domingo, 26 de maio de 2019

BUF011.10 Aparição

Capítulo X
O grosso da tribo apache vivia num aglomerado de choças de barro, próximo dos edifícios da «Agência» e ao longo do rio Recto. Mas naquela altura do ano, o imponente rio, que não era mais do que uma queda de água, mostrava o seu leito quase seco, rodeado de altas montanhas.
Junto da ribeira setentrional estava o núcleo mais importante da suja aldeia, perfeitamente de acordo com o carácter nu e estéril que a torrente emprestava à paisagem.
Spain tinha introduzido «Corvo Louco» no tipi de «Nuvem Negra» antes do amanhecer. A apresentação, acompanhada das explicações necessárias que o caso requeria, foi simples. O mestiço deixou uma favorável impressão ao velho guerreiro, pobre, mas digno e altivo, que o escutava, sentado na sua manta, com os olhos fitos no jovem como se desejassem penetrar na sua alma.
— Houve no nosso povo um grande chefe — disse «Nuvem Negra» —. Como tu, também se chamava «Corvo Louco». O seu nome deu dias de glória à nação apache.
— «Corvo Louco» foi o pai de minha mãe.


No interior do tipi fez-se silêncio.
— Que a memória de «Corvo Louco» te guie, pois, nos teus empreendimentos — sentenciou o chefe vermelho, fazendo um gesto solene —. Se precisares de alguma coisa é só pedires. Os meus filhos te atenderão.
Spain apertou o braço do mestiço como se desejasse por esse gesto patentear o seu agradecimento.
— Quero voltar para a «Agência», antes que seja tarde, «Nuvem Negra» — disse —. Obrigado. «Vento» ocupar-se-á do que for necessário.
«Nuvem Negra» saudou solenemente e os dois homens saíram do tipi. Encostado à parede da choça, estava um jovem índio, de pé e com os braços, cruzados.
— Você foi muito simpático para «Nuvem Negra» — murmurou Spain ao ouvido de «Corvo Louco» —. Eu conheço-o bem.
Depois, acercando-se do jovem que continuou encostado à parede exterior do tipi, apresentou:
— Aqui tem «Vento», o filho do cacique. Foi este quem levou o cavalo de Smith para o souto. «Vento», apresento-te «Corvo Louco» que veio para lutar pela nossa causa.
O apache e o mestiço apertaram as mãos.
O filho do velho guerreiro aparentava inteligência e alma sã. Essa impressão confirmou-se quando «Vento» o conduziu ao seu tipi e o convidou a sentar-se.
— Poderás ocultar-te entre nós sem que o diabo branco te descubra — afirmou o rapaz, fazendo um gesto indicando a «Agência». — Esta noite, depois do Sol desaparecer, meu pai presidirá a um pow-wow durante o qual serás apresentado à tribo. Até lá, Nutria e eu cuidaremos de ti.
«Corvo Louco» não fez comentários, pois sabia que aquilo representava a ritual forma de englobar mais um componente na tribo. Além de lhe circular nas veias sangue apache, sentia por essa raça enorme respeito.
— Quem é Nutria? — perguntou.
—É a minha irmã.
Spain, julgando a situação devidamente aclarada, preferiu retirar-se para que a sua falta na «Agência» não fosse notada.
Quando o mestiço ficou só, despojou-se das suas roupas e envergou outras apropriadas ao meio que desde então passaria a frequentar. O tom da sua tez não precisava ser alterado, pois ela pouca diferença fazia da dos restantes peles--vermelhas.
O Sol já havia nascido, quando «Corvo Louco», sentado sobre uma manta fumando e pensando em silêncio, foi interrompido por uma aparição.
Era uma cabeça bela duma rapariga índia, de olhos negros, rasgados e vivos.
— Olá! — disse numa voz tímida.
«Corvo Louco», endireitando o corpo, sorriu e fez um gesto de boas-vindas.
— Quem és tu?
A rapariga entrou na choça.
— Sou Nutria. Meu pai mandou-me cá.
A sua idade devia orçar pelos vinte anos. A primeira coisa que muito impressionou o mestiço foram os seus gestos e a perfeita harmonia física daquele formoso corpo.
