terça-feira, 27 de setembro de 2016

BUF101. Cap IX. Dois cavalheiros da União

Chester e June partiram a galope para o vale, apenas deixaram a cabana que servia de refúgio à quadrilha de Mulder.
Cavalgavam silenciosos, tirando o máximo rendimento dos seus cavalos, vendo com bem notável aflição que a noite não tardaria a descer sobre eles, obrigando-os a diminuir o andamento das suas montadas.
Breve a escuridão foi completa e Chester pôs o seu cavalo a passo.
— É inútil prosseguir — disse ele à rapariga. Com esta escuridão arriscamo-nos a despenhar-nos por algum barranco.
— Podemos seguir a passo — sugeriu June.
— Não conheço bem estas paragens e talvez nos perdêssemos, o que nos atrasaria mais ainda. O mais prudente será acamparmos aqui mesmo.
June aceitou a sugestão de má vontade, pois iam perder um tempo precioso, que resultaria em maior perigo para a segurança dos homens que se encontravam no vale, mas, perante o inevitável, não teve muito mais remédio que resignar-se.
A noite passou lentamente, sem que nenhum deles pudesse conciliar o sono, assaltados por tenebrosos pensamentos. Já teria começado o ataque? Apanhariam os índios o major e os seus homens, acabando com eles antes que conseguissem lá chegar e ajudá-los na defesa?
De qualquer forma, pensava Chester, pouco poderiam fazer quatro homens contra aquela turba de peles-vermelhas, ansiosos por se apoderarem dos tesouros com que Smilin os havia deslumbrado.
Antes que amanhecesse, já se haviam posto outra vez a caminho, aumentando a velocidade da marcha, à medida que a luz do dia vinha rompendo.
Galoparam durante umas três horas, até que, finalmente, o bosque situado perto do vale surgiu a seus olhos.
— Depressa, June! Os índios estão a atacá-los! Corramos em seu auxílio!
Os cavalos devoravam o terreno a uma velocidade suicida, e o bosque parecia voar ao seu encontro.
Os tiros sucediam-se cada vez mais perto.
De súbito, as detonações cessaram, quando já alcançavam o limite do bosque. Um impressionante silêncio rodeou os jovens.
— Deixaram de disparar — murmurou Chester, enquanto penetravam no bosque, mas absteve-se de manifestar o que pensava daquela interrupção.
Olhou June de soslaio e viu-a empalidecer. Possivelmente, também a assaltavam as mesmas ideias sinistras. Ao saírem do bosque, a rapariga apertou nervosamente o braço de Chester.
— Olha, Chester!... — exclamou com os olhos dilatados pelo horror. — Uma coluna de fumo sobe do fundo do vale! Largaram fogo à casa! Meu pobre irmão!...
A sua voz quebrou-se num soluço angustioso.
— Acalma-te, June. Isso não quer dizer que não estejam vivos — encorajou-a ele, embora a sua voz soasse a falso. — Vamos descer.
Mas, nesse instante, as vibrantes notas de um clarim ordenando a carga, rasgavam aquele silêncio opressivo, de mau presságio. June ergueu a cabeça, nos lindos olhos azuis uma luz de esperança.
— São soldados! — gritou Chester, excitado. — Nem tudo está perdido! Vamos!
Do alto da coluna saiu uma aluvião de soldados que se precipitavam pela vertente oposta, muito mais ao Sul donde eles se encontravam.
Logo em seguida, quando os dois jovens desciam ao fundo do vale, avançando com perigosa velocidade pela estreita senda cingida ao longo da parede, passaram debaixo deles alguns peles-vermelhas que fugiam, perseguidos de longe pelos soldados.
— Deus queira que tenham chegado a tempo — murmurou June, presa de terrível ansiedade
De repente, Chester divisou dois homens que subiam pela estreita senda por onde eles desciam. Deteve o cavalo e June fez o mesmo.
— Devem ser os homens de Smilin — disse Chester, apontando os cavaleiros. — Parece que trazem muita pressa. Bem, não podemos passar todos ao mesmo tempo num caminho tão estreito.
— Retrocedamos — alvitrou June.
— Retroceder? Nada disso! — replicou o rapaz. — Smilin, ou quem quer que sejam os que sobem, vão ver-se de caras comigo aqui mesmo.
-- Não faças isso, Chester! São dois contra ti e podem muito bem matar-te.
Chester simulou não a ouvir. Calmamente, desmontou e entregou a June as rédeas do seu cavalo. Só então, disse:
— Sim, poderão, mas também pode acontecer o contrário: — E acrescentou. — Afasta-te um pouco e não te preocupes. Vou esperá-los aqui.
