segunda-feira, 19 de setembro de 2016

BUF101. CAP I. A caravana misteriosa

Sentado nos degraus de madeira do alpendre do «Belo Texas», Chester Bruce contemplava a dilatada planura que se estendia na sua frente, enquanto distraidamente introduzia outra vez a delgada vara no cano da esplêndida espingarda que estava limpando.
Estendido no chão a seu lado, com o cotovelo esquerdo apoiado no primeiro degrau e a mão na face, Patrick Mont, o gigantesco Patt, seu companheiro inseparável, mascava incessantemente Deus sabia o quê, enquanto com o indicador da mão direita se entretinha a desenhar na terra sinais cabalísticos.
Ambos haviam feito toda a guerra juntos no Exército Sulista e havia pouco tempo haviam-se desmobilizado por sua conta, não fazendo caso do decreto dos vencedores, ordenando que deviam considerar-se prisioneiros todos os que haviam pertencido ao Exército do Sul.
«Belo Texas» era uma pousada que dominava uma vasta planície, para além da qual se estendia o Staked Plaid, o temível deserto, pelo qual ninguém ousava aventurar-se, a não ser as caravanas, que levavam alguns carros, destinados exclusivamente ao transporte da água.
Uma extensa pradaria rodeava a pousada., com o seu verde panorama de erva ondulante, que na distância se tornava, subitamente, num gigantesco tapete de areia caldeada pelo sol, onde não havia o menor vestígio de vida.
A pousada limitava-se a uma construção de madeira, de dois pisos. No de baixo havia uma sala de refeições, e anexa uma loja onde se podia adquirir o necessário para uma viagem pela pradaria. No andar superior ficavam os quartos destinados aos hóspedes ocasionais, sempre escassos, pois que no Inverno aquelas paragens eram pouco concorridas, e no Verão todos preferiam pernoitar ao ar livre.
Continuamente chegavam ali novos homens e carros que acampavam em redor, misturando-se aos índios, formando assim um conjunto pitoresco.
Cada dia trazia consigo mais nova gente, trapaceiros, jogadores, vaqueiros, soldados, que se juntavam na sala, onde jogavam, bebiam e provocavam contendas, que a maior parte das vezes eram resolvidas a tiros.
Toda aquela gente perseguia o mesmo objetivo. Havia anos que os Estados do Texas e Oklahoma andavam em litígio por causa de uma extensa faixa de terreno, de mais de mil milhas quadradas, situada mais ao Norte da pousada.
Esperava-se que de um dia para o outro se decidisse o pleito entre o Governo vitorioso na Secessão e, assim, o Estado que ganhasse abriria aquele terreno à colonização. Era este o momento que toda aquela gente aguardava para se lançar ao cobiçado terreno como alcateias de lobos esfaimados, para se apoderarem de algum pedaço de boa terra que lhes permitisse dedicarem-se à agricultura ou à criação de gado.
Naturalmente, teriam de contar com os índios, que não se resignariam a que lhes arrebatassem as suas terras, sem as defender até à morte, quando a avalancha de colonizadores penetrasse nelas com todos os seus vícios e virtudes.
No entanto, esta eventualidade não era motivo para que arredassem pé aqueles homens duros e tenazes, que, pouco a pouco, iam ganhando terreno para o Oeste. A luta contra os índios era um dos acidentes com que teriam de contar e aceitavam-na como mais um obstáculo a vencer.
O sol caía a prumo sobre a pousada naquela tarde quente de Setembro, obrigando as pessoas e animais a procurarem refúgio na sombra.
Em redor dos dois amigos todos dormiam, uns refugiados nas suas tendas, outros à sombra dos carros, enquanto o astro-rei projetava os seus raios abrasadores sobre a Terra.
— O que te digo, Chester — disse Patt, erguendo os olhos para o seu companheiro — é que não sei porque havemos de permanecer aqui neste deserto, podendo ir para outros lugares.
— Já to disse mil vezes, Patt, mas és tão burro que não consegues compreender. Não sabes do litígio que existe entre o Texas e Oklahoma por causa dessa faixa de terreno que fica perto daqui? Pois esperamos apenas que o pleito se resolva para corrermos para lá, estabelecermos os limites de um bom pedaço de terra e dedicarmos--nos à criação de gado.
Patt resmungou, meneando a cabeça. Os propósitos do seu amigo não logravam convencê-lo. Era um homem muito bizarro o tal Patt. Alto, forte, enorme, uma cara de lua cheia e uns olhos constantemente espantados, sempre disposto a acreditar nas maiores patranhas que lhe impingissem. Tinha a alma e a inteligência de um garoto encerradas num gigantesco corpanzil, e quando não compreendia uma coisa, a sua tendência era solucioná-la a murros, e esta sua ausência de compreensão fazia que estivesse sempre dependente dos outros.
Era ingénuo, simples e amável. Chester Bruce conhecera-o por ocasião do alistamento e logo simpatizaram mutuamente.
