sábado, 9 de março de 2019

COL024.01 O jogador do rio

Westport rivalizava já com Saint Louis em prosperidade e desenvolvimento. Dum simples porto junto ao grande rio, onde acampavam caçadores e comerciantes à sombra de um forte militar, tinha-se convertido num empório de riqueza.
Saint Louis conservava o prestígio de ser uma velha aldeia francesa situada junto do Mississípi, mas cedo deveria reconhecer que Westport a superaria.
Muitas caravanas que se dirigiam à Califórnia, aos campos mineiros de Nevada ou de Montana e às cidades do Sudoeste, como Santa Fé, iniciavam ali o seu percurso. Os comércios floresciam por todos os lados, e com eles os artesãos e os granjeiros que podiam proporcionar tudo aquilo que aqueles desejavam.
Mas também com os cidadãos honrados chegaram os jogadores, as bailarinas e os negociantes menos honestos.
Nas ruas apareceram as tabernas, saloons, teatros de má fama e casas de pasto, assim como cantinas que atraíam a bizarra e multicor população nómada de Westport.
Viam-se marinheiros do rio com os seus bonés e suas tatuagens, sempre dispostos a dirimir as suas questões com a faca. Os navegadores crioulos ostentavam os seus bonés vermelhos que os distinguiam do resto, e que eles consideravam como um selo de superioridade. Também apareciam por lá trampeiros de expressão adusta, com roupas de cabedal e longas barbas, assim como cavaleiros das planícies, cujo segredo ninguém conhecia, carroceiros hercúleos e ruidosos, colonos sóbrios e seguros de si mesmo, emigrantes de olhar febril por causa do afã que os impulsionava a caminharem em direção ao Oeste, exploradores de expressão decidida e um tanto irónica, soldados rudes, e índios que vestiam uma estranha mistura de roupas selváticas e atavios de homem branco.


