domingo, 20 de janeiro de 2019

CLT018.04 Incidentes a bordo

Rush Marlowe embaralhou, habilmente, o novo baralho de cartas. Depois colocou-o no meio da mesa.
— Parta — disse a Larry Donlan, o fazendeiro de atlética figura e cabelos brancos como a neve.
Deu cartas.
Tinha na sua frente Big Wilkes, que embora estivesse a perder muito, tinha ainda na sua frente duas pilhas de fichas de considerável quantia. Rush sorriu-lhe COM o seu ar benigno e Wilkes continuou impassível.
O quarto parceiro era o plantador Ted Barrel, que olhou as suas cartas um momento.
— Abro com dez — disse estendendo uma ficha.
Todos aceitaram. Rush deu cartas. Barrell pediu uma, Wilkes duas e Donlan outra. Rush viu as suas. Tinha três damas. Pediu duas e aguardou com o olhar fixo e impenetrável no rosto dos demais.
Barrell passou por não lhe interessar a carta pedida. Wilkes teve um sorriso de troça quando subiu para vinte a aposta. Donlan aceitou. Rush viu as suas cartas: dois noves.
Era um ful bastante fraco.
Pousou as cartas sobre a mesa, aspirou com calma o fumo do seu cigarro e deitou uma ficha de cinquenta. Sem intimidar-se Wilkes aceitou o aumento. Então Donlan falou friamente:
— Duzentos.




Era uma boa cartada. Rush compreendeu que Donlan tinha, como mínimo, um fui superior ao seu, ou um poker. As suas pupilas azuis cravaram-se em Donlan desafiantes. O rosto moreno do fazendeiro tinha uma expressão maligna de satisfação.
Rush falou em tom gelado.
—É pouco, Donlan. Há-de ser... — Olhou a pilha, não muito alta, do seu adversário e concluiu: — Digamos... mil.
Fez-se um denso silêncio. Wilkes deitou as suas cartas sem a menor vacilação. Barrell mastigou algo feio entre dentes, e o suor invadiu o rosto de Donlan.
— Isso é bluf, Marlowe— disse rancoroso olhando-o quase com ódio.
—É muito possível que seja, Donlan —sorriu o «Anjo» passando a ponta dos dedos pela borda das cartas. — Parece que Barrell e Wilkes são da sua opinião. Eu, no seu lugar, veria as cartas.
Donlan passou a mão pelo queixo, também suado. Olhou o que lhe restava. Apenas chegaria a mil. E tinha principiado a partida com seis mil. Os montes de fichas acumuladas em frente de Rush, constituíam a sua parte e a de Wilkes. Barrel tinha ganho pouco.
—É o bluf mais descarado que vi na minha vida — exclamou o homem de cabelo branco.
—Ainda está a tempo de o comprovar. Aceita?
Donlan olhou outra vez as suas cartas. Depois atirou-as voltadas para cima, irritado.
— Não! —gritou com violência. — Não posso arriscar-me.
Rush apanhou o dinheiro, enquanto com olhos inexpressivos olhava para o fui de seis do seu adversário.
Donlan, a tremer, levantou-se da mesa.
— Não tenho vontade de continuar a partida. Encontro-me mal disposto.
— Já se vai, Donlan? —disse Rush. — Não obrigamos ninguém, se estes senhores não o desejam.
Wilkes e Barrell continuaram. Donlan afastou--se pela sala cheia de mesas de poker, onde outros jogadores da casa se batiam com os da localidade. De repente uma mão depositou sobre a mesa um monte de fichas brancas e vermelhas. Rush quase perdeu a cor. Eram fichas de dois e cinco mil.
— Há limite, senhor Marlowe?
Rush levantou a cabeça. Impecavelmente vestido de negro, Lou Lashwell estava de pé a seu lado. Tinha um olhar tão frio e viscoso como as águas dos pântanos, pensou Rush, recordando os verdes bosques de Louisiana onde nasceu.
— Trinta é o limite — informou com secura. — Mas por vezes fazemos exceções. Quanto quer jogar?
—Tudo. Cinquenta 'mil.
— Sente-se. Aceito. E os senhores?
Era uma loucura. Mas o «Anjo» gostava de loucuras. Wilkes e Barrell negaram, apressando-se a abandonarem a mesa. Mas não se afastaram, pois queriam ver a partida.
— Mano a mano, Lashwell. Quer assim?
