terça-feira, 29 de janeiro de 2019

CLT018.13 Um homem vai-se embora

No alpendre da fazenda Howland, onde Rush convalescia do seu ferimento, as sombras da tarde iam estendendo-se cada vez mais, enquanto o disco avermelhado do sol se escondia lentamente atrás da linha do horizonte, dando uma cor rosada às leves nuvens que sulcavam o azul do firmamento.
Doris, com os olhos fixos nos reflexos sangrentos daquele crepúsculo, não se voltou para olhar para Rush. Continuou com o rosto voltado para o Oeste.
— Então... é inevitável?
Rush concordou
— É.
— Hoje?
— Esta noite.
— E porquê, Rush?
— Porque temos todos um caminho marcado na vida, e é um erro afastarmo-nos dele. Este é o meu, Doris.
— É por ela... por Jeannine?
— Não sejas tonta. Sabes muito bem que não. Jeannine é uma boa companheira no meu caminho.
— E eu não podia sê-lo?
Rush aproximou-se, ainda a coxear levemente, apoiado numa bengala.


segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

CLT018.12 A sangue e fogo

O silêncio era denso, mortal. Viu-se o rosto de Benson perder a cor. Lashwell, de pé junto ao surpreendido Larry Donlan, mordeu os lábios de ira, enquanto os seus olhos bailavam inquietos nas suas órbitas.
Rocky, Burton e Trenton, os comissários de Riverwood, baixaram as suas armas sem vacilar. Eles, antes de tudo respeitavam a Lei, e naquele momento, por estranho que parecesse, chegara uma Lei superior à cidade... ainda que fosse acompanhada pelo fugitivo Rush Marlowe.
O juiz Benson apontou com frenesim o sorridente Rush.
— Esse homem é um fugitivo da justiça! — exclamou. — Exijo a sua imediata entrega, juiz Ma-thews!
Matthews olhou para Marlowe. Este fez avançar o seu cavalo com dramática lentidão, até chegar junto ao estrado. Regozijava-se ao ver a cor cadavérica de Benson e Lashwell. Ao chegar em frente deles, a sua voz dura e vibrante soou em toda a rua:
—Terminou a farsa, juiz Benson! Mathews recebeu ontem um telegrama de Fox, pelo menos aparentemente, com a sua assinatura, dizendo que já não era necessário a sua presença aqui. Isso era o que vocês queriam. Julgar-nos conforme os vossos planos e enforcar quatro pessoas que sabiam demasiado. Bonita aliança a sua! Lou Lashwell e o juiz Benson, futuros proprietários de toda a zona algodoeira de Riverwood. Assassinado Matt Howland, eliminados os Milligan, tudo seria facilmente vosso. Bastava casar-se com Doris, ou comprar-lhe as terras por baixo preço ou eliminá-la também. Umas possessões que separavam incluso as de Larry Donlan. Que magnífico plano se eu não viesse estragá-lo!

domingo, 27 de janeiro de 2019

CLT018.11 No último segundo

—Parece conhecer muito bem estas terras, Rush. Esteve aqui mais vezes?
—Estive. Mas há muito tempo. Não obstante, eu sempre conheci muito bem as margens do velho rio. Nasci junto dele.
— Aqui?
—Não. Em Louisiana. Os meus pais moravam no bairro francês de Nova Orleãs e ali vi a luz do dia. Depois cresci entre pântanos e arrozais, quando compraram umas plantações próximas de Lake Charles, banhado pelas águas do Calcasieu. Poderia contar-lhe muitas coisas da minha vida, mas não merece a pena. É a história de sempre. Podia ter sido um bom rapaz e não fui. Demasiado vulgar.
— Uma vida como a sua não pode ser vulgar, Rush.
Estavam olhando o céu azul, estendidos sobre a relva, com os olhos cravados no firmamento que a espessa ramagem deixava ver. A sua volta, fora do bosque, pressentia-se o calor sufocante àquela hora. O sol, a pino, queimava, implacavelmente, a terra amarelecida. Rush voltou a olhá-la.
—Está noiva de Jess Milligan?