— Oh! Chester! Mas que necessidade há de te expores a esse perigo?
— Não é tão grande como se te afigura. Em primeiro lugar, ainda não nos viram; em segundo, tenho a vantagem de lutar a pé. Afasta-te, June. Eles já se aproximam.
Efetivamente, os dois homens tomaram a recta da senda e prosseguiram na retirada a bom passo... para se encontrarem com Chester, que se havia adiantado para eles e os aguardava a pé firme no meio do caminho.
Smilin e Benson estacaram as montadas, surpreendidos pela presença daquele homem que lhes obstruía a fuga, mas não tardaram a reagir e investiram com os cavalos para ele.
— Ah! Maldito! És tu...? Agora vais pagã--las todas! — rugiu Smilin.
Mas Chester estava prevenido, esperando aquela arremetida. Dos seus revólveres saíram oito balas, em menos tempo que leva a dizer-se.
Os projéteis caíram como uma chuvada sobre os bandidos e seus cavalos. Os foragidos oscilaram nas selas, ao receberem nos corpos aquela saraivada de balas, e o cavalo de Mulder, que se encontrava na parte de dentro do apertado caminho, encabritou-se, soltando um relincho de dor ao sentir-se ferido, empurrando a montada de Benson para o precipício.
Homens e cavalos, numa mistura confusa, foram projetados no ar, juntando-se os gritos e imprecações dos bandidos aos agudos relinchos das cavalgaduras.
O vale ficou mergulhado num silêncio profundo, só quebrado pelo rumor longínquo dos soldados que continuavam perseguindo os índios, e o crepitar do incêndio que devorava a casa.
Chester e June prosseguiram o seu caminho e pouco depois encontravam-se em frente da casa, pasto das chamas que a lambiam por todos os lados, transformando-a numa imensa fogueira, que elevava ao céu as suas línguas de fogo.
Na esplanada em frente, encontraram Ronald conversando com dois homens, um dos quais envergava o uniforme azul de capitão do Exército da União. No outro, Chester reconheceu Maxwell Hattin, o Delegado do Governo no território «Araphaoe».
Atrás de Chester, Patt e Colbert prodigalizavam os seus cuidados a Willmore, estendido no chão sobre uma manta. Patt tinha a cabeça ligada, e Hards, junto de Wilmore, ocupava-se em colocar-lhe uma ligadura numa perna.
Chester e June chegaram junto do grupo e a rapariga lançou-se nos braços do irmão, que a estreitou fortemente contra o peito, comovido.
— Oh! Ronald! Julguei que nunca mais tornava a ver-te — soluçou June, enquanto lágrimas de alegria lhe rolavam pelas faces.
— Como estás vendo, felizmente, enganaste-te, June.
A jovem voltou-se para os dois homens que conversavam com seu irmão.
— Muito agradecida pelo vosso auxílio. Se não fossem os senhores...
Interrompeu-se a o ver as expressões carregadas daqueles dois homens.
— Olá, Maxwell! — saudou Chester, adiantando-se para o delegado. — Como está?
— Que grande surpresa, Bruce! Que faz você por aqui? — perguntou Maxwell estreitando a mão que Chester lhe estendia.
O rapaz explicou as razões por que ali se encontrava, informando-o também acerca do seu encontro com Smilin e seus resultados, assim como da completa liquidação da quadrilha que aquele foragido acaudilhava.
— Bem — continuou Maxwell, dirigindo-se a Ronald — espero que nos explique a sua presença aqui e o motivo por que ergueu aqui esta edificação sem a devida autorização. Não sabe que isto aqui é já território dos índios «araphaoes» ?
— Sim, sei — replicou Ronald com firmeza.
— Então, por que o fez? Quem é o senhor?
June olhou o irmão angustiada.
— Sou... — principiou Ronald a dizer.
— Não digas, Ronald! — exclamou a rapariga, aflitíssima.
Maxwell e o capitão olharam os dois irmãos com estranheza, suspeitando de que alguma coisa se ocultavam atrás daquela angustiosa exclamação.
O capitão dirigiu-se depois a Ronald.
— O senhor prestou-nos um assinalado serviço, desbaratando esta insurreição dos jovens guerreiros «araphaoes». Melhor dizendo, o seu serviço foi duplo, pois que o seu amigo — indicou Chester com um gesto — liquidou o pior bandido do Texas, segundo disse. Nós estamos muito bem impressionados com o senhor pelo seu feito, mas creio que nos ocultam alguma coisa que devemos saber, e portanto, rogo-lhes que respondam às perguntas que lhes formulou o senhor Maxwell.
