terça-feira, 3 de dezembro de 2019

I. Seattle, cidade de perigos e excitações onde a bela Olimpia recusa o advogado

Os habitantes de Seattle não mentiam, quando afirmavam, com certo orgulho, que não havia no Mundo inteiro um espetáculo mais pitoresco do que o oferecido pelo buliçoso porto dos barcos que faziam o tráfego entre o Oriente e a costa do Pacífico.
Também era verdade que a profunda baía, formada pelas águas do Pacífico, criava, em redor das colinas, onde se escalonavam os edifícios de todas as classes, uma série de rios, lagos e tanques que davam a Seattle um aspeto original.
Onde os nativos exageravam um pouco era em vangloriarem-se de que a noturna Seattle superava São Francisco em perigos, excitações, escândalos e na grande quantidade de vítimas, enterradas ao amanhecer.
Turbulenta como cidade aumentada vertiginosamente, a partir da corrida rápida e impetuosa ao ouro de 'Yukon em 1897, Seattle contava em 1905 um bom número de habitantes já proprietários, ex-aventureiros ou pesquisadores, convertidos momentaneamente em potentados, que haviam trocado os incómodos e contrariedades da busca de fortuna por sumptuosas mansões no esplêndido bairro de Punget Sound.

Se, em alguns deles, a recordação das calamidades passadas os fez sensatamente empregar as suas riquezas em proveitosos investimentos comerciais no próprio Seattle, havia outros que continuavam satisfazendo, sob um falso brilho, o instinto cobiçoso, sem o freio dos escrúpulos. E eram estes que davam motivo a que existisse em Seattle um numeroso grupo de tratantes, descarados e inteligentes, ao serviço de ambições que podiam realizar-se, possuindo o fator primordial: dinheiro.
Dinheiro abundava nos cofres-fortes dos ex-mineiros do Yukon e, no entender dos seus autores, as ideias geniais também germinavam com frequência entre a turba heterogénea, desde o astuto advogado, sem escrúpulos, ao capataz sem vergonha nem decência, passando por toda a espécie de ofícios mais ou menos catalogados.
Essa casta de assessores, bastante necessária para certos negócios e para muitas atividades do próprio porto, tinha o apodo de «rascai», com que fora batizada pelos habitantes honestos. Na sua literal significação, o adjetivo «rascai» qualificava o que vivia de expedientes, prático e hábil em navegar em águas turvas, procurando não se afogar nos redemoinhos.
 A moral era bastante elástica, a partir do anoitecer, quando o labirinto de ruelas, pontes e estabelecimentos de bebidas começava a ser o atraente engodo.
O presidente do Município de Seattle, cargo que era renovado de seis em seis meses, salvo falecimento do titular, que era substituído, rapidamente, em eleição secreta, nunca alterava uma disposição antiga, que aparecia impressa e fixada nos hotéis, estações e estabelecimentos.
O espírito dessa ordem-lei traduzia-se por: «Quem deseje ver amanhecer, permaneça em sua casa, fechando as portas e janelas a partir do toque do recolher». Esse toque era dado pelos sinos da torre marítima do porto, quando anunciava a hora em que, segundo as estações, se dava a transição entre o entardecer e a noite.
A justiça rudimentar, que tinha a seu cargo a vigilância da via pública, inculpava as vítimas, se lhes ficava vida suficiente para denunciar que haviam sido objeto de roubo e agressão. Na noturna algaravia que era o bairro Oriental, centro urbano primitivo dos primeiros edifícios, quando Seattle era ainda um simples porto para os barcos do Oriente, os habituais conhecedores dos riscos, nos quais podiam ver-se misturados, sabiam como livrar-se deles.
* * *
O advogado californiano Carlos Market era um dos que sabiam viver com todos e, sem jactância, podia afirmar que conservava tanto aprumo na receção de uma embaixada europeia, como numa pendência entre ladrões e malfeitores. O que nunca ninguém disse, nem sabia, era a razão por que ele abandonara a Califórnia; mas o seu diploma, passado pela Universidade de S. Diogo, era legítimo.
Ele havia chegado a Seattle nos princípios de 1903 e em breve foi «alguém», conhecido como implacável jurista ao serviço da Companhia mineira «Dalton & Dalton».
O advogado Market era também conhecido nos lugares de diversão, onde, além de formosas mulheres, poderiam apresentar-se favoráveis oportunidades para a engrenagem de muitas rodas que moviam a acumulação de negócios encobertos sob a firma comercial de «Minas Dalton & Dalton».
