quarta-feira, 7 de setembro de 2016

PAS673. O «Cão Ianque» faz frente à «Dama do Rio»

Havia ano e meio que percorria o Oeste procurando algo. Ano e meio desde que deixou de pertencer ao exército do Norte, no qual combatera até alcançar o posto de comandante. Quando partiu do Sul para juntar-se às forças do Norte, jurou que não voltaria a pisar o solo de Luisiana. Mas aconteceram coisas que o fizeram quebrar aquele juramento.
Não ia para ficar, mas o caso era o mesmo. A sua meta era Nova Orleães e para ali se dirigia. Fez boa parte do percurso a cavalo, mas depois de passar por Baton Rouge, a dois quilómetros desta cidade, o cavalo partiu uma pata e teve de abatê-lo.
Continuara a viagem a pé. Depois, aquele barco e o roubo de que fora objeto, ao ter de pagar quinhentos dólares por uma passagem que somente, e pagando bem, poderia custar uns cinquenta dólares.
Com que então, Yuga Dumeine... Quem seria? A julgar pelo apelido, uma crioula. A não ser que se fizesse passar por outra... Jogadora, hem? Ele também conhecia alguns truques. Era possível que a tal Yuga Dumeine tivesse de arrepender-se.
Depois de vestir-se, saiu para o corredor. Foi empurrando todas as portas. Várias se abriram e teve de fechá-las em seguida. Mas, por fim, encontrou o que procurava: a sala de jogo. Ao entrar, ficou assombrado por estarem ali tantos jogadores, apesar de ser tão cedo. Depois viu a mulher. Estava de costas, e era uma «Dama». Pensou nela assim, com maiúscula. Aproximou-se, mas algo o fez retroceder até ao balcão. Agora estava atrás dela, observando-a, procurando encontrar um defeito naquela elegante e preciosa figura. Devia ser a proprietária do «Belle». Conhecia o nome do barco, por tê-lo visto no costado momentos antes de subir par ele.
Sem fazer caso da expectativa que a sua figura despertava, nem do assombro que se exprimia num ou noutro rosto, continuou a olhar para as delicadas e elegantes mãos da mulher, despojadas agora das luvas vermelhas que tinha ao lado, para melhor poder jogar.
Ganhava quase infalivelmente. Um dos jogadores atirava naquele momento. Com os seus olhos de lince viu o resultado: um dos dados marcava cinco, o outro um. Um «ponto» do barco lançou-os à mulher. Naquele momento, «O Ianque» antecipou-se e as suas mãos chocaram com as dela. Mas os dados ficaram nas suas, fortes e poderosas.
— Mil dólares ao sete. De acordo, «Miss»? — disse, encarando os olhos chamejantes de Yuga Dumaine.
Esta não respondeu. Ficou-se a olhar para o homem, observando-o com manifesto descaro, da aba do chapéu aos bicos das botas. Por fim, disse, em tom incisivo:
— Quando um homem fala comigo, tira o chapéu. Isto, se não quer aparecer aos meus olhos como um grosseiro.
O riso silencioso e gelado do homem contribuiu para aumentar a sua cólera pela inopinada intervenção. Mas o que a fez momentaneamente perder as estribeiras foi o que ele disse a seguir:
— Descubro-me sempre diante das damas, encanto. Por agora, você para mim não passa de uma jogadora profissional. Mil dólares ao sete, sim ou não?
Primeiro empalideceu ante aquelas palavras. Depois fez-se vermelha como uma papoila. Respirava afogada, furiosa. Os seus olhos negros disseram por entre chamas do inferno muita coisa que os lábios se lhe recusavam a pronunciar. Por fim explodiu, levantando a mão para esbofetear o homem.
«O Ianque» segurou-lha a tempo. A sua boca deixara de rir, mas tinha-a entreaberta, como se fosse fazê-lo dum momento para o outro.
— Solte-me! Solte-me, já disse! Ouviu-se um arrojar de cadeiras, ao mesmo tempo que os «encasacados» se afastavam das mesas. Nelas só ficaram os jogadores profissionais, com as mãos tensas à altura do peito, perto, muito perto dos coldres axilares. De repente ouviu-se uma voz autoritária:
— Solte «miss» Dumeine, forasteiro. Disso depende a sua vida!
Olhou para o que assim se exprimia. Jogador, batoteiro ou trampolineiro, foi o que num segundo pensou dele «O Ianque» ao vê-lo. Era um indivíduo alto e ossudo, louro como o trigo. Um ligeiro bigodito escurecia-lhe o lábio superior, sobre uma boca sarcástica de lábios delgados e descoloridos.
