sexta-feira, 3 de julho de 2015

PAS489. As quatro cartolinas da morte

— Meu pobre Garry... Meu pobre Garry...
— Lamento bastante, senhor Brampton — disse, em tom oficial, o comissário do xerife de Sam Angelo. — Venho informá-los de que o cadáver, de acordo com os vossos desejos, chegará, para ser enterrado, dentro dumas quarenta e oito horas. Assim, poderão enterrá-lo, como o desejam, no cemitério local. Tudo foi muito penoso, senhor Brampton, mas será pior daqui para diante. Não vai ser coisa agradável receber os restos mortais do seu filho e... bem, o senhor compreende-me. Se tivesse sido outra espécie de morte, mas esta...
Os olhos de Gordon Brampton estavam secos. Aparentemente, o homenzarrão de cabelos grisalhos e enorme estatura, de mãos rudes e calosas, devido aos trabalhos de ganadaria, era incapaz de expressar a sua dor pelo choro. Mas aquelas duas figuras enlutadas, que pareciam sombras, esguias e finas, por detrás do lugar onde se sentava o velho, sabiam muito bem que as nascentes da dor já tinham secado na existência de Gordon Brampton. Tanto a jovem mulher, delgada, loura e espiritual, de profundos olhos azuis rodeados por sombras violáceas, como o rapazito louro, de dezasseis anos apenas, mais pálidos pelo contraste com as suas roupas negras, tinham visto o velho chorar horas e horas seguidas, desde que tivera conhecimento, cinco dias antes, do trágico fim de seu filho Garry, numa suja e obscura ruela de Dodge City, a quase quatrocentas milhas de Sam Angelo, sua terra natal.
— Morto violentamente — declarou o velho, como que expressando uma ideia que o obcecava. — Com tiros... e roubado. Por duzentos mil dólares assassinarem o meu filho. Não lhes bastaria roubá-lo, mas perdoar-lhe a vida?
— Compreendo os seus sentimentos, senhor Brampton — disse o comissário, compadecido. — Mas um ladrão sabe que está mais seguro se acabar com a vida da sua vítima. É cruel, desumano... Mas é o que nós vemos todos os dias.
— Meu pobre Garry, meu filho mais velho...! — Gordon dirigiu um rápido olhar para o rapazote que estava atrás de si, com a mão da jovem pousada no seu ombro. — O pequeno Alex tem, apenas, dezasseis anos... É demasiado jovem para tomar conta da fazenda... enquanto que Garry era forte, hábil, o indicado para o trabalho da fazenda. Quis fazer a sua primeira viagem de ganadeiro ao mercado de Dodge... e veja o que aconteceu. Que será de nós, agora?
O comissário pôs-se de pé, despedindo-se com simpatia daquela desditosa família. Não estava nas suas mãos fazer mais do que fizera. Ainda antes de sair, repetiu, uma vez mais, como se pudesse aliviar a dor daqueles com quem falava:
— O xerife de Dodge disse-nos que revolverá o céu e a terra para dar com o culpado do crime. Tarde ou cedo cairá nas mãos da Lei, senhor Brampton...
Tarde ou cedo! Que fim mais vago! No fundo, aquele comissário de Sam Angelo estava tão convencido como Gordon Brampton de que o crime misterioso de Dodge City ficaria sem solução, um caso mais para arquivar, numa época em que a violência imperava em todo o Oeste.
E, mesmo que assim não fosse... de que valeria ao pobre velho saber que o assassino de seu filho pendia dum laço de cânhamo? Seria um fraco alívio... porque não lhe devolveria a própria vida do rapaz.
— Cairá nas mãos da Lei! — a exclamação, repetindo com sarcasmo a frase do comissário local, tinha saído duns lábios rosados, ressequidos e exangues, os da jovem loura enlutada, que dava um abraço protector e afectuoso ao irmão mais novo de Garry Brampton. — Como se isso fosse certo. Passarão anos, anos inteiros, e o homem ou homens que mataram o meu Garry continuarão pela vida fora, desfrutando da fortuna roubada, sem se lembrarem sequer do homem morto em Dodge City. Esta é a Lei, a Justiça do nosso país!
— Minha filha, não te amargures mais com essas ideias — pediu-lhe o velho Gordon, olhando-a com carinhosa piedade. — Para mim ainda é pior do que para ti. Rogo-te que não consideres a tua vida destroçada. Ainda nos tens a nós, a Alex e a mim. Serás, para mim, corno uma filha, urna irmã de Alex...
— Obrigado, papá — disse ela, ternamente, ainda que o seu gesto fosse duro, frio. — Mas tudo isso não me devolverá Garry, o homem que havia de ser meu marido, na próxima Primavera. O homem a quem amava loucamente!
— Eu sei, eu sei. Mas olha para mim. Estou em pior situação que Alex e que tu. Vocês são, ainda, dois jovens. Alex ir-se-á consolando, chegará à maioridade, será o dono disto tudo... se o pudermos conservar, e a luta pela vida e pelo seu próprio caminho nessa vida, que começa agora para ele, fá-lo-á esquecer, pensar em coisas novas. Tu... tu encontrarás, mais tarde ou mais cedo, outro bom homem, como Garry. Enamorar-te-ás outra vez...
