O relincho de um cavalo despertou Dixie, obrigando-a a erguer o olhar, sobressaltada. O dia era já bastante claro, ainda que faltasse muito para nascer o Sol. A fogueira começava a apagar-se e o texano, de cócoras junto dela, tentava reacendê-la. Adivinhou o seu movimento e olhou para ela, cumprimentando-a alegremente:
— Olá, Dixie! Dormiste bem?
Apoiando-se num cotovelo, Dixie contemplou-o com interesse. À tosca claridade do dia, certificou-se da sua impressão do dia anterior. Era um homem bastante simpático e que não devia ter ainda trinta anos. Por seu lado, ele olhava-a com tanta firmeza, que com um gesto instintivo levou uma mão ao peito, baixando-a rapidamente ao compreender o significado da mesma, deitando-se de novo, enquanto respondia:
— Muito bem, obrigado, A seguir aproveitou um momento em que ele estava de costas para pegar na jaqueta e vesti-la.
— Não é preciso que tomes tantas precauções. Já sei que és uma rapariga.
Ficou sem alento, rígida e pronta a defender-se. Nelson voltou-se rapidamente e sorriu, sem fazer menção de se aproximar.
— Que disse?
— Que és uma rapariga. E não tens de ter medo de mim. Não sou negro nem índio, Dixie Winters.
— Como?... Como o descobriu?
— Notei-o ontem à noite. As tuas faces são demasiado suaves, os teus lábios demasiado rubros e o teu cabelo demasiado fino. Tão-pouco as tuas mãos são varonis, ainda que estejam um pouco calosas. E, nunca vi um rapaz tão bonito...
Falava pausadamente. E, sem o poder evitar, Dixie corou até à raiz dos cabelos. Enfureceu-se por aquela manifestação de fraqueza feminina; tirou a manta, pôs-se de joelhos, perguntando, receosa:
— E, que pensa fazer agora? Advirto-o que lhe darei um tiro...
— Guarda os teus rancores para quem te ofender. Já te disse que nada tens a recear de mim.
— Você é um homem. E todos os homens são iguais.
— Nem todos. Partilho da tua desconfiança e acho-a lógica. Vou-te fazer uma proposta. Agora vamos comer. A seguir, podes escolher entre seguires sozinha o teu caminho ou acompanhar-me a Dodge City. E asseguro-te que, sem muita dificuldade, encontrarás tipos muito mais perigosos do que eu... para uma rapariga tão bonita como tu.
De novo ela voltou a corar.
— Tem muito à mão as frases galantes — acrescentou.
Ele estendeu o seu sorriso.
—É porque tu as mereces. Anda, calça-te e vem tomar o café. Entretanto, podes empunhar o teu revólver e apontar-mo ao peito. Quando voltou a sua atenção para o almoço, virando-lhe as costas, decidiu, visto que já estava descoberta, que o melhor seria correr o risco...
Quando se aproximou da fogueira, o toucinho frito exalava um agradável aroma que lhe provocou um apetite devorador. Nelson olhou-a de soslaio e continuou a dar voltas ao toucinho na frigideira.
— Ainda resta um pouco de farinha. Se quiseres podes fazer umas tortas — foi a única coisa que disse.
E, sem ripostar, ela obedeceu. Comeram em silêncio, olhando-se furtivamente. Dixie não lhe dava confiança, ainda que o atrativo de Nelson a dominasse cada vez mais. E ele nada fez para entabular a conversação, limitando-se a pô-la nervosa com o seu olhar...
Enquanto ela limpava a loiça, ele foi selar, os animais. E quando ambas as tarefas estavam terminadas, ficaram olhando-se de frente.
— Bom, tu dirás...
—Conformo-me. Acompanhá-lo-ei...
— Obrigado.
— Mas não tenha ilusões. Vou estar muito alerta... Com um movimento veloz, levou a dextra à sua anca, extraiu o revólver e fez fogo com ele contra uma pedra pequena situada a umas quinze jardas de distância.
A pedra saltou e partiu-se ao ser alcançada pelo projétil.
— Como vê, sei defender-me.
