terça-feira, 29 de janeiro de 2019

CLT018.13 Um homem vai-se embora

No alpendre da fazenda Howland, onde Rush convalescia do seu ferimento, as sombras da tarde iam estendendo-se cada vez mais, enquanto o disco avermelhado do sol se escondia lentamente atrás da linha do horizonte, dando uma cor rosada às leves nuvens que sulcavam o azul do firmamento.
Doris, com os olhos fixos nos reflexos sangrentos daquele crepúsculo, não se voltou para olhar para Rush. Continuou com o rosto voltado para o Oeste.
— Então... é inevitável?
Rush concordou
— É.
— Hoje?
— Esta noite.
— E porquê, Rush?
— Porque temos todos um caminho marcado na vida, e é um erro afastarmo-nos dele. Este é o meu, Doris.
— É por ela... por Jeannine?
— Não sejas tonta. Sabes muito bem que não. Jeannine é uma boa companheira no meu caminho.
— E eu não podia sê-lo?
Rush aproximou-se, ainda a coxear levemente, apoiado numa bengala.




— Não, Doris. Tu não podias nunca seguir o meu caminho. És de outra classe. E se eu seguisse o teu, cometeríamos os dois um erro tremendo.
— Juro-te que não...
— Não, não jures. Sei que o crês firmemente, mas o que tu julgas não significa nada. As pessoas são assim, Doris. Nem a vida, nem o amor, nem nenhuma outra coisa pode mudar-nos. Nasci para andar rio acima, rio abaixo, terra acima, terra abaixo. De qualquer modo, para não nos destruirmos nunca num sítio e não morrer nisso a que tanto vocês gostam e que chamam lar.
—Não serias feliz a meu lado, não é verdade?
Rush vacilou, olhando-a com firmeza.
— Não seria — mentiu dolorosamente. — Nem tu tão-pouco, e isso seria ainda o pior. É melhor assim, Doris. Eu sigo o meu caminho, e talvez algum dia voltarei aqui. Então ver-te-ei de novo, ao entardecer como agora e neste mesmo lugar. Mas então serás a feliz senhora Milligan, e os teus filhos correrão a brincar pelas plantações e os chamarás sem cessar. Jess sorrirá feliz. Tu também. Será assim, pois. Jess é um grande rapaz e ama-te.
—Eu não, Rush.
—Agora dizes isso e não reparas, Doris, porque julgas amar-me a mim. E isso é puro engano. Eu sou forasteiro, o que se torna sempre interessante.
—Rush! — havia lágrimas naqueles olhos apaixonados.
— Deixa-me acabar — Rush desejava fazê-lo antes que lhe faltasse a coragem. — Quando eu tiver partido, verificarás que é a Jess que amas e com quem serás feliz. Eu prometo-te voltar um dia e visitar-te. Não sei quando, mas voltarei. E então dar-me-ás razão a mim. Se isso te dá um pouco de consolação, Doris, digo-te que estas semanas passadas aqui, sob os teus cuidados, notei que contigo qualquer homem pode ser feliz e não aspirar a outra coisa senão a viver junto a ti toda a vida.
Doris inclinou a cabeça.
— Está bem, Rush. Se é essa a tua vontade, segue o caminho que traçaste para ti. Mas quando voltares ainda haverá amor em mim.
— És uma louquinha, Doris — Rush inclinou-se e roçou os lábios num beijo fugaz. — Uma louquinha adorável.
Ela atraiu-o a si e os seus lábios aproximaram--no num beijo apaixonado. O sol acabou por esconder-se no horizonte.
Podia ter desaparecido todo o firmamento, sem que eles notassem. E podia ter decorrido uma eternidade. Mas Rush afastou-se. Os seus olhos desviaram-se dos dela. Pela primeira vez sentiu-se cobarde.
—Adeus, Doris.
—Rush...
— Adeus.
E coxeando levemente, apoiado na sua bengala, afastou-se do alpendre debaixo da luz incerta do entardecer.
As primeiras luzes da aurora coincidiram com o silvo estridente da sirene do Mississípi Lady cujos ecos permaneceram largo tempo no ar silencioso da cidade adormecida.
Para lá dos algodoeiros apareciam os primeiros resplendores alaranjados da aurora, que ia mudando os tons das terras da ribeira.
Rush Marlowe deixou de contemplar o grupo das velhas casas que constituíam a povoação, e dirigiu agora um olhar sombrio à familiar silhueta do barco. Viu na amurada um rosto conhecido. Podia ser que estivesse mais pálido que o normal, por causa das luzes do amanhecer. Mas Rush sabia que não.
Jeannine olhava-o com expressão de quem sabia que está prestes a perder o que mais ama. E Jeannine sabia que Rush já não lhe pertencia totalmente.
— Sobe, Rush? — perguntou o velho Swane, com um brilho singular nos seus olhos perspicazes.
—Agora mesmo, amigo—disse Rush, com o pensamento noutro lugar.
Num lugar ao sol, de algodoeiros, e a sombra aprazível dos alpendres. Com a mente cheia de um rosto impossível de esquecer, de uns olhos que lhe diziam pela primeira vez o que era o amor. Um amor que ele nunca conheceu, em toda a sua pureza e intensidade.
—Bem, esperamos aqui em cima... se é que vens — disse Swane, em tom indefinível.
Rush nem sequer lhe respondeu. Sabia que nem mesmo ele tinha a certeza. Subir era fácil, mas significava abandonar Riverwood para sempre. Porque tanto ele como Doris sabiam muito bem que o regresso era uma mera promessa, que Rush não apareceria se com ela estivesse Jess.