Olhou-o nos olhos antes de responder. Yuga Dumeine continuou quieta, com o braço seguro pela tenaz de ferro que era naquele momento a mão homem. Nem sequer tentava soltar-se da pressão. Estava eletrizada, com os olhos fixos nos de «O Ianque». Não conseguia mover-se, sequer. Continha até a respiração, à espera de que falasse, de que respondesse às palavras de Peter Stringer, o mais rápido dos homens de Phil Whisper.
Mas quando falou, não pôde deixar de estremecer...
— Não me agradam os teus modos, «cavalheiro». Ainda se diz assim no Sul, não? Dá meia volta e põe-te a andar. A dama fica comigo. Quero jogar com ela.
Yuga Domaine, então, viu-se quase atirada para um extremo da mesa, enquanto os dois homens se olhavam friamente. A sua cólera dissipara-se como por encanto. Ouviu nitidamente a resposta de Stringer:
— Nada tem que dizer, homem. Os seus também não são próprios dum cavalheiro, mas dum labrego ou dum pistoleiro. O seu fato e acento o provam, cão ianque!
O rosto do jovem corou intensamente. Depois ficou pálido como a cera. Por fim exclamou:
— Vou matar-te, jogador. Puxa quando quiseres, mas não o faças com o revólver do coldre axilar. Isso está muito visto. Trazes um «Colt» no cinto.
Lentamente, o jogador afastou a mão da banda esquerda da sobrecasaca. Depois, os braços caíram ao longo do corpo. Olhou fixamente para o homem que tinha em frente, com um meio sorriso gelado nos lábios cruéis.
Deu um passo para o lado, enquanto o silêncio se tornava mais profundo e os comentários se reduziam a leves sussurros. Mas «O Ianque» nem sequer os ouvia. Estava atento ao homem. Pelo menos, assim julgavam os que seguiam a cena com olhos desorbitados...
De repente, a mão de Stringer voou para o coldre, ao mesmo tempo que se deixava cair no solo. Levantou-a e...
«O Ianque» levou as mãos aos seus. Um fogacho relâmpago surgiu do seu «Colt» esquerdo ao mesmo tempo que do direito saía outro em direção diferente. Três detonações explodiram em uníssono no meio da sala de jogo. Várias mulheres pintalgadas gritaram. Depois...
Dois homens ficaram imóveis. Um deles era Stringer, com uma roseta vermelha no peito. Não se mexeu do sítio onde caíra. Quanto a Chasse Milton, jogador profissional, amigo do outro, à esquerda do que fazia chamar-se «O Ianque», caiu sobre a mesa da roleta com que trabalhava, com um orifício na fronte, do qual quase não saía sangue. Depois, escorregou da mesa para o chão e ficou numa posição irrisória, se não fosse trágica, olhando para as lâmpadas do teto que balouçavam ligeiramente impelidas pelo suave movimento do barco. Todos viram que tinha empunhadas as armas. A intenção lera bem reliam. Quisera assassinar aquele desconhecido, aproveitando a sua distração com o chamado Stringer. Os comentários inundaram a sala. Com uma fria calma que fez vacilar a mulher, «O Ianque» aproximou-se dela:
— Jogamos, «miss»?
Então, Yuga sorriu, deixando todos assombrados. Sem deixar de sorrir voltou-se par os outros jogadores, dizendo:
— Tirem esses homens da minha vista.
— Dirigiu-se depois ao resto dos passageiros que continuavam silenciosos, sem perder de vista o pistoleiro: — Aqui não aconteceu nada. Continuem a jogar. Não é a primeira vez.
Aquilo era verdade e «O Ianque» não o ignorava. Não obstante, tinha o rosto pálido, apesar da sua serenidade, repôs as cartuchos gastos e olhou para a mulher, ao mesmo tempo que metia as armas nos coldres. Entretanto, os demais jogadores obedeciam à ordem. Ela assombrou-se ao vê-lo tão sereno e, todavia, tão pálido, porque não podia saber o que se passava no seu íntimo. «O Ianque» continuava pálido, mas não por ter matado dois homens. Matara muitos, e segundo os seus cálculos, talvez se visse obrigado a matar mais algum.
Isso só o poderiam dizer o tempo e as consequências do que pensava fazer em Nova Orleães. A sua palidez devia-se, unicamente, ao insulto de Stringer. Dissera: «cão ianque». Estas palavras tinham soado algumas vezes aos seus ouvidos, pronunciadas por uma pessoa à qual não podia fazer-lhas engolir com chumbo: Diana Todd.