Ele não se movera. Assentiu com um sorriso, pensativo.
— Eu vejo... Mas parece-me que nunca disparará contra mim. A caminho, amazona.
Virou-lhe as costas. Quando o fez, já Dixie estava montada no cavalo e, pegando nas rédeas, que tinham sido de seu pai, começara a andar. Cavalgaram durante todo o dia, sem qualquer outra paragem de que duas escassas horas a meio do dia, para comer um pouco. Nessa altura, Dixie deixou-se levar pela curiosidade e fez-lhe uma pergunta:
— Porque vai a Dodge, senhor Nelson? Vai tocar guitarra?
— Um pouco. Vou também visitar uma tumba e matar um homem.
— Ah!...
Não quis fazer mais perguntas. Era uma rapariga do Oeste e sabia por experiência que era melhor não fazer certas perguntas. Por seu lado, Nelson tão-pouco se expandiu. E o que fizeram durante boa parte do caminho foi atenuá-lo, tocando e cantando. Dixie escutava-o, tratando de não exteriorizar o seu entusiasmo. Nunca tinha ouvido ninguém cantar com uma voz tão melodiosa. A dada altura, ele perguntou:
— Não conheces nenhuma canção?
— Muito poucas. E tenho uma voz péssima.
— Não penso o mesmo. Porque não experimentamos cantar em coro?
— Não tenho vontade. O meu pai morreu há apenas quatro dias.
— Tens razão. Desculpa. Sou um solene idiota.
Meia milha mais adiante, foi ela quem rompeu o silêncio:
— Se quiser tocar «Little Johnnie», não me importarei de o acompanhar...
Por resposta, ele enviou-lhe um sorriso quente, pegou na guitarra e começou. Ao princípio, Dixie custou-lhe a cantar. Mas, pouco a pouco, achou mais fácil e terminou fazendo coro a plenos pulmões. Quando se cansaram de cantar, ele olhou-a e disse:
— Tu e eu ganharíamos dinheiro se nos dedicássemos a cantar num teatro, Dixie.
— Não diga loucuras, está bem?
—Não as estou a dizer. Tens uma bonita voz.
— Agora está a fazer pouco de mim. Não lho admito, ouviu?
—Não assanhes as unhas, gatita selvagem...
— Porque me chamas isso?
— Porque me causas essa impressão. A de uma formosa e assanhada gata selvagem, muito pouco acostumada a encontrar-se com homens que se comportem com ela de maneira decente.
— Você o diz. Nunca encontrei nenhum de que não tivesse de me resguardar.
— Mau princípio esse. E o pior é que não é muito acertado se continuas a seguir sozinha o teu caminho.
— Está à espera que me deite nos seus braços pedindo-lhe proteção a troco do... meu amor? Engana-se redondamente. Não sou dessas.
—Já o sei. E se não fosses tão perspicaz, não te terias adiantado às minhas palavras. É possível que o amor te faça ser assim. És suficientemente bonita e atraente para me interessares. Mas a fazê-lo, e afasta a mão do revólver, será como a lei manda.
— Quer dizer... que me pediria para casar consigo?
— Ora, vejo que pensas como todas as outras... Pois sim, se o fizesse, seria dessa maneira. Nunca me considerei um homem capaz de valer-me da orfandade de uma jovem e da sua solidão para divertir-me à sua custa, Dixie Winters.
Ela sentiu repentinamente remorsos pela sua conduta.
— Bom, não quis dizer que o fosse... E, será muito melhor que falemos de outro assunto.
— De que assunto?
— Pois... de Dodge. Como é?
— Se não o sabes, eu não posso dizer-to. Nunca ali estive.
— Sim. Tenho ouvido dizer que é um lugar bastante mau, assim como Abilene.
— Parece que sim. Conheces Abilene?
— Vivi ali. O meu pai tinha uma taberna. E era uma cidade cheia de gente pouco recomendável.
— Pois não creio que Dodge seja muito melhor.
A conversa esmoreceu e terminou por inteiro. Não voltaram a falar até à hora de acampar. Fizeram-no junto de um pequeno arroio que se dirigia para o norte. E Nelson expressou a sua crença de que se encontravam já perto de Dodge.