De pé, em frente da rapariga, «Corvo Louco» olhou-a no rosto com atenção. Pensou que nunca na sua vida tinha visto uma indiana tão bela. As feições eram corretas e os seus dois grandes olhos, negros de azeviche, mexiam-se, ora com malícia, ora tímidos e ensombrados por longos e curvos cílios. O seu sorriso mostrava duas alvas fileiras de dentes.
— «Nuvem Negra» é um grande chefe — respondeu por fim o mestiço. — Certamente merece ter uma filha como tu.
A rapariga sorriu levemente e baixou os olhos.
— As palavras de «Corvo Louco» são para mim uma lisonja — replicou ela —. Meu pai deseja saber se necessitas de alguma coisa, e já dispôs para que os teus desejos sejam ordens. «Vento», o meu irmão, não poderá atender-te durante todo o dia, pois trabalha nos estábulos —. A rapariga levantou os olhos e fitou-os nos do rapaz —. Dize, «Corvo Louco», que desejas?
A jovem expressava-se numa mistura de inglês e espanhol.
— Onde aprendeste o idioma dos brancos? Há por aqui alguma escola?
— Sim, há! Queres vê-la?
Ele assentiu.
— Então, vem comigo.
A visita à escola converteu-se num passeio ao povoado índio. A escola não passava dum montão de pedras soltas entre ruínas, poeirentas.
Oficialmente supunha-se que o Governo continuava a sustentá-la para a educação das crianças índias. Mas a realidade era muito diferente. O indian-agent havia suprimido as aulas, alegando que a escola era um foco de doenças ou então que não dispunha de professores.
— Agora — explicou a rapariga — o padre Miguel vive sozinho em Skeleton Pass. É um homem muito velho e muito bom.
— Tu és católica?
— Sim — respondeu ela, com os olhos a brilharem.
Enquanto durou o passeio, o mestiço verificava que Nutria evitava passar perto do terreno da «Agência». E como lhe perguntasse a razão, rapariga índia respondeu-lhe:
— O meu pai proíbe às donzelas da tribo que se afastem mais de cem passos do rio Recto. Meu pai é sábio. Diz que uma grande desgraça cairia sobre mim se eu me aproximasse dos diabos brancos. E eu sigo o seu conselho.
O mestiço não respondeu, mas o seu rosto traduziu os seus pensamentos. A rapariga compreendeu-os e baixou os olhos, confusa. Afastada do resto dos tipis via-se uma rocha, maior do que as Outras e Nutria explicou ao rapaz que aquele era o templo onde vivia e fazia as suas curas o «Grande Águia», o feiticeiro da tribo.
Ambos se aproximaram, e «Corvo Louco» viu um indígena que parecia esperá-los, com os braços cruzados, à porta do santuário. Os dois jovens cumprimentaram-no respeitosamente e o feiticeiro respondeu-lhe do mesmo modo.
— Tu és o «Corvo Louco»? — perguntou —. O grande chefe «Nuvem Negra» revelou-me o motivo da tua inclusão na nossa tribo. Vieste ajudar-nos a eliminar os males que os diabos brancos nos causam. É justo, pois, que nós, os teus irmãos, te recebamos com os braços abertos.
Em seguida, nas referências que o feiticeiro fez a respeito de Bosco Bates, o mestiço notou algo como que um ressentimento subtil. Pensou adivinhar o que aquilo queria dizer. Talvez a «medicina» do feiticeiro se mostrasse incompetente para curar os males que os homens brancos infligiam à tribo. E a sua atitude era a de um ciumento que se sentia humilhado por se ver na necessidade de aceitar a ajuda dum estranho para fazer um serviço que a sua magia não tinha possibilidade de satisfazer.
Com a jovem Nutria, junto de si, «Corvo Louco», de braços cruzados, permanecia imóvel e impassível. Os seus olhos negros observavam com uma espécie de condescendência aquele homem de ridículas penas e pinturas.

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