Bruce estimava Patt pela sua bondade e pela dedicação que lhe demonstrava. Por seu lado, Patt adorava Chester pela sua inteligência e habilidade.
— Bem sei que não consegues compreender — prosseguiu Chester — mas não te preocupes. Eu pensarei por ti o plano a seguir e só te peço que me prestes a tua ajuda quando for necessária.
— Sabes que a tens, Bruce. Desculpa, mas é que me impaciento quando estou muito tempo inativo.
— Alegra-me ouvir-te falar assim, Patt, mas creio que em breve terás, quer dizer, teremos movimento contínuo.
— Porque dizes isso?
— Não vês a quantidade de gente nova que vem chegando todos os dias? Isso quer dizer que muitos pensam fazer o mesmo que nós e que teremos de nos movimentar para apanharmos um pedaço de terra que valha a pena.
— Com tudo isto, creio que quem está fazendo um bom negócio é o velho Coogan, que tem sempre o estabelecimento cheio até ao teto.
Chester destravou o gatilho da espingarda e levou a arma à cara, apontando a um alvo imaginário.
— A quem apontas? — perguntou Patt.
— A ninguém. Estou a experimentá-la... — interrompeu-se de súbito e baixou a espingarda. — Demónio! — exclamou. — Terei visões ou vem para aqui uma caravana?
Levou a mãos aos olhos a fazer de pala e olhou com mais atenção, verificando que não se enganava.
— Um, dois, três, quatro carros, Patt — disse. — Demasiado pequena para seguir para o deserto... Mas então, para onde irá?
Os quatro carros aproximavam-se, aos solavancos pelo caminho poeirento, mas ainda demoraram bastante tempo a chegar junto de Chester e Patt, devido à lentidão com que avançavam.
A maior das surpresas pintou-se nos rostos dos dois amigos, quando a caravana ficou ao alcance da vista.
— Olha bem, Patt. Apenas um homem conduz o primeiro carro, que traz os outros atrelados.
Aquele facto era tão verdadeiro como estranho. Um gigantesco indivíduo, cuja negra barba cerrada lhe dava ao rosto um aspeto carrancudo, segurava com a mão firme as rédeas dos cavalos que puxavam o primeiro carro, mas era a única pessoa visível da caravana. Os outros três carros seguiam atrás do primeiro, presas as rédeas dos animais à traseira do carro que os precedia, com os toldos tão hermeticamente fechados que não permitiam ver nada para o interior.
— Caramba! Para onde irá aquele homem sozinho? Que levará dentro daqueles carros?
— E que cavalos, Chester! São do melhor que tenho visto, mas vêm num estado lastimoso. Devem ter feito uma grande jornada!
Os carros chegavam naquele momento perto deles. Cada um deles era puxado por dois cavalos de magnífica raça, mas tão cansados e cheios de pó que caminhavam trôpegos, as cabeças rasando a terra. Apenas um cavalo de sela, com arreios completos, que fechava a caravana, amarrado ao último carro, parecia conservar ainda vestígios do seu sangue e da sua raça.
Ao vê-lo, Patt soltou um assobio.
— Nunca na minha vida vi um cavalo semelhante. Deve ser um prazer galopar em cima dele.
O barbudo condutor lançou um olhar de indiferença aos dois amigos, mas a pergunta escapou-se dos lábios de Patt sem poder contê-la:
— Aonde vai, amigo?
A resposta não pôde ser mais seca.
— Ainda que seja para o inferno, que lhe importa a si? — replicou o barbudo, voltando logo os olhos para o caminho.'
Patt permaneceu um segundo com a boca aberta, olhando apalermado os carros que se afastavam. Depois, quando o seu entorpecido cérebro acabou de digerir a resposta do outro, fez menção de correr atrás da caravana, mas a mão de Chester pousou-lhe no ombro, fazendo-o deter-se.
— Quieto, Patt! — disse-lhe. — Creio que aquele homem não vacilará em te pregar um tiro e bem o terás merecido por te meteres onde não és chamado.
— Aquele tipo não é do Texas, Chester — respondeu Patt, dominando o seu furor.
— E tu que sabes...
— Um texano não me teria respondido assim.
— Um texano também não teria feito a pergunta que tu fizeste, Patt. Parece-me que não foi mal feito...
Enquanto Patt se entretinha, praguejando e jurando fazer mil coisas com a pele do condutor, se voltasse a 'encontrar-se com ele, Chester mergulhou nos seus pensamentos, cujo centro era a misteriosa caravana que ainda se divisava.
Quando os carros passaram por eles, Chester viu uma coisa que lhe chamou poderosamente a atenção. Havia feito a guerra na cavalaria sulista e não podia enganar-se. O equipamento do cavalo que vinha amarrado ao último carro era o vulgarmente usado pelos confederados.
Muitos homens haviam abandonado os seus lares, impelidos para a 'guerra, finda a qual procuraram melhores condições de vida, mas em geral essa gente marchava só, sem mais propriedades que o seu cavalo e um revólver. Mas nunca tinha visto ninguém com possibilidades de equipar quatro carros e emigrar para o Oeste. Além disso, aquele cavalo...