O rico fazendeiro sentou-se na sua frente.
—Claro. É muito melhor.
Enquanto traziam novo baralho, Rush olhava fixamente o seu antagonista. Leu vingança e ódio nos seus olhos. Com alegria, notou as marcas violáceas no queixo e no olho direito.
— Servem? — perguntou Rush exibindo o baralho de cartas.
—Sim. Mas quero embaralhar eu.
Com tranquilo sorriso, Rush cedeu-lhe as cartas. Viu os dedos ágeis do fazendeiro baralharem com grande habilidade. Os seus olhos não perderam o mais leve detalhe. Partiu sem afastar o olhar das mãos largas e sensíveis. Aproximaram-se da mesa mais alguns curiosos quando Rush passou. Lashwell também teve um passe e voltou a baralhar. Desta vez, Rush abriu com dois seis. Pôs dois mil dólares no meio da mesa. Lou também. Alguém grunhiu uma frase de surpresa quando se apercebeu do valor das paradas. Lou pediu duas cartas, contra três que pediu Rush.
— Um par é pouco, Marlowe — sorriu Lou.
— Não o creia. Sempre podem vir-me as outras duas iguais— brincou o jogador ao ver as suas cartas.
Lou Lashwell viu as suas. Depois empurrou cinco fichas de dois mil para o centro sem o mais leve comentário.
— Vamos a ver se é verdade, Rush — desafiou Lou, com venenosa maldade nas suas pupilas verdes.
Rush não perdeu o sorriso. Olhou a expressão fechada do seu adversário, depois sorriu cinicamente ao cerco cada vez mais denso de espectadores. Divertiu-o ver os seus olhares ansiosos e febris, e o que fez depois encheu-o de prazer.
— Ainda não vi as minhas cartas, Lashwell —disse serenamente. — Mas é fraco. Sejam vinte mil.
O murmúrio geral foi de assombro e admiração. Alguém disse que era louco. mas Lashwell não disse nada. Arqueou as sobrancelhas, com surpresa muito verdadeira, e os seus olhos cor de esmeralda espiaram inutilmente o rosto risonho do «Anjo».
—Sejam vinte— e os seus dedos apanharam duas fichas de cinco mil, com uma serenidade que admirou Rush. — Vamos a ver as suas cartas.
Rush colocou-as voltadas para cima, com a mesma indiferença como se pegasse em dois dólares. As caras aproximaram-se. Um clamor único de assombro ressoou na sala quando quatro reis ficaram à mostra. O próprio Rush se ergueu, incrédulo.
—Poker! — exclamaram todos.
Lashwell atirou as suas cartas e disse rancoroso:
— Você é bruxo?
— Começo a crer que sim — confessou Rush perplexo.
A mão seguinte ganhou-a Lashwell, mas só subiu a três mil dólares. Depois, durante duas vezes ambos passaram, e as paradas subiram a doze mil no centro da mesa. Rush viu as suas cartas e colocou os doze mil de abertura. Lou aceitou, sem afastar a vista.
— Quantas?
— Uma — pediu Rush.
Lashwell serviu a carta. Colocou depois o baralho ao lado e olhou satisfeito.
— Servido, Marlowe?
O «Anjo» não se deu por achado. Examinou a carta sem emoção alguma. Colocou uma ficha branca.
—Dois mil—disse.
Lou riu sordidamente.
— Está cauteloso, hem, Marlowe?
— Um pouco.
— Vou com tudo — e colocou o resto no centro da mesa.
Novamente houve admiração no círculo de curiosos. Alguns empalideceram ante aquela fila de milhares arriscada num só golpe de azar ou audácia.
Ouviram-se as notas ruidosas da orquestra de cima, muito levemente, mas ninguém lhe dava atenção. Todos os olhos, como fascinados, foram do monte de fichas para o rosto de Rush que parecia tranquilo e repousado. Deslizou o olhar por sobre a mesa e depois cravou-o no seu adversário.
— Não creio que queira perder tanto, Lashwell, nem tão rapidamente — disse irónico. — Mesmo para você isso é muito dinheiro.
— Aceita ou não, Marlowe? Não gosto de sermões.
— Nem eu —Rush apanhou as suas fichas e colocou-as no meio da mesa. — Aceito, Lashwell, e você vai perder.
—Deveras? —A voz do fazendeiro era triunfante ao falar, mas Rush teve a estranha impressão de que havia mais alguma coisa que o triunfo naquele tom indefinível. — É um poker de noves.
