sábado, 25 de maio de 2019

BUF011.09 Uma vida para defender os mais fracos

Capítulo IX
«Corvo Louco» apeou-se do cavalo junto de um álamo, livrou a animal do peso da sela e prendeu-o a uns arbustos, perto do alazão de Smith.
O amigo encontrava-se a poucos metros, refugiado na cavidade duma rocha do Hat Peack, fumando pachorrentamente um cigarro.
Anoitecia. Espessas sombras principiavam a estender-se pelo vale. As nuvens tinham-se tingido de verem-lho vivo que contrastava com o azul profundo, insondável, do céu.
— Acabam de passar pelo caminho — anunciou o mestiço, sentando-se junto do companheiro. —Voltam para a «Agência». Tive-os quase ao alcance da mão. Não me pareceram muito satisfeitos.
Smith riu em surdina. — Se seguiram com cuidado as pistas que tracei, ficaram doidos. Foi divertido. Bates agora deve estar a perguntar se o rasto era dum só homem ou de dez.
— Isso pô-lo-á momentaneamente fora de combate.
O texano sacudiu a cinza do seu cigarro.
— Não. Não creio que se retire tão depressa. A dança durará. Nós é que a devemos terminar.
— Sim... nós.
— Nós e Spain — continuou Smith. — Lembra-te do que o rapaz te disse ontem à noite. As coisas não podem continuar assim. Ë forçoso procurar-se uma solução. E ela não pode ser outra que não seja dar uma boa lição a Bosco Bates.


