Dixie Winters era uma missuriana de pura cepa. Com isto está tudo dito. O seu irmão mais velho tinha morrido em combate com as tropas de Longstreet e o seu pai e irmão mais novo lutaram também, enquanto ela — naquele tempo uma menina de poucos anos — ajudava a sua mãe e a sua irmã mais velha, na herdade.
A seguir, com o triunfo dos nortistas, as coisas puseram-se mal para muita gente do Missouri, e entre essa gente estavam os Winters.
Viram-se forçados a emigrar assim que, o jovem Dan deu um tiro a certo indivíduo bem considerado pelos vencedores, e, acto contínuo, escapou para juntar-se à banda dos Younger.
A própria Dixie, com escassos onze anos, teve certo dia de ser testemunha da brutalidade vergonhosa de uns homens que desonraram o seu uniforme ofendendo a sua irmã mais velha. Oito dias mais tarde, o seu pai e o seu irmão, emboscados juntamente com uns amigos, deram a morte a dois daqueles homens, capturaram ferido um terceiro e penduraram-no no ramo de uma árvore. Depois daquilo só lhes restava um caminho: a densa espessura das terras semisselvagens do noroeste do Missouri, refúgio de tantos e tantos sulistas fugitivos...
Aos dezoito anos, Dixie já sabia quase tudo o que a vida pode ensinar de mau a uma rapariga. Talvez por isso se tornou arisca e agressiva como uma gata selvagem.
Durante algum tempo, ela e a sua família habitaram uma choça situada junto ao rio Neosho, em pleno território índio. Foi uma época dura e difícil. A sua irmã casou-se e foi com o marido para as montanhas do Colorado. A sua mãe ficou ali, à beira do rio, morta ainda jovem, por tantas fadigas e tantos sofrimentos. O seu irmão Dan tinha abandonado os Younger e cavalgava pela Senda de Santa Fé, levando uma existência bastante irregular...
A sua permanência nas margens do Neosho durou cinco anos, até que o seu pai pensou que já estavam suficientemente esquecidos os factos que o forçaram a fugir de Missouri. Nessa altura, Dixie ainda tinha dezasseis anos. As Cinco Tribos tinham firmado em Medicine Bow um pacto com o Governo, e Chisholm conduzia até ao Norte o seu gado num intento temerário que abriria uma época.
Morgan Winters estabeleceu-se em Abilene com sua filha e abriu uma taberna. Dan Winters apareceu por ali. E, graças a ambos, e à própria Dixie que sabia manejar a faca e o revólver como o melhor, a rapariga não teve de lamentar nenhum sério percalço.
Um dia, Morgan Winters tropeçou na rua com alguém que não o via com bons olhos. Foi denunciado pelos factos do Missouri, detido e enviado para Este. Pelo caminho, o seu filho e uns amigos assaltaram o trem e libertaram-no, após uma violenta batalha de tiros.
Dan Winters chegou moribundo, com duas balas no corpo, à taberna, e ali morreu. Uma vez mais, o Destino obrigou Dixie e seu pai a abandonar tudo e a viver como as feras, nas terras selvagens. Finalmente, Morgan Winters foi atropelado por uns búfalos que pretendia matar. E, aos dezoito anos, Dixie ficou só no mundo, só, no meio da pradaria, sem qualquer fortuna que umas armas, umas peles, uns dólares e a sua indomável vontade.
Outra rapariga qualquer teria morrido na pradaria. Dixie sobreviveu porque a adversidade a tinha feito de aço. Enterrou o que ficava de seu pai, engoliu as últimas lágrimas, fez um embrulho com os seus pobres haveres e, montando no cavalo, encaminhou-se para o caminho de ferro. Não tinha uma pequena ideia do que poderia fazer nem para onde ir. De sua irmã já nada sabia há cinco anos. Os outros... sabia muito bem a que ater-se sobre eles, não tendo por isso qualquer espécie de ilusões.
Já era tarde e o sol começava a declinar. Dixie estava ocupada a apanhar lenha para fazer a sua ceia a curta distância onde tinha os cavalos presos. A certa altura, quando se ergueu, viu aparecer um cavaleiro por entre duas colinas, cerca de uma milha de distância. E antes de transcorrerem os cinco minutos, soube que o outro tinha avistado os cavalos.
Ora bem, se um encontro na pradaria sempre era perigoso, tratando-se de uma rapariga resultava ainda muito mais. Dixie estava acostumada a enfrentar situações difíceis e a vida tinha-lhe ensinado muitos truques. De maneira que não se atemorizou.
Regressando apressadamente para junto dos cavalos, levantou o abundante cabelo castanho de maneira a ficar completamente escondido sobre o crânio e cobriu-o com o chapéu que fora de seu pai. Ficava-lhe ainda um pouco grande, mas tapava-a eficazmente.
A seguir pegou na jaqueta de pele de gamo e vestiu-a sobre a camisa varonil, ocultando assim as suas formas notavelmente femininas. Levava umas calças compridas, de pele, cosidas à maneira dos índios, e calçava botas de couro, com esporas. Como era alta e esbelta, e tinha o rosto queimado e as mãos calosas, embora compridas e delgadas, podia muito bem passar por um rapaz imberbe. A sua voz, de tom grave e quente, tinha aprendido a mudá-la para um tom quase viril. Em último lugar, cingiu à sua cintura a cartucheira do pai e nela pendurou uma espingarda de caça, pendendo do outro lado um «Colt» calibre 38...
Pegando na espingarda, engatilhou-a e escondeu-se atrás de uma rocha, esperando a chegada do desconhecido. Já se encontrava a umas duzentas jardas de distância e vinha sem pressa.
