segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

XIV À espera do homem de lenço amarelo

Bart Taylor moveu a cabeça, tentando dissipar o peso que sentia nos membros, em contraste com a turva vacuidade em que o seu cérebro parecia diluir-se. A primeira coisa que o intrigou foi ver no solo, sobre a manta na qual estava estendido, a mancha da luz diurna; depois, umas botas. Então, levantou a vista e reconheceu Percy Descamps.
— O senhor devia ter apanhado com força. Há quantas horas tem estado a dormir como um leirão! Encontrei-o, por sorte, quando, ao chegar aqui, o senhor roncava.
Já sentado, Taylor olhou em redor, apalpando a nuca. Os cedros distavam meia milha do trançado.
— O senhor devia ter batido com a cabeça em alguma pedra, quando caiu do cavalo. E foi, certamente, a falta de dormir que o fez cair, quando menos esperava.
Pondo-se de pé, a custo, Taylor passou novamente a mão pela nuca.
— Pus-lhe aqui esta manta, chefe, para não apanhar reumático. Está certo de que descansou completamente, chefe? O senhor dormia...

— Como um leirão, a mais de quatro milhas onde caí. Foste a Eagle? Fui e voltei logo, ao saber que o senhor não tinha chegado ali.
— Como o soubeste?
— Porque a senhora Taylor estava jogando às cartas, com a esposa do xerife. Volta-lhe o enjoo, chefe?
— Não bebi a mais pequena gota de água e estou cheio de sede.
— Estão a trazê-la de Eagle em bidões, porque um dos nossos trabalhadores sentiu-se bem mal, quando, ao amanhecer, foi beber ao rio.
Descamps levava seguras na sua mão as bridas do seu cavalo e as do potro de Taylor.
— Sabe?! O potro pastava tranquilamente a seu lado, chefe. Os animais de boa casta são muito fiéis.
Taylor começou a andar a seu lado. De súbito, disse, mordendo as palavras:
— Não tardarei a desanuviar o cérebro e, então, verei claro.
Montou o animal e já dava a volta, quando viu os seus homens que corriam para os carros, como que abandonando o traçado. Descamps esporeou o seu cavalo, correndo para os que estavam a barricar-se atrás dos carros; e Bart Taylor, sentindo umas agudas dores nas têmporas, reafirmando-se na sela seguiu atrás daquele, para penetrar no quadrado, que os carros formavam.
Todos olhavam para a planície, que ficava ao Sul, pela qual meia centena de cavaleiros corria em rítmico galope. Os que iam à frente, levavam os rifles ao alto. Não era uma pacífica comitiva de vaqueiros em festa, mas sim homens do rancho de «Triple Star» que corriam claramente em plano de ataque. E à distância de umas cem jardas, partiram os primeiros tiros, cujas balas furaram as lonas e cravaram-se nas rodas.
— Vêm doidos! — disse Descamps.
Bart Taylor viu que os outros olhavam para ele, como convidando-o a conseguir a rápida detenção da belicosa avalanche montada. Mas dar a ordem de empregar as armas de fogo equivalia a comparticipar da incrível loucura dos vaqueiros; não a dar, seria o mesmo que verem-se cercados, logo que os atacantes abrissem brecha, desenvolvendo a formação.
Mas o alarde de superioridade cessou a umas trinta jardas, tornando a levantar os rifles os primeiros que tinham iniciado a carga. Foram-se detendo em várias fileiras, olhando para Oeste, por onde acudiam em tropel outros cavaleiros, descendo do maciço do barranco enquanto mais além, conduzidos por outro ganadeiro, chegavam mais reforços.
— Vou tentar chegar até Eagle — disse Descamps —. Vão reunir-se as três equipas de Ogden Walker, Chet Muldorf e Wilburn Lang. Pode ser o princípio de uma guerra, como a das pastagens na Nevada. Como vê, Taylor, são três velhos inimigos, que se unem para compartilhar da responsabilidade. Vou avisar o xerife e os mineiros.
— Não poderás sair. Eles já não disparam e não acredito que eles se disponham a exterminar traçadores.
Quando Ogden Walker se destacou da sua equipa, Chet Muldorf avançou. E, então, o rosto meio coberto e a mão direita no cabresto de couro e nas correias, Wilburn Lang avançou também. A sua voz soou imperiosa:
— Sois uns quarenta trabalhadores contra os que nada há pendente e fica livre o caminho para Eagle. Percy Descamps e os outros dois guardas devem ficar aqui. E tu também, Bart Taylor! Quieto, Taylor, não saia daqui. Qualquer passo em falso que se dê e já nada, nem ninguém, poderá deter o caudal de pólvora. Eu irei com Barnes ao encontro dos três ganadeiros.