— Ia responder quando minha irmã me interrompeu — disse Ronald. — Estou cansado de deambular de lugar em lugar e prefiro entregar--me à benevolência do Governo da União e terminar de uma vez com esta situação.
Ronald proferiu estas palavras dirigindo-se a sua irmã, e agora ia falar para o capitão e Maxwell:
— Senhores, sou Ronald Watterfield, major do Exército da Confederação Sulista, para os senhores o último rebelde. Creio que o vosso Governo pôs a minha cabeça a prémio, por sinal bastante tentador, há que reconhecer. — Fez uma pausa e continuou: — Estabeleci-me aqui, pensando que, finalmente, encontraria a paz de que necessito, mas não sucedeu assim. Estou cansado de lutar e desejo entregar-me. Senhores, sou vosso prisioneiro.
Os dois homens entreolharam-se surpreendidos pelo que acabavam de ouvir. O major Watterfield era o último homem que lhes passaria pela cabeça encontrar naquelas paragens.
O capitão foi o primeiro a reagir. O seu espírito de militar sabia dar o devido valor ao gesto do major. Com a mais expressiva admiração e respeito, estendeu-lhe a mão, dizendo:
— Major Watterfield, permita-me que lhe aperte a mão, que é a de um valente. A guerra colocou-nos frente a frente como adversários, mas tudo isso terminou já. Pode dispor de mim incondicionalmente e prometo-lhe que empregarei toda a minha influência pessoal para conseguir do tribunal que o julgar uma sentença absolutória.
— Muito obrigado — disse Ronald, comovido. — Vejo que ainda há cavalheiros no Exército da União.
— Mais do que o senhor pensa — interveio Maxwell. — Eu também tenho os meus conhecimentos. Hoje mesmo vou redigir um relatório, informando do ocorrido e não pouparei elogios à sua denodada resistência, evitando-nos a perda de muitas vidas, pondo termo, apenas iniciada, a uma luta de morte.
«Se «Nuvem Cinzenta» houvesse alcançado a sua primeira vitória sobre os brancos, todos os «araphaoes» em massa o seguiriam daqui em diante, e além disso, receberia, provavelmente, o auxílio dos «sioux», dos «comanches» e de outras tribos índias. Teriam corrido rios de sangue e seria atrasada por muitos anos a colonização de extensos territórios. Agora, tudo está acabado. «Nuvem Cinzenta» não ousará voltar à sua tribo para suportar o escárnio dos outros, supondo que ele não morreu na luta. Tudo isto devemos a si, major Watterfield, e apresentei a minha demissão se o Governo de Washington não souber apreciar devidamente o valor do serviço que nos prestou, concedendo-lhe o indulto.
— Oh! Senhor! — exclamou June, com os olhos arrasados de lágrimas esperançosas. — Isso é muito mais do que poderíamos esperar. Não nos faça conceber demasiadas ilusões.
— Menina — interveio o capitão. — O senhor Maxwell não fala por falar. Se ele o diz é porque tem probabilidades de o conseguir.
— Congratulo-me muitíssimo, Ronald — disse Chester, estendendo-lhe a mão.
— Obrigado, Chester. Quererás cuidar de June durante a minha ausência?
— Naturalmente! — respondeu o jovem. E apressou-se a acrescentar. — Bem... se ela quiser!
— Sabes bem que não desejo outra coisa — afirmou June, colocando-se a seu lado, enquanto Maxwell e o capitão sorriam compreensivos.
— Ouça, Maxwell. Como chegaram tanto a tempo?
— Havia uns dias que andávamos a espiar os movimentos de «Nuvem Cinzenta» e de alguns dos seus guerreiros, mas não conseguimos observar nada de concreto senão ontem à tarde. Um dos meus vigias foi dar-me a notícia de que uns sessenta «araphaoes» com «Nuvem Cinzenta» à cabeça, haviam partido da tribo, enfeitados com penas de guerra, apesar dos conselhos dos anciães. Demorámos um pouco a reunir as forças para lhes seguir o rasto, mas por fim consegui-mos com o resultado que você pôde observar.
Naquele momento, um sargento acercou-se do grupo e perfilou-se em frente do capitão.
— Às suas ordens, meu capitão — disse. — Recolhemos os cadáveres de trinta e oito índios e dois brancos. Além disso, há alguns selvagens feridos e outros prisioneiros.
— Obrigado, sargento. Que montem os homens e regressem ao acampamento. Eu não tardarei a segui-los. Boa razia, major — continuou, dirigindo-se a Ronald. — Depois desta derrota os «araphaoes» não voltarão a recorrer à força. Vá-mos, Maxwell? Major, quando quiser...