Agora, o «cão ianque» passearia novamente por Nova Orleães. Mas desta vez não seria como antes. Do aperaltado cavalheiro que um dia partira para a guerra, não restava nada. Em seu lugar voltava um frio pistoleiro, um homem que só tinha por lei os seus «Colts» calibre 45, sem amigos, sem um carinho sincero, nem sequer dos que ele, apesar de tudo, continuava a amar do todo o coração.
As palavras do batoteiro, momentos antes da sua morte, reavivaram-lhe as recordações. Que aconteceria durante a sua ausência?
— Não queria jogar, senhor? Disse mil dólares ao sete. Ou ouvi mal talvez?
Sacudiu a cabeça. A cor voltou lentamente ao seu rosto. Olhou para a mulher que se aproximara até quase roçá-lo. Os lábios vermelhos como o sangue, incitantes e tentadores, o sorriso diabólico. Compreendeu quanto perigosa era Yuga Dumeine, e mais ainda quando a viu pestanejando os olhos negros como o próprio diabo, com as suas longas e sedosas pestanas.
Por uns instantes julgou oportuno fechar os olhos. Mas não o fez. O silêncio que havia na sala fê-lo olhar para ambos os lados. Mulheres e homens desviaram a vista imediatamente, mas ele leu algo nos olhares das pessoas que o conheciam. Poucas, três ou quatro o máximo, mas as suficientes para que os comentários voassem dum lado para o outro sobre Nova Orleães. Pensou com pena que a guerra fratricida não mudara os cavalheiros do Sul. Nem as damas. Luisiana seria sempre tal e qual foi: uma sociedade corrompida, das mais baixas paixões, de críticas peçonhentas...
— Ficou muito pensativo, senhor. Joga ou não?
Voltou-se para «Ela ». Ficou assombrado quando notou pela segunda vez que pensava duas vezes da mesma maneira, ao referir-alie à mulher: com maiúscula. Não sabia porquê, nem tinha intenção de averiguá-lo.
Ao voltar a cara para aquela beleza, encarou por segundos com os jogadores do barco, que regressavam. Todos, menos um, se os seus cálculos não falhavam. O seu rosto não deixou transparecer o que estava a pensar. Limitou-se a responder à mulher:
— Mil ao sete. Feito?
— Porque não, forasteiro?
Foi ela a primeira a pegar nos dados de cima da mesa, onde ficaram no momento em que levantou a mão contra aquele rosto que a olhava agora sem demonstrar a menor emoção.
Yuga Dumeine, que se sabia formosa, bela e elegante, ficou desconcertada. Aquele homem não era igual aos demais. O brilho dos seus olhos nada dizia. Continuava indiferente à sua formosura, como se em vez de a ter na frente tivesse um cato ou uma couve. Revoltou-se contra aquela ideia, e voltou a pensar o mesmo que quando o viu abater dois homens de Whisper, mas noutro sentido.
— Tem medo, «miss»?
Os olhos negros pareceram duas setas de fogo quando se cravaram nos do homem.
— Com mil diabos! Não, «monsieur».
Depois daquela exclamação pouco académica, Yuga Dumeine dispôs-se a lançar os dados. Mas no mesmo instante, «O Ianque» fez uma genuflexão palaciana, levando a mão ao chapéu para descobrir-se. Quando o fez, a sua cabeça quase tocou o chão, levando aquele ao peito.
— Pode jogar quando quiser, «mademoiselle» Dumeine — disse no mais puro francês.
Yuga ficou uns instantes em suspenso, olhando para ele, mas aquela cara era uma máscara. Não dizia nada. Com expressão azeda, atirou os dados. Estes, pela primeira vez, marcaram cinco. Como se aquilo fosse um sinal, os jogadores formaram círculo em torno deles no mais completo silêncio.
O grupo de curiosos engrossou de maneira notável, quando se aproximaram as mulheres pintadas e, com elas, o resto dos encasacados cavalheiros. Sem saber porquê, talvez por um estranho sexto sentido, tinham compreendido que aquela não era uma simples partida, que havia mais alguma coisa.
Na expressão do homem não havia nada, mas a de Yuga denunciava claramente que naquele momento sentia um ódio sem limites pelo homem que, com o sorriso nos lábios, gelado como a própria morte, se preparava agora para lançar os dados, mas dizendo primeiro:
— Creio que me deve mil dólares, «mademoiselle».
Yuga crispou o seu lindo rosto numa máscara. Naquele momento sentia desejos de esbofetear o homem. E muito mais quando viu que os dados marcavam sete.

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