Muldorf e Lang avançaram para o espaço de entrada e saída, no acampamento de carros e, em amplo semicírculo, como boca de tenaz, que poderia fechar-se de súbito, em volta, as três equipas de vaqueiros tomavam posições.
Bart Taylor engatilhou o seu rifle. Ele compreendia, como todos os outros, que bastaria um tiro para que o extermínio começasse. Percy Descamps e Barnes abandonavam o acampamento, dirigindo-se para os três ganadeiros, quando os traçadores voltaram a cabeça. De Eagle, vinham outros cavaleiros. Foi o próprio Lang quem esclareceu:
— Tal como a Walker e Muldorf, eu mandei um aviso ao xerife Mollison e a quantos devam presenciar e ouvir a pior infâmia que homens honrados têm contemplado.
Roscoe Mollison, Carlos Market e Tigger Dalton precediam uns vinte guardas de galerias mineiras. E os três também se adiantaram, até chegarem em frente dos ganadeiros, enquanto Descamps e Barnes se afastavam, obrigando as suas montadas a juntarem-se às dos seus vinte companheiros.
— Bons dias, meus senhores! -- disse o xerife, dirigindo a saudação a todos os presentes. Depois, olhando para Lang, acrescentou: —É muito grave a sua acusação.
— Jerry! Malcolm! Burns!
Os três vaqueiros do rancho «Triple Star» destacaram-se dos outros. Levavam laçados três corpos, que rebolavam sem vida, à medida que o arraste os aproximava: uma vitela, um potro e uma égua.
— Como estas provas, há mais doze no bebedouro do meu gado! — exclamou, erguido sobre os estribos, Wilburn Lang —. E se os meus homens não acudissem a separar o gado, nem uma só cabeça se salvaria. Envenenaram a acéquia que alimenta o meu bebedouro.
— A quem acusa, Lang?
— Acuso Bart Taylor! Só queremos enforcá-lo e, depois, contentar-nos-emos com levantar o troço que passa pelo meu caminho.
— Um momento, amigo — interveio Market. — Que interesse poderia, ou pode ter Taylor ou qualquer mineiro, em envenenar águas?
— Cuide do seu cartório, Market. Não é agora ocasião para argúcias de chicaneiro...
— Cale-se, Lang! Cale-se, Market — atalhou o xerife —. Uma acusação como a sua, Lang, que supõe um delito indigno, tem de ter testemunhas e provas.
Bart Taylor, a cavalo, aproximou-se lentamente e, por um movimento casual do cavalo ou voluntário impulso do cavaleiro, o certo é que Carlos Market interpôs-se, cerrando-lhe a passagem. Nesse momento, aproximaram-se três vaqueiros.
— Estes homens são três homens dignos, conhecidos em todo o Oregon, por manterem a sua palavra. E o senhor conhece-os bem, xerife. Burns viu Taylor rondar nas imediações do ramal. Jerry encontrou isto junto do canal e, com a sua mão válida, Lang lançou ao solo um objeto: um punhal, metido numa bainha de camurça.
Taylor olhou maquinalmente para o seu cinto e os presentes também. De facto, faltava-lhe o seu punhal.
— E Malcolm encontrou isto.
Lang estendeu um embrulho ao xerife a quem explicou:
— Quando as quinze cabeças de gado morreram com espantosas convulsões, fomos uns quantos explorar a conduta da água, e fui eu quem encontrou isto não longe do sítio onde Jerry encontrara o punhal de Taylor. A erva ressequida que Mollison examinou era uma dessas ervas que contaminam com poderosa rapidez qualquer acéquia de bebedouro.
Depois do seu exame, atirou o embrulho para o solo e, voltando-se, inquiriu:
— Bart Taylor: O senhor andou rondando, ontem ao anoitecer, pelos ramais da canalização? Juro tê-lo visto! — afirmou Burns, antes de que o acusado respondesse —. Não lhe perguntei nada, porque andava em terra livre. Cala-te, Burns! — ordenou Mollison — Responda, Taylor.
— A armadilha foi bem urdida, mas posso explicá-la... Eu não tinha, nem ninguém tem interesse em envenenar águas, para matar reses...