O mestiço mostrava os dentes num sorriso franco.
— Ontem tivemos oportunidade para tal. A sua morte teria sido um bom final para tudo o que se passou.
— Toma nota que eu não falei na morte — respondeu o texano.
Escurecia quando «Corvo Louco» abandonou o refúgio, levando os cavalos a beber num riacho que saltava entre as rochas.
Enquanto os animais se dessedentavam, o mestiço vigiava os arredores. A noite descia sobre a paisagem com uma paz e uma transparência maravilhosas.
Mas os seus olhos de lince viram nesse momento sair do bosque um cavaleiro solitário, dirigindo olhares cautelosos para todos os lados.
Rapidamente, «Corvo Louco» abandonou o refúgio, retirou os cavalos e aperrou a Winchester que levava a tiracolo. Não tardou, porém, a abandonar as precauções. O cavaleiro era Joe Spain.
O agente auxiliar, apesar de trazer a cabeça toda ligada, parecia de bom humor. Enquanto caminhavam os dois para o refúgio na rocha, Spain foi explicando:
— Bates tem passado bons trabalhos. Antecipou-se em comunicar que havia deitado mão a «Máscara Vermelha» e nada menos que os xerifes de três povoações subiram à «Agência» para o verem com os próprios olhos. Você deveria ter gostado de ver com que cara Bates os recebeu...
Smith, que havia acendido uma fogueira sem fumo, uma das particularidades dos índios, esperava-os. Quando Spain apareceu, o texano apertou-lhe cordialmente a mão.
— Seja bem-vindo, Spain.
O agente auxiliar fitava o texano com atenção.
— Folgo em encontrá-lo em boas condições, amigo — respondeu. Depois estendendo um embrulho que trazia sob o braço, disse: — Eis aqui a minha contribuição para o vosso acampamento: tabaco.
— Foi ideia do «Corvo Louco»?
— Foi.
O mestiço pegou no embrulho.
— Se as palavras não fossem o convencional, —disse Smith — não saberia como agradecer-lhe o seu gesto de ontem. Pensei que estivesse morto, Spain, mas também não estava de muito boa saúde. Nunca o esquecerei, acredite. Conte comigo para tudo o que precisar.
— Contarei, — respondeu o jovem, tranquilamente. — Não foi somente para lhes trazer o tabaco que vim cá.
Os três homens sentaram-se em frente do fogo.
— «Corvo Louco» disse-me que você precisa da nossa ajuda para resolver o difícil problema do acampamento.
— Efetivamente — respondeu Spain.
Smith aspirou o fumo do cigarro, deleitado.
-- Constitui surpresa para você que Bosto Bates atacasse Collins e a sua noiva no caminho de regresso a Culebra City e lhes roubasse os mil dólares que acabavam de receber por um fornecimento ao acampamento?
— Surpresa? — Spain fez um esgar de desdém. — Sei de sobra que Bates é um canalha, um ladrão e um assassino. Noventa por cento dos artigos que o Governo autoriza a entrar no acampamento, para suprirem as necessidades da vida dos índios, esse patife passa-os para a fronteira mexicana. Não, Smith, não me surpreende. Bates odeia e deseja a morte de Collins. Não aceita que Tana Nelson seja noiva do rapaz.
— Mas se você tem provas de tudo isso, por que não faz uma exposição a Washington?
Spain encolheu os ombros.
— Isso não é assim tão fácil, amigo. Em primeiro lugar, eu sou novo na «Agência» e, portanto, a minha autoridade é secundária. Não tenho acesso aos registos, aos arquivos e aos informes oficiais que Bates recebe regularmente. Ele pode sem a menor dificuldade escamotear os pedidos, falsificar as faturas e obter recibos dos índios. para, no caso de um inspetor aparecer, ter uma prova em como entregou a mercadoria, o que na verdade não acontece. No caso de uma investigação federal, tenha a certeza, Bates descobrirá a maneira de patentear a sua inocência, culpando a incivilização dos peles-vermelhas. Desgraçadamente, no nosso país há muita gente que ainda acredita na incivilização dos índios.
Durante alguns momentos pairou no esconderijo um silêncio pesado.
— E como encaixa, Collins tudo isso? — perguntou de súbito Smith: — Dá-me a impressão de que Bates se propõe 'arruiná-lo para se apropriar do seu negócio.
Spain concordou.
— Isso é verdade. Todo o fornecimento que o Governo nos faz, é por intermédio dum ou outro armazém que estabelece o preço mais baixo, ou é-nos enviado diretamente pelo próprio Governo, através duma empresa de transportes. Ora Collins reúne nas suas mãos as duas coisas. Como Culebra City é o povoado mais próximo do acampamento-reserva, os seus preços, que dependem do custo dos transportes, são os mais baixos e por tal razão ele tem toda a preferência. Se Bates consegue o seu propósito, poderá dar largas depois aos seus instintos de contrabandista.
Smith via agora tudo perfeitamente claro. Ted Collins representava um sério obstáculo às criminosas intenções do bandido. O caso de ele desejar requestar Tana Nelson era um caso independente, mas que, no fim de contas, serviria também os seus propósitos.
— Hoje mesmo — continuou Spain — recebemos um crédito do Governo para adquirir um importante número de mantas para os índios. O inverno aproxima-se e os peles-vermelhas estão sem agasalhos. Como sempre, a oferta de Collins foi a mais baixa e portante é ele quem as há-de fornecer. E esse artigo é muito procurado no outro lado da fronteira.
O texano estava pensativo.
— Compreendo o que quer dizer. Bates encontraria um bom negócio se pudesse ficar de posse das mantas, no caso de Collins sofrer um percalço enquanto as transportasse.
— Exato. E é precisamente isso que receio. Esteja certo, Smith, de que os carros de Collins nunca chegarão a alcançar o acampamento. Em qualquer lugar, serão assaltados e por ali ficarão pasto das chamas ou todos calcinados. No entanto, as mantas passarão para o outro lado. Eu não sei ainda o que hei-de fazer, mas parece--me que o melhor que poderei fazer é enviar um aviso a Collins, instando para que procure uma escolta de cavalaria, para quando os seus carros se internarem nos Montes Culebra.
Smith, com o olhar fito no fogo, não parecia muito convencido.
— Você disse-me que os índios estão pelo seu lado?
—O chefe «Nuvem Negra» e os seus bravos confiam em mim — respondeu o jovem com orgulho. — Eles gostariam que o Grande Pai Branco me designasse para orientar o acampamento. Mas o senhor sabe como o Governo trabalha. Bates está muito bem relacionado e eu não posso lutar contra ele, quer os índios morram de fome ou não. Se eu não conseguir eliminar esta praga, tenho a impressão de que voltará a ser instituído o ódio de raças.
Os olhos do texano brilhavam.
—O seu projeto é insuficiente, Spain. Uma escolta de cavalaria impediria o roubo, isso é uma verdade, mas não castigaria Bates, que é o que se precisa. Tenho uma ideia melhor. Para isso é necessário que o meu camarada «Corvo Louco» o acompanhe esta noite de regresso à «Agência». Quero que ele viva entre os índios de maneira que possa espiar de perto as intenções de Bates. Será possível isso?
Spain não respondeu, mas a sua cabeça moveu--se num gesto de assentimento e compreensão. Depois perguntou:
— E que mais?
— Pela minha parte, descerei a Culebra City e procurarei trabalho junto de Collins. Quando este organizar o transporte das mantas, eu conduzirei um dos carros. Se o conflito surgir, terei assim meios de defender Collins. Compreende-me?
— Parece-me bom o plano, salvo no que se refere à moral do assunto. É meu dever contribuir para que a ilegalidade de Bates surja a lume. O meu dever e não o vosso. Por que hão-de os senhores correr tão grandes riscos? No final de contas, o destino dum punhado de peles-vermelhas não significa nada para um homem que vive desligado da sociedade e que bastante tem de cuidar de si mesmo quando...
As chamas iluminaram o rosto enérgico de Smith.
— Não — articulou o texano —. Não se engane. Os índios são criaturas humanas. A minha vida, senhor Spain, não tem outro motivo que não seja defender os mais fracos. Pouco importa que eles tenham a pele vermelha, branca ou amarela. Eu estou sempre ao lado dos necessitados. Por agora, não penso em abandonar o território do Arizona enquanto os índios estejam sendo humilhados e roubados por um patife como o é Bates.
De novo o silêncio caiu pesado sobre as três cabeças. Depois Spain interrompeu-o, com um fulgor estranho nos olhos.
— Jamais vi alguém como o senhor. Dum lado, a sua generosidade. Pelo outro, a sua maneira de traçar planos, distribuindo forças onde elas na realidade são necessárias, como se na verdade distribuísse as tropas para uma batalha decisiva. Escutando-o, cheguei a pensar que o senhor se parecia com o meu capitão, quando eu estive no exército. Era como...
— Cale-se! A voz de Smith tinha soado com uma entoação invulgar.
Spain levantou rapidamente a cabeça e olhou-o de frente. O seu rosto não espelhava qualquer género de emoção.
— Perdoe-me se fui inconveniente.
Smith passou a mão pela testa e esfregou os olhos.
— O senhor é quem deve perdoar-me. «Corvo Louco» levantou-se e dirigiu-se para o seu cavalo.
Smith consultou o relógio. Spain titubeou:
— Bem devo ir-me embora... Não quero que notem a falta da minha presença no acampamento. Obrigado, Smith.
Os dois homens, altos e atléticos, levantaram-se,
— Não me agradeça. Tanto você como eu, temos de corrigir o que se está fazendo mal —. Depois, voltando-se para o companheiro mestiço, prosseguiu: — Acompanhas Spain, ou não? Estás pronto?
— Sim, estou pronto — respondeu-lhe «Corvo Louco».
Joe Spain dirigiu-se para o seu cavalo, sem poder compreender a alma daqueles dois homens.

Sem comentários:

Enviar um comentário