segunda-feira, 27 de maio de 2019

BUF011.11 Bailado da jovem índia apaixonada / um traidor na tribo

Capítulo XI
«Grande Águia» era um indivíduo corpulento e de idade indefinida, embora parecesse novo. Em contraste com a mísera condição dos infelizes que beneficiavam das suas mágicas qualidades, o seu corpo estava bem alimentado. Usava um toucado de penas, adornado com chifres de vaca. Nu da cintura para cima, o seu torso, gravado com primitivas tatuagens, denotava o lugar que ocupava na tribo, situando-se num plano diferente ao dos restantes indígenas. Para a elementar inteligência dos apaches, o seu feiticeiro era algo tão digno de respeito como o próprio deus do Sol ou da Chuva.
Naquela tarde, depois de tomar a sua refeição, «Corvo Louco» visitou-o novamente, no seu tipi, encontrando lá «Nuvem Negra» e Joe Spain, sentados à porta sobre uma pele de búfalo. A reunião ia dar lugar a um pow-wow particular que serviria de preâmbulo para as cerimónias da noite.
— Está decidido — disse o cacique, depois de acender o calumet — que tu, «Corvo Louco», sejas para nós mais do que um aliado na luta da justiça. O homem que tão generosamente nos oferece a sua ajuda, merece ser um dos nossos e como tal «Grande Águia» fará de ti um membro honorário da tribo apache. O teu nome é glorioso e o nosso sangue se misturará. E se um dia conseguires romper as cadeias que nos unem ao diabo branco que tanto sacrifica o meu povo, os nossos deuses te abençoarão,
O mestiço respondeu com um discurso, como mandavam os usos. Depois o cachimbo percorreu de mão em mão.


«Nuvem Negra» era um nobre exemplar humano, um legítimo chefe que sabia envergar as suas vestes que lhe outorgavam o direito de dispor dos seus homens. O seu tomahawk, ornado com as cabeleiras arrancadas aos seus inimigos, antes da tribo ser submetida aos rigores das ordens de Bosco Bates, equivalia a um ceptro. Já velho, o cacique era um homem de conceituado critério, um sábio e um profeta. Mas ao mesmo tempo um chefe privado do seu poder e de conduzir os seus irmãos de raça ao caminho da liberdade.
Antes que as deliberações terminassem, «Corvo Louco» teve oportunidade de se certificar que o jovem agente auxiliar, como ele próprio disse, gozava de total respeito e amizade dos indígenas. E pensou que Joe Spain era um dos poucos homens brancos que amavam sinceramente os seus irmãos peles-vermelhas.
Mais tarde, ao cair da noite, quando no céu já não apareciam as nuvens tingidas de vermelho pelo Sol poente, a tribo inteira concentrou-se num espaço livre, circundado de álamos, que, se abria em frente do rio Recto, para assistir à ancestral cerimónia que iria fazer da pessoa de «Corvo Louco»» mais um filho da tribo daqueles apaches. A preparação do pow-wow tinha causado ao mestiço certa inquietação, ante a possibilidade de que tal movimento na aldeia fosse notado como extraordinário nos terrenos pertencentes à «Agência». Mas «Nuvem Negra» acalmou os seus receios.
— Bates nunca assistiu às nossas cerimónias — declarou —. Não lhes importam os nossos rituais acontecimentos, desde que não seja para desenterrarem os nossos tomahawks e lançarmo-nos no caminho da guerra e isso não podemos fazer, para não acelerarmos a nossa ruína. Não quero que a vingança dos homens brancos deixe viúvas as minhas squaws e órfãos os meus papoos. O caminho a seguir há-de ser, e tu sabes muito bem, diferente de qualquer rebelião.