sábado, 26 de janeiro de 2019

CLT018.10 Os assassinos atuam

A sala do tribunal estava cheia a deitar por fora. Os comissários Trenton, Burt e Rocky, com os rifles apontados, guardavam os pontos estratégicos da vasta sala, secundados pela espontânea colaboração de dois fazendeiros: Ted Barrell e Larry Donlan, que empunhavam as suas pistolas ameaçadoramente.
Com isto queria Jonathan Fox cobrir os possíveis perigos daquele julgamento. Faltavam ainda precisamente as duas máximas autoridades de Riverwood, quando introduziram na sala, no meio de um murmúrio inquietante, os quatro presos.
Rush notou a ausência de Fox e do juiz Benson, bem assim como do magistrado Mathews de Lide Rocky, e franziu o sobrolho. Cada vez gostava menos da maneira do decorrer daquele julgamento.
Estudou as saídas do vasto recinto, zelosamente guardadas, assim como o lugar destinado ao público, que se encontrava cheio por uma multidão na expectativa e hostil. Depois olhou para a porta mais próxima guardada por Trenton, e depois levantou o olhar para a galeria, demasiado alta para poder ser alcançada. Era uma estupenda ratoeira.


sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

CLT018.09 As promessas de Jonathan Fox

Slim Milligan secou o suor do rosto e olhou colericamente para o exterior. Os reflexos do incêndio deram ao seu rosto tonalidades sangrentas.
—Malditos cães!... — rugiu, crispando os punhos sobre a espingarda que estava colocada no parapeito da janela. — Já voltaram ao seu divertimento favorito.
Doris Howland, que os ajudava a carregar os rifles, estremeceu recordando os incêndios das suas próprias terras. Rush estudou-a em silêncio do seu posto de guarda.
— Não vê nada significativo neste fogo, menina Howland? — perguntou com voz grave.
Ela concordou com a cabeça.
— Talvez — disse.
— Há um incendiário em Riverwood, não esqueça. E é difícil renunciar à sua obcecação destruidora.
—Lashwell? — opinou Jess, sem afastar os olhos de Doris.
Rush fez um gesto.
— Isso é o que parece — opinou, voltando a sua atenção para a frente do edifício, onde jaziam três cavalos sem vida.
Agora os seus corpos eram iluminados pelas chamas do voraz incêndio que estava aniquilando as possessões dos Milligan.
— Poderemos resistir muito aqui? — perguntou Harry, sombrio.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

CLT018.08 A fazenda sitiada

Os três irmãos Milligan receberam, com profundo assombro, os recém-chegados. Rush, coberto de pó, não tinha muito bom aspeto. Doris Howland, lívida, limitou-se a fixar o seu olhar neles, estremeceu quando fixou o perturbado Jess, e continuou fechada no brusco mutismo
—Por todos os diabos do inferno, Marlowe! —exclamou Slim Milligan, sem voltar a si da surpresa. —Você sabe o sarilho em que se meteu ao ter raptado esta jovem mesmo nas barbas do sheriff?
— Claro que sei — Rush, fatigado, deixou-se cair numa cadeira na ampla sala onde os proprietários da fazenda o receberam. — Mas a um homem acusado de assassínio não lhe importam outros delitos mais pequenos.
—Essa acusação é ridícula, Rush —ralhou Jess. — Iremos consigo à cidade e...
— Não seja ingénuo, Jess. Isso é o que eles queriam. Lashwell e a sua gente estavam excitando a multidão para um linchamento. Talvez a estas horas caminhem já para aqui.
— Isso é verdade? — grunhiu Harry abismado. — Esperem e já vão ver.
Harry murmurou algo inacreditável e saiu precipitadamente da sala. Rush olhou para Doris de pé e silenciosa.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

CLT018.07 À margem da Lei

Levantou-se a pouco e pouco sem o mais leve ruído. Ainda sentia fortes dores na ferida, mas já não era a dor de antes. A cabeça de Marlowe ia aparecendo aos poucos. O sheriff e Doris continuavam a falar confiada-mente.
— Graças a Lashwell vingaremos a morte de meu pai—disse ela. — Está furioso e desejando enforcar os seus assassinos.
—E você, menina Howland? — perguntou Fox com segunda intenção. — Que quer dizer?
Rush deslizou um pouco mais, sem, todavia, se levantar. A mesa protegia a sua manobra.
—Você entende-me. Entre eles está Jess.
— Jess! — a voz de Doris demonstrava ódio. —Esse comediante, fingindo bondade e amor, enquanto planeava a nossa ruína, e, mais tarde, a morte de meu pai. Desejo vê-lo pendurado no ramo mais alto, tão assombrado e indefeso como meu pai quando apanhou aquelas balas.
Rush ergueu-se totalmente com um salto felino, que sobressaltou ambos os interlocutores e fez Fox precipitar-se para a mesa. Mas chegou tarde uma fração de segundo.
A mão direita do jogador empunhava a coronha, e apoiando-se ainda na mesa, levantou o cano para eles com uma rapidez vertiginosa.
—Quietos, Fox! — ordenou secamente. —Não vacilarei em atirar nem sequer sobre uma mulher.