— Uma corda para Bart Taylor, xerife — gritou Lang — ou não respondo pelos meus homens...
Tiger Dalton levantou a mão.
— Que seja julgado como deve ser, meus senhores. É do pessoal das minas e deve esclarecer-se bem o caso, porque inculpar Bart Taylor compromete de ricochete a companhia Dalton.
— O xerife pode servir de juiz. Há acusação e provas. Árvores não faltam. Depois nos entenderemos com a Companhia. Nenhum ganadeiro permitirá esta provocação.
— Eu garanto que Taylor não é um idiota que comprometa um bom trabalho e vá deixando rastos — aduziu Market —. O senhor perdeu quinze cabeças de gado... Ainda lhe ficam centenas. Que procura fazer com isto, Wilburn Lang? Amotinar os rancheiros?
— Admitida a porca sugestão de que eu tivesse envenenado as águas, nem por isso eu perco as estribeiras, senhor advogado. Há três homens que juram, e são de honradez provada e alheia ao nosso conflito particular. O senhor põe em dúvida o juramento e testemunho de Burns, Malcolm e Jerry?
Carlos Market fez um gesto negativo com a mão esquerda, enquanto apoiava a outra na coxa da perna direita.
— Burns viu Taylor rondar e eu acredito-o Jerry apanhou o punhal de Taylor e eu creio. Malcolm encontrou as ervas, que não foram utilizadas, junto da acéquia que conduz ao bebedouro e eu também o acredito. Só o que não acredito é em tanta amabilidade de Bart Taylor, deixando ali três provas firmes e insofismáveis, Wilburn Lang.
Ogden Walker tornou a intervir:
— Menos sofismas, advogado Market.
— Estamos aqui muitos homens a cavalo, ganadeiro Walken O melhor jurado possível: vaqueiros, mineiros, traçadores, um xerife e aparências, que pasmam toda a gente, fazendo-nos compreender que é impossível que um homem como Bart Taylor se dedique a correr de um lado para outro, como um sevandija, para deitar ervas na água, destinada a animais inofensivos, com o propósito de lançar contra nós uma avalanche de vaqueiros encolerizados que, ao menor gesto de qualquer, podem converter-se num vulcão, a vomitar fogo. Devo advertir todos que Luther Dalton está em Eagle e chegará um pouco atrasado, delegando por alguns momentos a sua representação em seu irmão Tigger e em mim. O xerife é o juiz. Nós, à parte. E o inculpado cala-se porque a indignação o faz curvar-se.
— E os meus homens estão desejosos de passar a corda ao pescoço de Bart Taylor.
— Temos tempo, Lang. Hoje é dia de descanso dominical.
-- Nós não toleramos chalaças impias, advogado Market.
—Disse e mantenho que, sendo hoje domingo, nenhum trabalho reclama urgência!
— Fale, Taylor! — vociferou, colérico, Mollison.
Bart Taylor conseguira já fazer parte do círculo de cavaleiros que formava um arco, na frente do qual estavam três ganadeiros. A um lado, Tigger Dalton, um pouco mais adiantado, meia jarda ao xerife e, à sua esquerda, quase a roçar-lhe os estribos, Carlos Market.
— O que eu vou relatar — começou Taylor —é aquilo de que me recordo. Depois, tocará a quem competir esclarecer a classe de armadilha e quem a preparou. Ontem, ao entardecer, veio aqui para me falar um homem chamado Gene Larvin.
— Quem o testemunha? — perguntou Market, sorrindo.
Contendo-se, Taylor respondeu furioso:
— Percy Descamps!
O aludido acudiu logo e penetrou no círculo, para se colocar em frente do xerife. Este disse:
— Taylor afirma que ontem à tarde veio aqui Gene Larvin, para falar com ele.
— Sim, senhor xerife. Eu afastei-me sem poder ouvir a conversa, porque Larvin disse que vinha pedir trabalho na Companhia Dalton, por intermédio de Bart Taylor.
— Isso foi o que Percy Descamps ouviu. Mas a verdade é outra. Larvin, ao ficar a sós comigo, disse-me que na «Caravana Vermelha» a minha prometida estava sequestrada por um homem que lhe pagava a sua missão, para conseguir que o traçado não seguisse e que eu abandonasse Oregon.
— O homem que lhe pagava essa incumbência era eu, possivelmente? — perguntou Wilburn Lang, num tom sarcástico.