Os seus pensamentos, de súbito, foram cortados por algumas detonações que soaram a distância, na direção seguida pela caravana.
Patt deixou de rezingar e ambos se levantaram de um salto. O que viram encheu-os de assombro.
Vários cavaleiros cruzavam velozmente a pradaria, avançando a galope em direção aos carros, com intenções pouco tranquilizadoras, pois que disparavam as suas armas, conforme avançavam, mas era evidente que os componentes da caravana se defendiam corajosamente.
Chester viu que um dos assaltantes caía da cavalgadura.
— Depressa, Patt! Corramos em seu auxílio!
Estavam já a pouco mais de meia milha do lugar da refrega. O jovem corria como um gamo, seguido pelo corpulento Patt, que soltava imprecações sem cessar, amaldiçoando os que o obrigavam a abandonar a fresca sombra do alpendre, para se expor aos abrasadores raios do sol.
Encontravam-se a uns duzentos metros da caravana, quando Chester viu que um dos assaltantes havia conseguido chegar à parte traseira do último carro e tentava entrar dentro dele.
O jovem fincou o joelho em terra, apontou cuidadosamente a espingarda e disparou. O estampido da arma confundiu-se com os tiros dos assaltantes. O homem retesou-se em cima do carro, abriu os braços e derrubou-se no chão, de costas.
Os outros assaltantes, surpreendidos por aquele reforço que o Céu enviava aos que já supunham presa segura, e ao ver aqueles dois homens que se lançavam para eles, de espingardas apontadas e disparando sempre, voltaram garupas e fugiram a galope, sem se preocuparem nada com a sorte do seu desgraçado companheiro de aventuras.
Chester chegou junto dos carros no momento em que o barbudo condutor da caravana descia da boleia do primeiro carro e se acercava dele, com uma espingarda nas mãos.
— Há vítimas? — perguntou Chester, cordialmente.
O outro mirou-o de alto a baixo.
— Não, não há — respondeu de mau modo. — Obrigado pela sua ajuda.
A Chester não passou desapercebida a estranha pronúncia do homem e disse para consigo:
« Patt tinha razão. Este homem não é texano. Parece da Carolina ou suas imediações».
— Não tem nada que agradecer — disse em voz alta. — Podemos ser-lhe úteis em alguma coisa?
— Não... muito obrigado. Já podemos seguir o nosso caminho.
A sua perturbação era evidente, parecendo estar ansioso por que Chester se despedisse para prosseguir a viagem, mas naquele momento chegou Patt junto deles; e, ao ver o barbudo, reavivaram-se-lhe as ânsias de tirar vingança da indelicadeza do condutor.
— Olá! — disse, soprando, como um fole. — Parece que voltámos a encontrar-nos...
— Eu não tenho nada que, falar consigo!
— Mas tenho eu que falar contigo, maldito respondão! Larga-me, Chester! Vou fazê-lo em papinhas!
Ia lançar-se ao outro, mas nesse instante reparou-lhe na manga ensanguentada da camisa.
— Ah! Estás ferido, hem? — disse. — Bom, tens sorte, porque isso livra-te de apanhares a maior sova que terias levado em toda a tua vida. — Você crê que...?
— Se creio? Tenho a certeza absoluta. Mas havemos de nos encontrar outra vez e espero ter ocasião de te partir a cabeça.
— Lembro-lhe que quem se dispõe, a dar, arrisca-se a receber.
Patt ia replicar, mas uma voz doce de mulher soou atrás deles:
— Que se passa, Hards? (') — perguntou. — Porque não prosseguimos a marcha?
( 1 ) Duro.
Chester e Patt voltaram-se e ficaram como que estupeficados, olhando a jovem que havia falado.
Era uma linda rapariga de grandes olhos azuis e cabelo loiro como os trigais do Texas, que os olhava com curiosidade.
— Oh! Menina June! — respondeu o gigante. — Estava agradecendo a estes homens. A sua intervenção obrigou a fugir esses bandidos.
A jovem sorriu a Chester de maneira que faria atordoar qualquer.
— Obrigada, senhores — disse ela. — Muito obrigada pelo vosso auxílio.
— Não há de quê, menina — respondeu Chester, tirando o chapéu. — Porque os atacaram?
— Não... não... sei. — E logo acrescentou precipitadamente: — Suponho que pretendiam roubar-nos. Repito-lhe os meus agradecimentos. — E dirigindo-se ao barbudo: -- E agora, Hards creio que não há nenhuma razão que nos impeça de prosseguirmos o nosso caminho.
Dito isto, desapareceu no interior do carro. Hards içou-se novamente à boleia do primeiro carro, incitou os cavalos, e pouco depois a caravana perdia-se atrás de uma lomba, enquanto as caras de Chester e Patt refletiam o maior assombro que jamais se viu no Texas em rostos humanos.
— Ainda que ele tenha a cara tão dura como o seu nome indica, hei-de partir-lha um dia —murmurou Patt.

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