Ronald abraçou a irmã, mas nos olhos de ambos já não havia o desespero por aquela despedida, que teria sido trágica se «Risonho» Mulder houvesse logrado os seus propósitos, mas refletiam a esperança que as palavras de Maxwell e do capitão haviam levado aos seus corações.
Depois, o major despediu-se de Chester, abraçando-o efusivamente.
Patt, Hards e Colbert, que só haviam percebido metade da conversação entre os quatro homens, pegaram nas suas armas para impedir a partida do major, mas este conteve-lhes os ímpetos, explicando-lhes a promessa de Maxwell e com isto se acalmaram os três leais servidores, aos quais o major estreitou as mãos, profundamente emocionado.
Depois montou o cavalo que Colbert havia preparado por ordem sua e afastou-se ladeado por Maxwell e o capitão, agitando um braço no ar numa despedida, antes de desaparecer pelo meio das árvores.
Quando o perderam de vista, Chester enlaçou June pela cintura, e ambos, com a felicidade refletida nos rostos, se afastaram em direção à casa, totalmente destruída pelo voraz incêndio. Tudo se havia solucionado satisfatoriamente. Se Maxwell cumprisse a sua palavra, Ronald em breve voltaria, livre de toda e qualquer perseguição.
— Bom, Hards — disse Patt, coçando a cabeça. — Parece-me que chegou a hora de também nós fazermos as pazes. Não te parece?
— Creio que tens razão. Mas julgo que o major fez mal em se ir embora. Aqueles tipos do Norte são uns falsos. Nós poderíamos muito bem tê-lo defendido e...
— ...e agora estarias em cima de uma nuvem cor-de-rosa, tocando harpa. Ou não havias dado conta de que tinhas atrás de ti mais de vinte soldados?
— Pois sim, mas apesar disso...
— Hards, continuo a pensar que és o tipo mais casmurro que tenho visto na minha vida. Porque gostas tanto de ser espírito de contradição?
— Talvez para não estar de acordo com um porco como tu, Patt. Queres repetir isso de casmurro?
— Se não estivesses ferido, repetia isso e muito mais.
— Tu também estás ferido, e portanto, a coisa está igualada. — Então, não tenho nenhum inconveniente em repetir-te que és um casmurro, se tu repetires isso de porco.
— És um porco, Patt! — regougou Hards, façanhudo. — O maior porco do mundo!
— E tu és um casmurro, «Cara Dura»! — replicou Patt plantando-se-lhe na frente, em atitude hostil.
— E vou dar-te uma sova. Sinto muito, porque te estimo, mas...
— E eu vou dar-te outra. Manejas a espingarda como ninguém, mas não posso consentir que me insultes!
Investiram um contra o outro, incitados pelos gritos de Colbert e dos débeis sorrisos de Willmore. Durante meia hora esmurraram-se à grande, mimoseando-se com socos, pontapés, terríveis cabeçadas que ressoavam nos corpos dos dois colossos, os quais resfolgavam como duas baleias fora de água.
Patt sangrava de uma sobrancelha e Hards do nariz. Por fim estatelaram-se no chão, confundidos num estreito abraço, e depois de rolarem várias vezes, forcejando, ficaram estendidos de barriga para o ar, um para cada lado, sem quase poderem mover-se extenuados pelo esforço empregado e pelos socos recebidos e descarregados.
Mas os seus temperamentos indomáveis ainda os impeliam a não se darem por vencidos, querendo cada um ser o último a descarregar o golpe final, pelo que, de vez em quando, um deles levantava o braço e deixava-o cair amolecido sobre o peito do adversário, acompanhando aquele arremedo de soco com um lindíssimo vocabulário de frases «amáveis».
— Ouve... Patt... parece-me que somos... uns idio... tas — disse por fim Hards, sentando-se no chão e levando a mão ao nariz para limpar o sangue.
— Também... creio... o mesmo... que tu... Hards — respondeu Patt entrecortadamente, limpando com um lenço a sobrancelha ferida.
— Estamos sempre... de acordo em tudo...
— Claro que sim... Hards... em tudo — replicou Patt, sentando-se em frente do seu antagonista.
— Então... porque... nos batemos?
Patt coçou a cabeça, sem saber que dizer.
— Não sei... não sei... Será porque és um casmurro...
— Não comeces outra vez, Patt! Se retiras isso, também eu retiro o de porco, valeu?
— Valeu! Venha de lá essa mão!
— Amigos?
— Para sempre!
Estreitaram-se as mãos, mas naquele apertão de amizade imorredoira empregou cada um deles toda a sua força, a ver qual fazia mais mal um ao outro.

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