— Larvin disse-me que não era nenhum dos três ganadeiros. E que se eu soubesse quem era essa pessoa ficaria muito surpreendido. Que ele se limitava a dar-me esse recado, por que lhe pagavam para isso, e que nada adiantaríamos com pelejas. Disse-me também que o tílburi em que, pouco antes, Olímpia e seu irmão Rex tinham vindo aqui, estava com eles, na «Cabana Vermelha»; que não se tratava de matar ninguém, nem eles nem eu, salvo se eu fosse a Eagle, para falar consigo, senhor Mollison. Eu, porém, não quis que Descamps me seguisse com a intenção de me proteger, pois podia comprometer o resgate. Dando como certo que Larvin dissesse tudo isso, que ia pagar o, senhor pelo resgate, Taylor?
Taylor fitou novamente o advogado, o qual acrescentou:
— Bem. Isto é um julgamento ao ar livre, mas uma corda é uma corda, e a justiça dos ganadeiros é legitimamente clara, neste ponto. Que pagava o senhor pelo resgate?
— Larvin disse-me que eu teria de abandonar Oregon, de modo que não voltasse. Deduzi, pois, que o preço seria a vida de Olímpia, a de seu irmão, e também a minha, em troca de qualquer deslealdade que, impedindo-me de voltar, impediria igualmente que se continuasse a traçar, o «trail».
— Resposta clara do inculpado que admite que ele estava disposto, para salvar a sua prometida, a sabotar o «trail». E é este homem que iria deitando, como um bruxo, ervas na água para envenenar animais que me são simpáticos? Continue, Taylor.
— Não fui a Eagle, porque tinha pressa de verificar se Olímpia tinha sofrido algum dano. Quando já divisava a cabana, ouvi um assobio e um homem, com o rosto oculto por um lenço de seda, amarelo, apareceu por entre umas rochas. E, a seguir, senti cair sobre mim, pela retaguarda, um homem que me deu uma violenta pancada na cabeça. E esta manhã, há, talvez, meia hora, despertei, fatigado e com evidentes provas na boca e no cérebro de que, além da pancada, me narcotizaram e me abandonaram próximo do acampamento, depois de me tirarem o punhal.
— Um chorrilho de embustes imbecis de um indigno canalha, como é Taylor — gritou Wilburn Lang — À forca com ele!
O xerife Mollison levantou as mãos ao ar e elevou mais a sua voz:
— Qualquer violência, não consentida por todos contra o acusado, pode transformar o acampamento num campo de batalha, ganadeiros. Taylor já disse, o que tinha a dizer. Agora, é preciso trazer aqui Gene Larvin.
— Já deve estar muito longe de Oregon! Burns viu-o, Jerry...
— Espere, Lang! — interrompeu-o o xerife. — Agora, fala Market, para fazer uma advertência.
— A advertência é clara: nós não queremos guerra, senhores ganadeiros. Luther Dalton está demorado, porque tiveram de distribuir armas a todos os mineiros, que hão de vir com ele. Mas, um momento, senhores ganadeiros... Isto não é nenhuma ameaça, visto que Luther Dalton virá aqui, sozinho. As suas centenas de mineiros ficarão longe. Só acudirão no caso de que os senhores se conduzam mal e caia alguma saraivada de balas em cima de nós. Aqui trata-se apenas de «pendurar» Taylor, não é assim? Pois bem. Acredita na inocência de Taylor, ganadeiro Walker?
— Não!
— E o senhor acredita, Percy Descamps?
— Sim!
— E o senhor, ganadeiro Muldorf?
— Sim.
— O júri está dividido.
— Eu trouxe as provas e acuso! Forca para o canalha!
— A sua voz não tem valimento, Lang. O senhor é o prejudicado, a parte demandante. Abreviemos isto, senhores. Onde está Gene Larvin? Onde está o homem do lenço amarelo, que assobiou? Advirto os ouvintes de que o homem que trazia ao pescoço o lenço amarelo e pretendia matar Taylor é Gene Larvin. Eu pude reconhecê-lo.
— Mas Tígger Dalton também usa lenço amarelo! — observou o xerife.
— Por isso mesmo, Larvin o adotou, a conselho do seu patrão circunstancial. E... já ganhámos o tempo suficiente para que Luther Dalton acabe de concretizar o caso.
Ouvia-se já perto o galopar de um cavalo. O cavaleiro que se aproximava era Luther Dalton.

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