—Não!
— Sim, filha, tem de ser. Sempre foi assim, ou a vida seria algo de muito vazio para quem perdesse um ente querido. Eles não querem a nossa eterna amargura. Tu tens, ainda, muitos anos à tua frente... e a vida é bela quando se é jovem. Mas eu... eu, que posso esperar do Mundo e da vida? Morto o meu filho mais velho, nada. Não tenho anos nem ilusões à minha frente, para compensar-me da sua perda. Acredita-me, filha, para vocês não será a mesma coisa, do que para Mim... E, não obstante, hei-de resignar-me e continuar a viver...
— Em contrapartida, eu não. Eu não me resigno —disse, com firmeza, a jovem. — Gordon Brampton surpreendeu-se e assustou-se com o seu tom. Não era natural numa mulher, ainda por cima jovem. Procurou, inquiridor, o olhar da que deveria ser sua nora. Encontrou dois alhos azuis, tão frios e profundos como um oceano glacial. Leu neles algo de que não gostou, alguma coisa que não se casava com a sua condição de mulher: ódio infinito, desejo de vingança, afã de pagar golpe com golpe, de ver cumprida a selvática pena de Talião. — Eu não me resigno, papá. Quero que Garry durma tranquilo na sua campa. O nosso trabalho não terminará quando a terra cair sobre o seu caixão e uma devota cruz assinalar o lugar onde morará para sempre.
— Que mais nos ficará para fazer, minha filha, a não ser rezar e recordá-lo?
— A si, talvez sim. A mim, não. A mim resta-me pensar no dia dia vingança, no dia em que saiba quem foram os que terminaram com a sua vida, e possa calcá-los, um por um, debaixo dos meus pés, sem piedade, sem uma parcela de compaixão ou de humanidade, como eles o fizeram.
— Sob os teus pés? — Gordon meneou a cabeça, dubitativo. -- Não é tarefa para ti, Jessie. Os teus pés são demasiado pequenos, pouco firmes para pisar...
— Haverá um meio de fortalecê-los, não duvide — e instintivamente a sua mão, enluvada de preto, apertou, até quase o aleijar, o ombro do garoto que estava junto a ela. Gordon não se apercebeu desse detalhe. Talvez, se o tivesse notado, a história que teve o seu trágico prólogo na morte de Garry Brampton seguisse um rumo muito diferente. Naquela fracção de segundo, o destino urdiu a sua teia diante do olhar penetrante e sombrio do velho Brampton.
Mas, ele não viu a pequena mão feminina violentamente crispada no ombro jovem do rapaz, e o destino afastou-se, deixando só um fio subtil, invisível, em que eles se envolveram, inconscientes das futuras consequências.
— Haverá um meio. Deixe o tempo passar e as coisas serão doutra maneira.
— O tempo... — suspirou o velho, parecendo aterrado pela menção do seu inimigo implacável. — Sim, esse tudo resolve... à sua maneira. Enfim, Jessie, minha filha, ficas connosco?
— Sim. Obrigado. Ficarei... até Alex e você não precisarem de mim. Serei... a sua filha, a filha que devia ser, se ele vivesse.
O ancião concordou, reconhecido. Alex também gostou da ideia. Estimava muito a bonita noiva do seu irmão. Mas perguntou a si próprio porque é que ela lhe provocava, de novo, tanta dor no ombro, com a sua mão suave e graciosa, de mulher terna e espiritual.
*
O cadáver chegou no dia previsto, numa carruagem do comboio, que só parava em Sam Ângelo quando havia passageiros ou mercadorias para lá.
Um delegado do xerife de Dodge vinha a acompanhá-lo. No seu rosto lia-se o descontentamento que a incumbência lhe provocava. Mas era um bom funcionário e cumpria o seu dever da melhor forma possível. Assistiu, mais como um familiar, ao comovente funeral, no pequeno cemitério de Sam Ângelo, sobre a colina. Expressou as suas condolências aos enlutados, que presidiam à cerimónia fúnebre, e, depois, já de regresso à fazenda Brampton, o delegado de Dodge cumpriu a segunda e última parte da sua missão.
Naquela noite saía um comboio para o Norte e convinha-lhe apanhá-lo. Assim, tratou de cumprir o seu dever para com os desolados Bramipton. Tirou do saco um embrulho, contendo todos os objectos encontrados nos bolsos de Garry Brampton. Foi uma cena comovente, depois da dor sofrida naquele dia. O velho pegou em todos os pequenos pertences, sem sequer os ver. Mas Jessie Latham viu-os. A sua mão foi ràpidamente ao encontro das amachucadas cartolinas, sujas por algo escuro e ressequido, juntas ao acaso num dos lados do embrulho.

Sem comentários:

Enviar um comentário