Todas as noites, pelas onze horas, e isso já durava havia oito noites seguidas, Carlos Market acudia ao «Cristal Palace», um dos lugares seletos onde podia cear-se com sibaritismo e ter uma agradável sobremesa com amigos, contem-plando um espetáculo alegre e divertido; ou ia a salões, onde se jogava sem proibição ou a outros mais herméticos, onde se podia adquirir ou consumir certo produto azulado, espesso, propício a sonhos bem singulares.
A reserva de mesa e de frisa era mantida até à meia noite para Carlos Market e se este acudia pontualmente é porque oito noites antes ele tinha visto Olímpia.
Essa mulher não era nenhuma loira frágil, uma morena apaixonada ou uma dessas ruivas irlandesas que abundavam por ali. Quando tentava definir Olímpia, Carlos Market descrevia-a assim: «Um prodígio de mulher, porque me fez crer que sonhava, vendo uma estátua grega, animada em poema de carne rosada. Seguramente, para compreender a infinita sedução de Helena de Troia, bastará olhar Olímpia».
No palco do «Cristal Palace», Olímpia atuava durante uma hora, numa sucessão de três quadros. No primeiro, era uma vendedeira de laranjas, vestida com graciosos andrajos multicores, que repelia as propostas pouco corretas de um inflamado cavalheiro francês.
No segundo, era uma arrogante marquesa, já casada com o inflamado francês, a quem tornava ridículo no meio das evoluções de um trio de bailarinas mouriscas.
No terceiro, finalmente, as bailarinas transformavam-se em frívolas marquesitas que, aos suavíssimos compassos de um minuete, decoravam a cena, na qual Olímpia, viúva, enlutada caprichosamente, fazia enlouquecer de amor um sultão.
O ator que partilhava com Olímpia dos aplausos era também autor do divertido diálogo e do cenário.
No cartaz figurava como Rex Prince e as suas três caracterizações eram acertadas. À oitava noite, Carlos Market tinha já dados completos sobre a carreira artística do quinteto desde a sua estreia em Oklahoma.
Rex Prince era casado com uma das três bailarinas. Era irmão de Olímpia, que ainda continua solteira, quem sabe se esperando o seu príncipe azul.
O terceiro bilhete que Carlos Market lhe mandou, acompanhado de uma orquídea azul, sobre folha de ouro, obteve a sua recompensa. Terminada a atuação do quinteto, Olímpia entrou na frisa ocupada pelo advogado, onde este esperava o resultado do seu assédio. De loira arrogância, tez de nácar, olhos de um cinzento azulado, não havia nela falta de sentido artístico, nem de delicadeza, nem era insolente. Talvez nisso residisse o seu grande êxito.
De pé, Carlos Market inclinou respeitosamente o busto e ela, sorrindo friamente, aceitou o convite para se sentar.
— Permita-me que me apresente, Olímpia. Sou advogado e chamo-me Carlos Market e sou seu admirador.
— Muito prazer em conhecê-lo. Os três bilhetes que teve a gentileza de me enviar são habilmente corteses. E, para evitar-lhe um novo incómodo, acedo ao seu pedido de conhecermo-nos e devolvo-lhe esta lembrança que não mereço nem penso em vir a merecer. De todos os modos, tendo a agradecer-lhe, senhor Market.
O californiano olhou a joia que ela acabava de colocar sobre a mesita. Depois, observou:
— Os franceses dizem que os pequenos presentes conservam amizade, Olímpia.
— Nasci na Luisiana, de família francesa, mas considero que é impossível uma amizade entre nós. O senhor não procura a minha amizade e eu não concedo da minha pessoa mais do que uma carícia: a da minha mão, quando colocarem neste dedo uma aliança de casamento. E, francamente, o senhor, embora elegante e bem parecido, não é o esposo que possa convir a uma mulher razoável. E eu sou-o, embora seja uma atriz.
— Devo dizer-lhe que me tenho enamorado algumas vezes, mas momentaneamente. Agora o caso é diferente. Nunca uma mulher me fez acudir pontualmente a um mesmo local durante uma semana inteira, para admirá-la de longe, quase com devoção. Aceita champanhe?
— Só o bebo à ceia... e eu já ceei. Em todo o caso, obrigada.
— A senhora zomba com finura de um pobre homem.
— O senhor será tudo menos um pobre homem, Market. E, agora, se não deseja dizer-me nada interessante, folgo muito em tê-lo conhecido e...
— Um instante, Olímpia. A senhora falou há pouco de uma aliança. Que qualidades tem de possuir esse feliz mortal? Se lhe faço esta pergunta é apenas a título de curiosidade.