terça-feira, 22 de janeiro de 2019

CLT018.06 Acusação

Os quatro homens olharam-se em silêncio. Aquilo começava a adquirir forma. Rush Marlowe começou a crer na inocência dos Milligan, ou pelo menos em que, fossem o que fossem, Lashwell, ou qualquer outro, procuravam suprimi--los.
—É uma pena, rapazes—disse Rush. —Se estivesse vivo Burton, ter-nos-ia podido dizer alguma coisa interessante.
— Não devia ter-me precipitado — queixou-se Jess, arrependido. — Mas estava desejando caçar o cobarde que...
— Compreendo-o, Jess — sorriu Rush. — Agora não remedeia nada apoquentar-se. A coisa já não tem remédio.
—Que fazemos com ele?
— Deixamo-lo aí —disse secamente Slim. — Será um bom aviso para Lou Lashwell.
—Vamos para casa. Se continuamos na cidade, ainda podem complicar-se mais as coisas.
—Bom, amigos, parece-me muito prudente a ideia de Harry— interveio Rush. — E eu deixo-os. Alegro-me por ter contribuído um pouco para resolver a situação.
—Deixa-nos já, Marlowe?
—Sim, Slim. Volto para o barco. Prefiro Jeannine aos atiradores emboscados.
Riram todos e Slim estendeu a mão ao jogador.
—Até outro dia, Marlowe, e perdoe os sarilhos em que o metemos sem ter culpa nenhuma.
—Desculpado, Slim—sorriu o «Anjo», estendendo-lhe a mão.


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

CLT018.05 Emboscada noturna

Rush Marlowe conhecia muito bem Jeannine, e o seu gesto de momento não deixava margem para dúvidas.
Estava furiosa. Contemplou o corpo inerte do maltratado Lashwell, e depois cravou o seu olhar no grupo formado por ele e pelos três Milligan.
— Que sucedeu? —repetiu, cortante.
— Esse homem veio para liquidar-me, Jeannine — explicou Rush. — Arranjou uma trapaça, como se tivesse sido eu que a fizera, para matar-me impunemente. Estes jovens salvaram-me com a sua oportuna intervenção.
— Ah! Os anjinhos Milligan— o tom da mulher não perdera a sua aspereza. — Pensam passar a vida a fazer favores uns aos outros?
—Era uma dívida que tínhamos para com ele, senhora
— Menina —retificou ela glacialmente, interrompendo Slim. — Bem, menina. Era um dever nosso salvá-lo agora, não crê?
— Não tenho nada a ver com os vossos problemas e sarilhos, sempre que sejam fora do meu barco. E o mesmo te digo a ti, Rush.
—Eu não o arranjei, Jeannine. Mas se esse imundo sapo ou qualquer outro cidadão de Riverwood com ideias bélicas, tente procurar-me, encontrar-me-ão no teu barco ou onde quer que seja.

domingo, 20 de janeiro de 2019

CLT018.04 Incidentes a bordo

Rush Marlowe embaralhou, habilmente, o novo baralho de cartas. Depois colocou-o no meio da mesa.
— Parta — disse a Larry Donlan, o fazendeiro de atlética figura e cabelos brancos como a neve.
Deu cartas.
Tinha na sua frente Big Wilkes, que embora estivesse a perder muito, tinha ainda na sua frente duas pilhas de fichas de considerável quantia. Rush sorriu-lhe COM o seu ar benigno e Wilkes continuou impassível.
O quarto parceiro era o plantador Ted Barrel, que olhou as suas cartas um momento.
— Abro com dez — disse estendendo uma ficha.
Todos aceitaram. Rush deu cartas. Barrell pediu uma, Wilkes duas e Donlan outra. Rush viu as suas. Tinha três damas. Pediu duas e aguardou com o olhar fixo e impenetrável no rosto dos demais.
Barrell passou por não lhe interessar a carta pedida. Wilkes teve um sorriso de troça quando subiu para vinte a aposta. Donlan aceitou. Rush viu as suas cartas: dois noves.
Era um ful bastante fraco.
Pousou as cartas sobre a mesa, aspirou com calma o fumo do seu cigarro e deitou uma ficha de cinquenta. Sem intimidar-se Wilkes aceitou o aumento. Então Donlan falou friamente:
— Duzentos.