Rush ouviu exclamações de assombro quando Lou mostrou as suas cartas.
— Lamento-o, amigo, mas a minha vale mais... quatro damas.
Os olhos de Lashwell brilharam febrilmente, mas Rush notou algo incrível: um sorriso de júbilo que durou uma fração de segundo apenas, substituído em seguida por um gesto de vivo furor, não muito sincero.
— Outro poker, Rush? — A sua voz soou sarcástica. — Que sorte!
A expressão de Marlowe tornou-se cândida nos seus olhos azuis, com toda a sua perigosa candura.
— Vê algo raro nisso, Lashwell? — silabou muito afável.
— Sim! — Lashwell atirou as restantes cartas voltadas para cima e assinalou triunfante: — Vejam todos!
42 —
Rush crispou-se ao ver no meio do baralho a dama de copas. Igual à que tinha em seu poder. Olhou para Lashwell com dureza.
— Como é isto, Lashwell? Essa carta não pode estar aí!
—Diga mais concretamente que não pode estar em dois sítios e que a sua não devia estar com as outras três.
Rush empalideceu levemente. ~
—Acusa-me de batoteiro, Lashwell? O círculo de mirones havia-se aberto e afastado, ante a eminência de acontecimentos graves.
— Sim, Marlowe! — exclamou sonoramente o fazendeiro, levantando velozmente a mão armada de um pesado «Colt».
A arma apontada a Rush disparou. A bala ia em linha recta, direita ao seu coração. Mas o pesado banco salvou-lhe a vida. Chegou no momento oportuno, por cima do círculo dos assustados espectadores, e caindo sobre o braço do fazendeiro fez--lhe errar o alvo, pelo menos umas duas jardas. A bala foi bater no tecto, e todas as fichas saltaram pelo ar ao impacto com o banco.
Rush Marlowe levantou-se velozmente, não perdendo tempo a ver quem tinha sido o seu milagroso salvador, e dando um empurrão na mesa para o lado, lançou-se a Lashwell. que não tinha tido tempo de corrigir a pontaria. Agarrou-se ao braço armado e torceu-lho até o fazer uivar de dor.
 Lashwell por fim soltou o «Colt», que Rush afastou com um pontapé, assentando-lhe dois murros em pleno estômago. Depois, o jogador soltou-lhe o braço e então aplicou-lhe dois golpes no rosto.
Lashwell cambaleou, mas estendeu a perna e assentou-lhe um pontapé na barriga. Retorcendo-se com dores, Rush dobrou-se para a frente, o que o fazendeiro aproveitou para o castigar no rosto com ambos os punhos.
O castigo irritou o «Anjo». Inclinou-se para trás a tempo de evitar um novo golpe, e lançou-se como um furacão sobre o seu adversário. Aplicou o punho direito na boca do outro, o esquerdo voou para o estômago e o direito voltou a aplicá-lo no queixo do fazendeiro.
Apanhado por este sistemático metralhar, Lou Lashwell cambaleou com os olhos semicerrados. Sem piedade, Rush voltou à carga. Martelou mais quatro ou cinco vezes a cara com a esquerda, até ver brotar o sangue pelo nariz. Depois, com um violento golpe da direita, derrubou Lou que ficou sem sentidos.
— Maldito porco! — exclamou furioso. — Pôs aquela dama nas minhas cartas, para acusar-me de batoteiro e atirar em seguida contra mim!
— Livrou-se por pouco, hem, amigo? — disse nas suas costas uma voz brincalhona e jovial.
Voltou-se. Falava-lhe um homem alto e moreno e de rosto franco. A seu lado, outro jovem corpulento e o jovem loiro daquela manhã o contemplavam sorridentes.
— Foi você que lançou o banco? — perguntou Rush.
— Na verdade... — sorriu o outro. — Soubemos que havia uma partida entre você e esse sapo. E quisemos vê-la.
—Deus bendiga a sua ideia — disse Rush, com fervor. — São os três Milligan?
— Os próprios — falou agora o jovem Jess. —Meus irmãos, Slim e Harry. Irmãos, este é Rush Marlowe, meu salvador desta manhã.
— Estamos quites, Jess — sorriu o jogador.
— Oh, não! —disse Slim, o seu salvador. — Só foi uma ajudazinha.
Riram todos. Então soou friamente, na entrada da sala, a voz de Jeannine:
— Que sucedeu, Rush?

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