Ela riu cordialmente.
— Tenho conhecido bastantes homens como o senhor. Amáveis, meigos... mas a sua luva de veludo oculta uma mão de ferro. São capazes de jogar uma fortuna, ganha com perigo, numa só cartada. Também, num caso de capricho, mal-acostumados a serem bem vistos pelas mulheres, podem resignar-se ao casamento. Mas o senhor carece da qualidade principal, Market. Se julga que faço alusão à sua riqueza, engana-se. Quero simplesmente que o homem de quem me enamorar corresponda aquilo que o senhor não é.
— Loiro? — perguntou o advogado, com um sorriso.
— Honrado — respondeu ela, sorrindo com não menos ironia.
Sem se perturbar, o advogado assentiu:
— Entendo. A senhora ouviu comentários a meu respeito. Advirto-a de que se esta minha febre de paixão, que sinto todas as noites ao vê-la, não baixar, não me importo de estudar a possibilidade de aceitar a classe de honradez que a senhora impuser como condição prévia para ser seu marido.
— Há coisas impossíveis, Market. E já que nos conhecemos, vou aconselhá-lo a que desista, porque ainda que o senhor seja um aventureiro, não me é antipático. Desista, porque, além de perder o tempo, eu não desejaria que Bart Taylor se
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perturbasse e perdesse a cabeça se o tomasse por um conquistador impertinente.
— Mas nunca ouvi falar de Bart Taylor, até agora.
— A última vez que vi Bart, estava ele entre grades na prisão de Albany. Disseram-me que o júri o condenou apenas a dois meses por homicídio.
— Que classe de energúmeno é então esse Bart Taylor?
— Tem mau carácter, mas é o único homem por quem me interesso. Tive, porém, de negar-me a ser sua esposa. Mas eu explico-lhe tudo isto, Market, porque é possível que Bart Taylor apareça por aí e como continua a julgar-se com direitos sobre mim, não desejo que provoque outra briga, porque o senhor é do género perigoso que pode suscitar, sem razão, uma explosão do mau génio de Bart Taylor.
— Um momento mais, Olímpia. Eu tenho alguma influência em Seattle. Autoriza-me a impedir legalmente a estadia de Taylor na cidade?
— Não há lei que impeça um homem de afundar-se e este é o caso de Bart Taylor. Eu amei-o, enquanto ele foi um homem sensato, mas ele também se equivocou, como o senhor, embora de outra maneira. Pensou que tinha de dar-me um palácio por lar. Não me acredita?
— Permito-me duvidar sempre, antes de ouvir repicar dois sinos que assinalem uma e a mesma hora. Talvez porque se seja um cínico cauteloso. Posso acompanhá-la ao seu hotel?
— Já tenho companhia, obrigada. É a família do... palco. Boas noites, Carlos Market. A sua orquídea pode servir-lhe para outra atriz menos exigente.
— De acordo e obrigado pela sua generosidade.
Quando se viu só na frisa, Carlos Market refletiu que Olímpia era demasiado inteligente para que ele pretendesse incluí-la na sua lista de diversões. Encolhendo os ombros, disse consigo que, com vontade, um homem de têmpera, por mais sedutora que fosse urna mulher, «não se afundava».
Mas, na noite seguinte, sem enviar qualquer bilhete a Olímpia, presenciou novamente a pantomima, que servia para que a arrogante e loira beleza exibisse três enfeites bastante diferentes, mas obedecendo a um propósito: valorizar os seus muitos encantos.
E o observador «rascal», que era o advogado Market, começou a interessar-se pelo estudo de um personagem que até então não tinha visto em Seattle. Esse homem tanto podia ser lenhador como marinheiro ou vaqueiro porque o seu vestuário compunha-se de peças de cada um daqueles ofícios. Eram de marinheiro a larga jaqueta azul e o «jerser» da mesma cor às riscas; de lenhador, a curta faca, pendurada à cintura, numa bainha de camurça; e de vaqueiro, o chapéu cinzento de aba larga, o calção com a marca desbotada das correias dos safões, e as botas curtas, sem esporas. Fisicamente era um atleta, de rosto bronzeado, cabelo negro e encrespado e traços de enérgica decisão.
Bart Taylor era um exemplar de rudeza varonil, pensou o advogado, que identificara o estranho ex-noivo de Olímpia, pelos olhares que esta lhe dirigia de vez em quando, no meio de uma frase do diálogo, que dedicava com apreensão ao solitário bebedor de rosto bronzeado e expressão carregada.

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