sábado, 19 de janeiro de 2019

CLT018.03 Suspeitas

Não pode fazer isso! — exclamou Burton, roxo de cólera. — É um assassino!
—Isso será a lei que o dirá, amigo—disse Rush, com um sorriso. — Ninguém tocará neste jovem enquanto eu aqui estiver.
Jess Milligan era o mais assombrado de todos. Olhou para o homem ferido pelo oportuno disparo do jogador, e murmurou com desprezo.
—Sempre foste um cobarde, Scott. Não sabes dar a cara como um homem.
O chamado Scott continuou a agarrar na mão que sangrava com abundância, e o seu rosto estava lívido pela dor e de ira. Rush aproximou-se do jovem Milligan sem soltar a arma.
— Vamos, rapaz. Parece que este ambiente não é muito saudável para você.
— Pagará cara esta intervenção, forasteiro—disse Big Wilkes irritado. — Os jovens de Riverwood não gostam de ver estranhos misturados nos seus assuntos.
— Sinto-o, Wilkes, mas não gosto de assassinos. E creio que o que iam fazer era muito parecido com um assassinato. Vamos para a rua, Jess. Nenhum sujo cobarde se atreverá a tentar nada contra nós.
Saíram e, com efeito, ninguém tentou nada contra eles. Já na rua, viram vir a bom passo o sheriff Fox. Alguns curiosos juntaram-se em frente do saloon.
—Deixe-me falar, Milligan — pediu Rush guardando a arma.
—Como queira, forasteiro — sorriu o jovem. —E obrigado.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

CLT018.02 Mississipi Lady

O barco fez soar a sua sirene à medida que se aproximava da margem direita do rio, seguindo o curso descendente. O cais de Riverwood já era visível lá ao fundo.
As pás das suas rodas batiam a água do velho Mississípi com um ritmo monótono que levantava montanhas de espuma.
Não era um grande barco, o Mississípi Lady. Como todos os casinos flutuantes e dos Showboots da época, as suas largas chaminés, a sua grande roda central e os seus dois andares, enfeitados com alegres bandeirinhas, davam-lhe aquele ar entre pesado e gracioso, das embarcações fluviais que, com a simples intenção de oferecer um espetáculo, às não menos simples povoações ribeirinhas, sulcaram o amplo curso do Mississípi.
O homem da ponte superior afastou os olhos do aglomerado das velhas edificações que constituíam a cidade de Riverwood e afastou-se uns passos da borda, aspirando com satisfação o fumo do seu aromático charuto.
—Crês que seja um bom sítio para trabalhar, «Anjo»? — perguntou nas suas costas o velho Swane.
Rush Marlowe, o «Anjo», voltou-se para ele com um sorriso que o outro conhecia muito bem.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

CLT018.01 Morte debaixo de chuva

A tarde escura anunciava chuva. Corria um ar quente vindo do rio, e grandes nuvens cinzentas enchiam o céu, dando à paisagem um triste e feio tom cinzento. De vez em quando, a brisa era acompanhada de uma humidade indicando a proximidade da tormenta.
Matt Howland, estendido, com indolência, numa cadeira de baloiço na porta da vivenda contemplava, indiferente, as velozes nuvens escuras, com o pensamento posto em coisas muito mais importantes que uma simples borrasca.
Os seus olhos, cinzentos como a tarde, tinham uma expressão fixa e meditativa brilhando, opacamente, por entre as rugas que lhe sulcavam o rosto. Entre os lábios, um grosso charuto já apagado era mordido, nervosamente, pelos seus dentes certos e muito brancos.
Matt Howland ainda não havia completado os cinquenta e cinco anos, mas o seu rosto estava prematuramente envelhecido. Devido ao sol, ao vento e também às preocupações que tão prodigamente tinham enchido a sua vida. Não é fácil a vida quando se começa do nada, e muito menos quando a época em que se vive é como a que lhe correspondeu.  Entre violências, ambições desmedidas e o período caótico da guerra civil, Matt Howland soube lutar com tenacidade e dureza, procurando subir mais que os outros.