Viu-o levantar a mão em sinal de paz, mas nem assim deixou o seu posto. Quando ele estava mais perto viu que levava uma guitarra atrás das costas e que montava um baio. O cavaleiro deteve-se a vinte jardas e falou com o vagaroso acento dos texanos:
— Bom, amigo, eu sou homem de paz. Mas se a minha presença o incomoda posso continuar o meu caminho e acampar noutro sítio. Sobra sítio para os dois...
Uma das coisas que Dixie tinha aprendido era a calibrar as vozes humanas. Pensou que na pradaria mais valia estar só do que mal acompanhada. A voz do desconhecido, assim como o seu aspeto, agradaram-lhe. E, por fim, sentindo-se mulher, isso venceu-a.
— Aproxime-se e ponha pé em terra — disse com aspereza. — Não me agrada ter companhia, mas já que aqui se encontra, pode ficar.
A luz do crepúsculo não lhe permitiu adivinhar, embora não afastasse dele o olhar, o ligeiro gesto de surpresa que se notou nas pupilas do homem. Este avançou, desmontou e falou cordialmente, enquanto estendia a sua mão e a olhava fixamente:
—Chamo-me Rich Nelson e venho do Texas. Oh, mas ainda é tão jovem!... Por acaso perdeste-te por aqui?
A sua jovialidade e o seu quente aperto de mão tranquilizaram Dixie. Mas o seu olhar inquietou-a de um modo estranho. A verdade é que nunca se lembrava de ter visto um homem tão atraente como aquele, embora tivesse a barba por fazer de várias semanas.
— O meu nome é Dixie Winters e sou de Missouri — respondeu —. Mas, não me perdi. Caçava búfalos com o meu pai. Há três dias foi apanhado por um rebanho. Agora encaminho-me para o caminho de ferro.
Rich Nelson olhava-a atentamente. Tinha-se posto sério.
— Lamento-o muito, Dixie — disse.
E o modo como o disse acalmou algo no coração da rapariga, que estava a ponto de atraiçoar-se.
— Obrigado — disse, desviando o olhar —. Bom, pode deixar ficar aí as suas coisas. Eu estava a apanhar lenha para fazer uma fogueira. Se traz alguma coisa de comer, seja bem-vindo. Só tenho feijões e carne seca.
— Resta-me um pouco de café e também um pouco de açúcar. Parece-me que nos arranjaremos.
Deu a volta e foi tirar a sela ao seu cavalo, prendendo-o junto dos animais de Dixie, que o seguia com o olhar enquanto trabalhava. Era algo estranho, o facto de aquele texano não lhe produzir qualquer espécie de receio. Claro que ele julgava-a um rapaz...
Nelson cooperou na procura da lenha. Ajudou-a a acender o lume e a preparar a ceia. Tinha-se levantado uma aragem bastante fresca, que justificava o motivo por que Dixie tinha a jaqueta vestida, alegrando-a esse facto.
Comeram em silêncio. A rapariga lançava olhares furtivos ao texano de vez em quando. Só algumas vezes o viu contemplando-a com uma expressão que não pôde decifrar. E aquilo, mais do que as suas próprias e inesperadas emoções, a pôs nervosa. Com as xícaras do aromático café na mão e com as golas das jaquetas subidas, Nelson rompeu o silêncio que já durava há mais de meia hora.
— De modo que ficaste sozinho na pradaria... Pouca sorte. Tens família?
—Uma irmã em Colorado. Irei para lá.
— Ah, sim. Sempre é bom ter um irmão. Eu também tenho um...
— Eu tive três. Um morreu na guerra. O outro morreu há pouco mais de dois anos.
— Mas que pouca sorte essa... Bom, parece-me que me deverias acompanhar, rapaz.
Dixie pôs-se em guarda.
— Continuo o meu caminho, Nelson.
— Sim. Estás cheio de desconfiança, já o notei. Mas descansa que por mim não te acontece nenhum mal. Vou a Dodge City. Já ouviste falar desse povoado?
— Sim. Fica a umas oitenta ou cem milhas daqui, para o noroeste.
— Obrigado pela informação. Como dizia, vou para aí. E se vieres comigo evitas um montão de preocupações. Creio que deverias pensar nisso esta noite, Dixie.
— Vou pensar.
Por momentos, calaram-se. Nelson acabou de beber o café e pegou na guitarra.
— Incomodo-te se tocar um pouco, Dixie?
— Claro que não. Faz o que te apetecer.
Os dedos de Nelson começaram a dedilhar as cordas. Dixie já tinha ouvido em qualquer lado aquela música. Perguntou:
— Como se chama essa música?
— «Funny Susie». Gostas?
—É bonita.
Então ele elevou a sua voz bem timbrada:
There was a little girl
And she lived with his mother,
All the devils out of Hell
Couldn't scare up another...
O vento acompanhava o ritmo da canção. E também os cães da pradaria uivavam nas colinas mais próximas.
Dixie enrolou-se na sua manta e ficou a olhar o atraente rosto do texano, deixando que pouco a pouco a invadisse a embriaguez da música e da voz.
Não se apercebeu de que, debaixo da aparência abstraída, ele não deixara de contemplar o seu formoso e delgado rosto, e que a chama trepidante e débil da pequena fogueira atraiçoava o seu sexo com tanta evidência como a sua absoluta orfandade. A orfandade de uma rapariga que não conhecia há muitos anos o calor de um verdadeiro lar, e há bastantes anos, desde que perdera a sua mãe...
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