Os acontecimentos daquela noite impressionaram profundamente o mestiço. Os fogos sagrados do acampamento subiam na escuridão da noite. Os tambores repercutiam o seu misterioso tan-tan. Os alaridos sucediam-se um após outro. Saltou um bailarino. Outros dois seguiram-no. Rapidamente o número elevava-se a doze, depois vinte. Como fantasmas de cor-de-cobre, contorcionavam os corpos num desvairado ritmo. A estranha dança prolongou-se por tempo indefinido. «Corvo Louco», sentado junto do cacique, ambos imóveis como se estivessem talhados em pedra, era o motivo daquela cerimónia. Na frente dos bailarinos, «Grande Águia» assemelhava-se a um espírito infernal. Saltava dum lado para o outro. As suas pernas moviam-se numa agilidade felina. As suas contorções eram grotescas. Caía ao solo e rebolava-se no pó, para depois se levantar de novo e continuar com as cabriolas.
Subitamente a música dos tambores deixou de se ouvir. O feiticeiro deixou de se contorcionar e, pausadamente, aproximou-se da tribuna de honra onde estavam sentados «Nuvem Negra» e «Corvo Louco». Desembainhou o punhal afiado, que reluziu à luz das fogueiras. Os dois homens estenderam os braços nus. A lâmina faiscante riscou duas vezes, uma em cada braço. E então, aqueles dois braços uniram-se pelas feridas e o sangue misturou-se.
Recomeçaram os alaridos e o bater frenético dos tambores. Os bailarinos dançavam em redor do fogo.
Dum recanto, saltou uma rapariga, qual gazela nos seus movimentos ágeis e cheios de graça. Era Nutria. As suas pernas bem torneadas brilhavam ao reflexo das chamas. Os seios, duros e pequenos, quase não bamboleavam. Os seus braços exprimiam-se numa linguagem de gestos, eloquente para quem soubesse compreender. E os seus olhos de azeviche reviravam-se nas órbitas brancas de neve. Eles fitavam, duma maneira quase atrevida, o rapaz para quem a cerimónia havia sido empreendida. Os seus lábios, frementes e húmidos de desejos, pareciam deixar escapar promessas de amor. O seu corpo torcia--se em meneios graciosos e pujantes de vida, em contorções provocadoras. Aquela rapariga dizia por intermédios dos seus gestos que o homem que ela desejava para esposo era aquele para quem bailava e que se sentava ao lado do seu velho pai.
Tal era a força daquela declaração, que «Corvo Louco» fechou os olhos. Depois, a música dos tambores parou.
O velho chefe levantou-se na sua majestosa figura, e a bailarina abandonou o recinto. O velho fez um gesto, e, silenciosamente, todos os peles-vermelhas se retiraram em ordem e sem pronunciarem uma só palavra. Estava terminada a cerimónia. «Corvo Louco», a partir de então, pertencia àquela tribo de apaches.
O mestiço sentia dentro de si um sentimento novo, quase doloroso, efeitos de muitas emoções sofridas. Ele também se retirou silenciosamente, dirigindo-se para o seu tipi. Sentia-se cansado. Queria repousar o corpo e o espírito.
Quando se aproximou da porta da sua choça, levantou a cabeça e viu Spain.
— Pronto... — exclamou o rapaz —. Você já pertence aos meus amigos índios. Que tal lhe pareceu o pow-wow?
— Impressionante — articulou vagarosamente o mestiço.
Spain olhou-o com surpresa.
— Tem alguma coisa? Não se sente bem?
— Não — a voz do «Corvo Louco» saiu a custo —. Compreenda. Foi uma experiência inédita para mim. É como... como que tivesse descoberto que tudo isto é meu e que eu pertenço a esta raça. Você sabe que minha mãe foi uma índia apache...
— Sim, sei.
— Mas eu nunca vivi com os índios, nem mesmo pensei que algum dia teria de lhes pertencer. Estou pensando...
O mestiço interrompeu-se.
— No seu camarada? — perguntou Spain.