Talvez um puritano fosse da opinião que Matt Howland não empregou meios demasiado legais, mas então era difícil encontrar puritanos naquele país. Ao fim e ao cabo, Matt cometeu as mesmas ilegalidades que outros cometeram, mas sempre em jogo limpo e frente a frente. Ninguém o podia acusar de que os seus métodos de combate tivessem sido pouco nobres ou de canalha. Não, ele limitou-se somente a não sair da Lei, uma Lei não demasiado concreta nem acatada por todos.
Da sua honradez e nobre dureza, Howland sentia-se orgulhoso. Possuía os melhores terrenos de Arkansas, e a sua fortuna pessoal era bastante elevada. As suas plantações de algodão estendiam--se por um largo troço do Mississípi, não muito longe da fronteira com Louisiana, umas milhas mais abaixo de Arkansas City.
Agora, ali recostado, deixando o olhar vaguear pelo infinito, pensava no muito que lhe custou alcançar tudo, e no fácil que podia ser perdê-lo, num só momento de fraqueza. Aqueles malvados Milligan...
—Ainda estás à porta, papá?
A voz de Doris Howland arrancou o homem dos seus pensamentos. Afastou-os para longe e voltou-se para sua filha.
—Sim, Doris. Não te ouvi regressar.
A jovem com a sua blusa aos quadrados e a sua saia de pele, trazia o seu habitual sorriso. Uma melena de cor castanha caía-lhe para o rosto oval, moreno do forte sol das plantações. Tinha olhos claros e francos, mas travessos. As suas lindas pernas calçavam botas de pele até ao joelho, sem esporas. Doris riu alegremente.
—Isso demonstra a distração em que te encontravas —comentou. — Já há um bocado que eu e Joe voltámos da cidade no carro. Toma, trouxe-te o correio.
Mecanicamente, Matt agarrou nas cartas e colocou-as ao lado da cigarreira. Depois, olhou para sua filha.
— Encontraste alguém conhecido?
— Na cidade? — a voz da jovem soou indiferente. — Os de sempre, para não variar.
— Não me refiro a esses — atalhou ele secamente. — Sabes muito bem a quem me refiro. Não viste nenhum dos Milligan?
—Não.
Agora falou mais insegura. As pupilas cinzentas de seu pai fixaram-se nela.
—Nem sequer o Jess Milligan?
—Claro que não. Continuas a pensar que me interessa?
—Se te interessa, Doris! Não me venhas com dissimulações. E sabes que não quero que fales com nenhum desses filhos de uma cadela.
—Papá!
— Deus quisesse que eu tivesse as provas que necessito para os mandar enforcar. Sei que são culpados e não posso demonstrá-lo perante o sheriff Fox nem perante o juiz Benson.
— São puras suspeitas, papá — replicou Doris.
—Não o são—os olhos de Matt Howland adquiriram um brilho perigoso. — Eles, unicamente eles, tiveram oportunidade e motivos para incendiar por duas vezes consecutivas as minhas plantações de algodão. Foi uma perda enorme, Doris, e tu sabes bem. Havíamos apanhado já a maioria do algodão quando deitaram fogo. Com mais três ou quatro vezes que o facto se repetisse, a nossa ruína seria total. E isso é o que esses malditos Milligan querem!
Doris calou-se, convencida de que jamais poderia persuadir o seu pai de que os Milligan não eram culpados daqueles incêndios que devastaram já por duas vezes a sua rica zona algodoeira. Ele sempre opinaria que ela procurava defender Jess, o mais novo dos Milligan.
—Sabes o que disseram no outro dia Slim e Harry no saloon dos Wilkes? — continuou Matt, irritado. — Que se continuasse a acusá-los dos incêndios, viriam pedir-me explicações com as armas nas mãos.
Tão-pouco Doris respondeu desta vez. Slim e Harry, os irmãos de Jess, eram dois fanfarrões que nunca fariam o que apregoavam. Mas também essa argumentação de nada serviria para o belicoso Matt.
Ante o mutismo de sua filha, ainda resmungou algumas palavras entre dentes, e depois recostou-se na cadeira, olhando vagamente o céu, cada vez mais negro e ameaçador.
—Vai chover, Doris—disse por fim. —Todos os cavalos estão já no estábulo?
— Sim, papá — sorriu ela, aceitando de bom agrado aquela alusão a uma próxima tormenta, que dissipava outra mais desagradável. —E Joe já se preocupou em avisar que parassem o trabalho nos algodoeiros. Ele conhece bem estas mudanças de clima.
Doris, de repente, recordou-se de alguma coisa.