Além disso viam-se também jogadores profissionais de apertadas levistas e ar desdenhosos, mas sempre dispostos a pegar no revólver.
Westport ria alegremente perante a sua própria prosperidade e não prestava atenção ao perigo da guerra que entre o Sul e o Norte se estava a preparar. Ali mesmo, em Kansas, ia-se produzir um dos ataques que dirigiria um fanático chamado John Brown.
Mas isto não parecia preocupar ninguém daqueles que nessa altura habitavam Westport. O único que os preocupava era a sua própria riqueza e só fixavam os seus olhos no Oeste.
A rapariga, pálida, quase menina, de olhos febris e enfraquecida pela fome, contemplava aquele bizarro conjunto com incredulidade e temor.
Vestia pobremente, mas com cores berrantes e uma pretensão que não ligava bem com a sua aparente pobreza. Tinha o cabelo loiro, muito suave e longo. Os seus olhos eram talvez a coisa mais surpreendente e o único atrativo da sua pessoa.
Embora os rasgos das suas feições fossem puros e delicados, estava demasiadamente enfraquecida para ser bonita. Mas os seus olhos verdes eram extraordinários. Grandes, rasgados, sombreados por longas pestanas, teriam destacado em qualquer lugar do mundo.
O homem que caminhava a seu lado, ia sujo e a sua expressão era embrutecida denotando o seu rosto o desejo de álcool. Vestia uma levita cheia de nódoas e desfiada nas mangas. Não se tinha barbeado nos últimos dias, e o cabelo branco parecia com um ar totalmente descuidado. P9rém, sorria alegremente.
—Tio Ned —disse a rapariga de repente, com uma voz suave e surpreendentemente musical—, que vamos nós fazer agora?
—Não te apoquentes, Belinda —respondeu ele, sorrindo. — Ou não te lembras que sempre soubemos sair destas situações?
— Sim, mas desta vez despediram-no do «show boato 1 em que íamos, e não temos dinheiro nem meios para ir a nenhum lado.
—E que necessidade temos nós de nos trasladarmos a outro lado, Belinda? — perguntou o tio Ned. Gosto de Westport. Acho que há muitas possibilidades para um homem como eu nesta cidade. Hão-de precisar de artistas, visto que têm locais, e sempre haverá gente disposta a gastar o seu dinheiro para se rir com as minhas exibições.
1 «Show boat»: nome que davam aos teatros flutuantes que percorriam o Mississípi e o Missouri, dando representações em cada porto.
Belinda dirigiu-lhe um olhar de pena.
— Achas que gostarão de nós? De todos os sítios em que estivemos despediram-nos, tio Ned.
O outro fez oscilar a cabeça, com ar de superioridade.
—Belinda: embora cantes e dances bem, não tens além de catorze anos, e eu, tio Ned, há mais de vinte que estou na profissão... Não vais discutir aquilo que eu sei. —Sorriu, continuando: — Vais ver o que vamos fazer. Procuraremos um local onde possamos recolher uns dólares e depois iremos comer e buscar um hotel. Logo que nos vejam atuar entusiasmar-se-ão.
— Acreditas que isso é o que vai acontecer?
— Com certeza. Olha — continuou —, eis aqui um local no qual será difícil que nos deixem atuar. Vem comigo.
Abria-se perante eles um saloon próximo do porto, de amplas janelas, um grande mostrador, um enorme lustre de prismas pendurado no tecto, e um estrado para que atuassem os artistas.
Um público heterogéneo encontrava-se ali reunido. Alguns eram marinheiros, outros colonos ou caçadores, e muitos carroceiros e cavaleiros da estepe. Todos gritavam aquilo que diziam e fumavam ou riam alegremente. A atmosfera estava viciada pelo fumo do tabaco, e penetrante cheiro do álcool e de corpos suados, e o cheiro de comida.
Belinda dirigiu um olhar assustado por aquilo que contemplava. Todos aqueles homens pareciam violentos e agressivos, e nenhum deles parecia preocupar-se com eles o mínimo que fosse. Tio Ned sorriu-se para ela para tranquilizá-la enquanto se aproximava dum dos criados.
— Onde é que está o dono?
O criado apontou para um homem corpulento e feições duras que passeava pelo local, com os polegares presos no colete e um charuto entre os dentes.
— Desculpe — disse-lhe Ned, parando perante ele —, pode conceder-me uns minutos?
O outro tirou o charuto da boca e perguntou:
— Que deseja?
Ned aspirou fundo e explicou:
— A minha sobrinha Belinda e eu somos artistas. Por vinte dólares estamos dispostos a atuar aqui mesmo.
O proprietário examinou-o com frieza e depois contemplou a rapariga.
— O que é que ela faz?
—Canta e dança.
O outro apontou-lhe com o charuto.
— Não lhes darei dinheiro, mas se conseguirem que os meus clientes se divirtam dar-lhes-ei comida de borla. Está de acordo?
Ned concordou, e enquanto o proprietário falava com o pianista, ele aproximou-se de Belinda.
—Temos de atuar. Dar-nos-ão boa comida. E depois, depois do nosso sucesso, seguramente contratar-nos-ão noutros lugares.
Belinda subiu para o palco junto com o seu tio. Enquanto o pianista lhes perguntava:
— Que vão fazer?
Naquele momento abriu-se a porta para deixar entrar um rapaz duns vinte e um anos, esbelto e flexível. de ombros largos. Os seus movimentos eram repousados. Vestia uma levita cor de café com leite e calçava botas de montar. Cobria-se com um amplo chapéu de feltro que tapava os seus negros cabelos. Advertia-se que debaixo da elegante roupa levava uma pistola. Tinha o semblante queimado pelo sol e sob o negro bigode brilhavam os seus brancos dentes num desdenhoso sorriso de superioridade.
Belinda contemplou-o admirada. Era elegante, bem proporcionado e belo, porém advertia-se que não era só um homem de boa presença. Havia nele qualquer coisa que indicava decisão e firmeza.
Avançou decididamente em direção ao mostrador, sem exigir que os outros se apartassem para lhe deixar espaço, mas conseguiu-o.
O pianista começou a interpretar uma velha melodia negra, enquanto o desconhecido ria e falava com uma das empregadas que se tinha aproximado dele.
Ned fez um aceno para a rapariga, que avançou até a ribalta e começou a cantar. Ninguém lhe prestava atenção e todas as conversações continuavam.
Belinda sentia uma grande inquietude, e pouco a pouco ia perdendo a decisão. De repente, o desconhecido levantou a cabeça, contemplando-a com interesse. Depois deixando cair o punho sobre a mesa gritou em tom autoritário:
— Deixem-me ouvir.
Todos se calaram surpreendidos, e então o jovem dirigiu uma inclinação de cabeça em direção à rapariga. Esta continuou a sua canção, muito mais animada, sentindo uma estranha satisfação ante o sorriso daquele desconhecido.
O público tinha-se calado e escutavam todos pela sua vez, curiosos e interessados. Ao concluir Belinda, aplaudiram com entusiasmo. Então avançou Ned até à ribalta e iniciou uma canção enquanto os seus pés iniciavam uma estranha dança.
O público começou a rir, mas Belinda reparou que não se divertiam, mas que estavam a troçar do seu acompanhante.
Naquele momento abriu-se a porta da rua para dar passo a um homem corpulento, de expressão agressiva, cujo revólver aparecia muito baixo, e cujas esporas tiniam quando ele andava.
— Onde é que o recolheram? — perguntou uma voz. — Que volte para onde estava. Aborrece-nos.
—Sim, fora com esse velho ridículo —gritou outro. — Que torne a cantar a garota.
O recém-chegado sorria por sua vez, mas não havia alegria naquela expressão feroz e cruel. Ned, porém, conseguiu findar a sua interpretação e inclinou-se, embora os aplausos não fossem numerosos. Belinda, porém, foi bastante ovacionada quando saiu a cumprimentar. Desceram do palco e o proprietário disse:
— Ganharam a comida. Venham comigo.
Enquanto o seguiam muito satisfeitos, Belinda pôde reparar que o recém-chegado os contemplava com a mesma expressão agressiva e cruel. Entretanto, o elegante jovem tornava a prestar toda a sua atenção à empregada da casa.
Sentaram-se numa mesa um pouco isolada e sorriam à espera que chegasse a comida que tanto precisavam. Teriam preferido que lhes permitissem ficar na cozinha, onde ninguém reparava neles, embora o importante fosse aquilo que iam comer.

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