— Não cheguei nunca tão longe até ao Oeste —contestou Dixie —. Mas estou de acordo consigo.
Agora sentia-se envergonhada diante de Nelson. E, por isso, se mostrou mais insociável do que na noite anterior. Ele, por seu lado, pareceu tomá-la com muita calma e não fez grande esforço para a tirar daquele mutismo. Dixie, mulher por fim, irritou-se com aquela indiferença e prometeu não lhe dirigir palavra durante o serão. Por isso, a ceia decorreu muito silenciosa. À hora de deitar-se, ele dispôs-se a preparar-lhe a cama, sem fazer caso dos seus protestos.
— Que faz você? Deixe aí as minhas coisas! Não preciso de ajudas para me fazerem a cama.
— Já sei. Mas quero ajeitar isto melhor. Aí ficarás mais resguardada do vento.
— Já disse para deixar as minhas coisas!
— Não grites. Não gosto disso. E tens de fazer. Limpa os pratos enquanto te preparo a cama.
Dixie estava demasiado irritada para dar o braço a torcer. Saltou e pôs-se em pé, cortando-lhe o passo. Sem deixar de sorrir, Nelson estendeu a mão que estava livre e tratou de a afastar. Felina, veloz, Dixie sacou da espingarda e mandou um golpe...
Uma mão forte como o aço apertou o seu pulso, imobilizando-a. A espingarda caiu no chão. Dixie tratou então de sacar o seu revólver, e a outra mão de Nelson impediu-a de o fazer. Lutaram um minuto em silêncio, a rapariga com os olhos cintilantes, as faces vermelhas e a boca entreaberta; ele, com um sorriso frio cortante...
Não se pôde soltar. E, apesar de todos os esforços, viu-se imobilizada, de costas contra o corpo de Nelson, que a sujeitava de maneira implacável.
— Agora fica quieta ou ensino-te de verdade.
— Largue-me! Tenho de o matar...
Olharam-se nos olhos. E ela retorceu-se, sem conseguir outra coisa senão uma mais firme e dolorosa pressão nos seus pulsos.
— Poderia beijar-te sem qualquer esforço...
— Se se atreve...!
— Mas não penso fazê-lo. Nem sequer tocar num pedaço de roupa, gata arisca. Irei preparar-te a cama. E tu lavarás esses pratos. Com um empurrão atirou-a a dois passos de distância.
— Já estás livre. Podes cravar-me a faca ou disparar nas minhas costas, se quiseres. Mas não to aconselho.
Inclinou-se despreocupadamente apanhando a espingarda e reparou como ele fazia o pequeno leito. Rastejando, ainda sob os efeitos da luta, Dixie teve vontade de o matar... Mas não o fez. Dando meia-volta, guardou a espingarda, pegou na loiça suja e encaminhou-se para a margem do rio, esfregando-a com tanta fúria como se cada peça de loiça fosse o pescoço de Rich Nelson. Ele estava junto da fogueira a fumar, quando ela chegou. E sorria.
— Assim está melhor. Faltam-te ainda umas tantas coisas para seres uma rapariga magnífica, Dixie. Terás de aprendê-las se quiseres encontrar marido.
Ela respondeu-lhe com uma expressão de enfado, atirou a loiça para o chão e dirigiu-se para onde estava a cama; sentou-se depois de se descalçar e meteu-se debaixo da manta sem sequer lhe dar as boas-noites.
Sem se mostrar ofendido, Nelson pegou na guitarra e começou a tocar uma canção do Rio Grande do Sul. A seguir cantou em espanhol. Era uma linda balada, ainda que Dixie não pudesse compreender as palavras.
Mas a música entrou-lhe pouco a pouco no peito, afogando-lhe a amargura da sua humilhação e também a tristeza. Mais tarde, enquanto ele entoava a triste balada do «cow-boy» solitário a quem os índios mataram a sua noiva, as lágrimas brotaram dos olhos de Dixie. E, pela primeira vez na sua vida, chorou como uma mulher por causa de um homem.
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