Swane desapareceu na coberta do casino flutuante. O rosto pálido e desfigurado de Jeannine continuou ainda na amurada. O jogador afastou os olhos daquele rosto, incapaz de resistir à muda súplica que se lia nas faces contraídas da jovem.
Deu uns passos pela ponte de tábuas, com o olhar fixo na biqueira das suas botas, que soavam suavemente na madeira húmida. Depois sentou-se num tamborete de madeira, sem ver sequer as águas azuis do velho rio, ainda que parecesse concentrar a sua atenção nelas.
— Vai-se já, Rush?
A voz nas suas costas sobressaltou-o. Deu uma volta rápida, ao mesmo tempo que se levantava do banco.
— Jess!
Ambos os homens ficaram a olhar-se diretamente nos olhos, conscientes dos seus respetivos pensamentos.
—Vim despedir-me... se é que pensa ainda em deixar-nos.
—Claro que os deixo. Aqui não há nada a fazer, rapaz — sorriu Rush, sem alegria nenhuma. — Agora fica aqui uma lei representada com integridade e honradez. Fica o sheriff Fox, salvo da brutal agressão que sofreu, e tudo já está tranquilo.
—Graças a si, Rush.
—Não diga disparates, Jess.
—Sabe muito bem que sem você, isto não seria hoje o que é, nem estaríamos vivos.
—Bem, talvez os tenha ajudado um pouco. Vou-me embora, Jess. E os seus irmãos?
—Eles não sabem que vim. Nem tão-pouco Doris.
— Fez mal, rapaz — disse o «Anjo» meio brincalhão. —Não deve ocultar nada àquela que vai ser sua esposa.
Jess olhou gravemente para Rush.
—Não, Rush. Doris não podia ser nunca minha esposa.
— Que diz?
O jovem inclinou a cabeça. Os seus loiros cabelos esvoaçavam agitados pela brisa matinal.
—Eu... não sou cego, Rush. Nem tão-pouco posso consentir que Doris seja infeliz por minha causa.
— Está louco?
— Sei muito bem o que digo. Hoje enviei-lhe umas linhas. Sim, já sei que devia fazê-lo pessoalmente, mas não me senti capaz, talvez porque ao vê-la não teria conseguido fazê-lo. E é melhor assim. Renuncio a casar-me com ela.
— Jess! —Rush sentiu um estranho frio por todo o seu ser. — Mas você ama-a.
— Por isso mesmo, Rush. Unir a minha vida à dela, era forjar a sua infelicidade e a minha. Eu não podia ser feliz sabendo que a todas as horas, quando ela me olhasse ou fitasse o horizonte estaria pensando noutro homem. Outro que a merece mais do que eu e a quem ela não pode esquecer por muitos anos que viva.
— Jess, isso não é verdade.
O jovem Milligan pôs uma mão no braço do jogador.
—Sim, e você sabe-o bem. Ela ama-o. Confessou-mo, embora na realidade não fosse necessário.
Rush mordeu os lábios numa luta interna. Olhou com nobreza para o jovem.
—Não vou negar que eu... ao partir deixo aqui parte do meu ser. Por isso mesmo, não podia consentir nunca num sacrifício desses.
— Não seja você agora o louco, Rush. É mais velho do que eu e conhece melhor o mundo e as pessoas. Sabe que tenho razão, e que não deve matar tantas ilusões de um só golpe. Ela, você e eu próprio. Não, não o confunda. Seria impossível. Eu vou-me embora, Rush. Vou-me embora de Riverwood hoje mesmo. Será que vai deixar Doris sozinha?
Fez-se silêncio. O Mississípi Lady fez soar novamente a sua sirene. Marlowe olhou por um instante a chaminé fumegante, o rosto lívido de Jean-nine, que já pressentia o desastre. Depois, elevou os olhos para o céu tingido de púrpura.
—Diga, Rush, vai deixar sozinha Doris, agora que ela mais precisa de si?
Rush deu-se por vencido.
— Não, Jess, sou eu que preciso dela. É a minha regeneração, compreende. Uma vida nova, um lar, um alpendre para as tardes aprazíveis, com uma sombra protetora cheia de amor e paz. E é tanto, tanto, tudo isto, para quem viveu sempre como eu...
— É a sua oportunidade. Deixar essa corrente que o leva de terra em terra, como um objeto sem finalidade alguma. Vamos, Rush. Peço-lhe por todos...
Nos olhos cândidos do «Anjo» brilhou um lampejo de emoção. Olhou Jess, que tinha os olhos húmidos, e sorriu com uma sombra de amargura e de alegria enorme.
—Outro dia você disse que lhe salvei duas vezes a vida e agora você paga-me com muito mais, pois que de hoje em diante, a minha vida, que tinha sido vazia e sem finalidade, passa a ter uma razão de ser.
—Adeus, Rush. Voltarei qualquer dia.
Mas isso era mentira, e ambos o sabiam. Jess, como teria feito Rush, não voltaria a Riverwood enquanto vivesse nas proximidades do rio Doris Howland e Rush Marlowe, convertidos num casal feliz. Era uma despedida autêntica.
Jess afastou-se rapidamente, sem mais uma palavra, e o jogador voltou-se um momento. Jeannine tinha já desaparecido na coberta. O velho Swane disse-lhe adeus com a mão, enquanto o Mississípi Lady começava a afastar-se, ferido pelos primeiros raios do sol.
Rush sorriu com certa tristeza. Jeannine foi sempre uma magnífica jogadora, e sabia perder. Na última vaza... Doris Howland tinha ganho a partida. Virou em direção oposta, e a sua robusta figura perdeu-se entre as casas, caminhando em direção àquele disco vermelho que estava a nascer... como nascia também a nova vida de Rush Marlowe.


FIM 

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