem delgado e muito loiro, de feições infantis e tez sardenta. Nada nele era digno de chamar a atenção, salvo o seu ar de seminarista que não enquadrava bem naquele ambiente.
Rush teria passado junto dele sem mais preocupações, mas nesse momento começaram a acontecer coisas. Big Wilkes mastigou um nome em voz baixa:
—Jess Milligan!
O jogador continuou a andar, mas ao chegar à porta parou. Voltou-se lentamente, pressentindo que algo ia acontecer. Com efeito, Jess Milligan encontrava-se imóvel, como se estranhasse a frieza das caras hostis cujos olhos se fixavam nele.
Big Wilkes, apertava as mandíbulas, numa dura expressão. De entre os clientes, um de cara barbuda adiantou-se aos demais.
— Olá, Jess. Vem festejar o acontecimento?
A Rush pareceu-lhe muito bem fingida a surpresa do jovem. Tanto que parecia verdadeira.
— Festejar o quê, Burton? — perguntou intrigado.
—De sobra o sabes, maldito porco! —bramou o chamado Burton, piscando levemente os seus olhitos malignos. — Não era o que queriam todos os da vossa família? Eliminar Matt Howland?
— Howland? Não o entendo, Burton.
— Pergunta a esse forasteiro, farsante!
Jess pareceu que ia a replicar violentamente. Mas a curiosidade pôde mais do que ele. Voltou-se para Rush.
— Que se passa, senhor? Ignoro a que vem tudo isto!
— Encontrámos o corpo de um tal Matt Howland no rio—informou rapidamente Rush, observando a palidez que se espalhava pela cara sardenta do jovem. — Tinha duas balas no corpo.
O silêncio era denso. A expressão de menino incrédulo de Jess parecia verdadeira.
— Mas..., mas isso é horrível. Horrível!
O agressivo Burton deu outro passo para ele.
— Não servem fingimentos, coiote cobarde. Tu e os teus irmãos assassinaram-no. São uns asquerosos assassinos e...
Jess reagiu com urna velocidade assombrosa. Estendeu o braço, desfechando o punho no queixo do seu acusador com uma força formidável.
Apanhado de surpresa, o barbudo foi projetado contra umas mesas, tombando-as e quase caindo ele também. Recuperando, no entanto, o equilíbrio, lançou urna maldição entre dentes.
Outro dos indivíduos presentes no saloon, levou velozmente a mão ao coldre. Jess, ocupado em vigiar Burton, não deu pelo que se passava senão quando soou o disparo. Mas não foi a sua arma que falou.
Na mão de Rush Marlowe, como num jogo de magia, aparecia agora um revólver fumegante e os cândidos olhos do jogador cravaram-se com dureza no homem que agarrava a mão ensanguentada, tendo a seus pés o revólver que não chegara a utilizar.
— Que alguém repita o mesmo e receberá outro aviso igual—falou em tom cortante o «Anjo».
Sem comentários:
Enviar um comentário