Com o rosto ensombrado, «Corvo Louco» concordou:
— Eu não devia ter vindo. Pense o que quiser. E, no entanto... não me arrependo —. levantou os ombros e deu outra expressão ao rosto —. Enfim, tratarei de cumprir a minha missão o melhor que puder e souber. Quem sabe se isto que sinto é influenciado pela música dos tambores e pelas danças que me transportaram para um passado de lenda? Hoje, tenho a impressão de que todo o Oeste continua a ser o grande país dos rostos vermelhos... Por favor, Spain...
— Diga!
— Queria descansar, estar isolado e pensar um pouco.
O jovem agente sorriu e apertou-lhe levemente o braço. «Corvo Louco» sentou-se à porta do tipi recostado à frágil parede de barro e acendeu um cigarro. A aldeia estava em calma. No céu, pestanejavam as estrelas de Outono. O mestiço pensou que havia revelado grande parte do que sentia. Mas entre tudo, existia alguma coisa que ele soube esconder...
A certa distância dali, na choça onde estava instalado o seu santuário, «Grande Águia» acabava de envolver o tronco nu numa velha manta militar. Quando abandonou o tipi, principiou a andar, naturalmente, com as penas do toucado à agitarem-se dum lado para o outro. Sabia bem que, mesmo que alguém da tribo o visse, não faria objeções, pois a sua condição de feiticeiro dava-lhe o direito de andar por toda a parte. Só principiou a imprimir alguma precaução, quando se aproximou do edifício geral da «Agência». Iludiu os homens que estavam de guarda e entrou numa porta que estava encostada.
Bosco Bates parecia esperá-lo no seu escritório. Torceu a boca num esgar que nada tinha de sorriso e exclamou:
— Bebe um trago de água de fogo, irmão — e estendeu a garrafa da aguardente para o indígena que lhe pegou com mãos trementes de cobiça —. Que foi todo esse barulho? Acaso se dispunham os bravos súbditos de «Nuvem Negra» a desenterrarem os seus tomahawks?
«Grande Águia» passou o dorso da mão pelos lábios e poisou a garrafa sobre a secretária.
— Não. Esta noite recebemos um porco mestiço chamado «Corvo Louco», como membro da tribo. amigo do homem a quem tu acusas de ser «Máscara Vermelha». Viverá entre nós para te espiar.
A notícia parecia não ter impressionado o bandido.
— Naturalmente de acordo com Spain.
— Sim. Suspeitam que pretendes atacar Ted Collins quando ele vier para cá com o carregamento de mantas. Mas não te preocupes. Eu cuidarei desse mestiço. Não viverá muito tempo.
O indian-agent observava o feiticeiro com malícia.
— Pois então boa sorte. Tudo isso significa que o condenado, John Smith, em lugar de procurar climas menos perigosos para a saúde, ficou pelos arredores e declarou-me guerra. Pois bem. Se ele quer guerra, terá guerra. Se ele introduziu um espia no meu campo, também eu te tenho para me contares o que se passar no campo deles. Depois veremos quem é o mais forte.
— Tu és o mais forte — exclamou o feiticeiro, levando uma vez mais a garrafa à boca.
— Tens a certeza de que «Nuvem Negra» não desconfia que trabalhas para mim?
— Esse velho idiota? Não. «Nuvem Negra» confia em mim e «Corvo Louco» também. Não deves andar preocupado.
Quando o feiticeiro abandonou o edifício da «Agência», «Corvo Louco» ainda estava sentado à porta do seu tipi gozando a frescura da noite. Mas, agora, uma sombra esbelta perfilava-se a seu lado.
— Eu dancei para ti — sussurrou a voz melodiosa de Nutria.
Aquelas palavras pareceram ao mestiço ter sido pronunciadas muito longe, através de toda a sua vida, do vasto mundo que percorreu sobre a cela do seu cavalo. O seu peito sentiu-se opresso por uma profunda amargura. Os grandes olhos da rapariga brilhavam na escuridão.
— E porquê para mim, Nutria? — perguntou com a voz afogada pela emoção —. Por que dizes isso?
A jovem demorou algum tempo em responder. Depois murmurou:
—És tão formoso... e eu gosto de ti... do teu rosto e da tua carne...

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