— Céus, tenho ainda a roupa estendida no pátio! E correu para o interior da vivenda precipitadamente. Novamente só, Matt começou a abismar-se nas suas eternas preocupações sobre o algodão, os incêndios e os seus odiados Milligan. Cada vez maldizia mais a casualidade de Doris se interessar precisamente por Jess Milligan, aquele loiro sardento, com ares de estudante de seminário, entre todos os jovens de Riverwood.
Ao desviar a vista com um áspero grunhido de contrariedade, os seus olhos pousaram no monte de cartas sem abrir. Isto trouxe certa ideia à sua mente e com um gesto vagaroso estendeu o braço e apanhou toda a correspondência. Passou várias cartas, sem prestar muita atenção, até encontrar um envelope de cor azul-claro, que fez brilhar as suas pupilas com estranho júbilo.
Nervosamente deixou de lado todas as outras, e os seus fortes dedos morenos rasgaram o envelope com brusquidão. Tirou um papel timbrado não muito grande.
Caíam grossas gotas de chuva, cujo barulho aumentava ao tocarem o zinco do alpendre. Mas Matt Howland tinha esquecido a tormenta, a chuva e tudo que o cercava. Concentrou toda a sua atenção nas linhas escritas naquele papel. Lia, com uma mescla de assombro e incredulidade, o último que tivesse pensado ler. Por fim, com uma maldição, levantou-se violentamente quase derrubando a cadeira.
Guardou a carta no bolso, avançou pelo alpendre e correu por um espaço descoberto, onde a chuva caía agora com mais intensidade, alcançando as cavalariças. Viu Joe atando as rédeas de «Lone».
Todos os cavalos relinchavam, 'cheirando a tormenta, mas nenhum como o alazão castanho e branco. «Lone» queria soltar-se das pacientes e benignas mãos de Joe.
—Vamos, «Lone», deixa-te manejar — suplicava Joe, reluzindo de suor a sua pele negra. — É só um momento...
Joe voltou-se ao ouvir os pesados passos de Matt. Sorria para o seu patrão mostrando a sua branca dentadura,
— Mau rapaz este «Lone» — disse risonho. - Assusta-o a tempestade, patrão.
Matt, apesar da sua rudeza característica, era afável e cordial para os seus empregados, especialmente com Joe, o privilegiado da fazenda. Por isso o negro abriu desmesuradamente os olhos quando viu que o patrão, sem dizer uma só palavra, colocava uma sela sobre o animal, apertava as cilhas e saltava para a garupa sem a menor explicação.
— Mas, patrão, se vai chover muito! Não pensará ir agora...
Matt saiu do estábulo em cima de «Lone», que se mostrava mais inquieto ainda, e já debaixo da chuva enfiou as biqueiras das suas pesadas botas no estribo do alazão, que com um agudo relincho lançou-se desenfreadamente por um caminho que atravessava os campos de algodão, em direção desconhecida para o surpreendido Joe.
Doris, assomando ao alpendre, interrogou o negro:
— Porque era todo este barulho, Joe?
—O patrão saiu com «Lone», menina—gritou o empregado, satisfeito por poder comunicar a alguém o seu aborrecimento.
—O papá vai-se embora? —Doris, sem saber porquê sentiu-se inquieta. — Aonde?
— Não sei. Apanhou o cavalo e saiu a galope. Parecia muito excitado.
Doris saiu para o pátio, açoitado pela chuva, e o seu olhar cravou-se com angústia na figura longínqua de seu pai em cima de «Lone». Não se importou com a chuva que lhe molhava os cabelos e corria, copiosamente, pelo rosto. Pensava em Jess Milligan, para cujas terras parecia que se dirigia seu pai,
Matt Howland deixou para trás as suas plantações de algodão e sem sair da margem do rio continuou a forçar «Lone» a um galope intenso.
Os cascos do cavalo golpeavam agora a terra húmida das margens, até às possessões de Jess, Slim e Harry Milligan, ponto intermédio entre as suas e as de outro fazendeiro, Lou Lashwell, e a povoação de Riverwood.
A chuva empapava a sua camisa, os seus cabelos e corria sobre a sua bronzeada pele, torrencialmente. Mas isso não lhe importava.
De vez em quando, a sua mão dirigia-se de um modo mecânico ao revólver que pendia da sua cintura, como se desejasse descarregá-lo quanto antes sobre um adversário qualquer, mas, não. Agora não seria um qualquer. Agora seria sobre o verdadeiro causador dos incêndios, sobre o homem que queria arruiná-lo custasse o que custasse.
Crispadas as rudes feições, Matt Howland era uma imagem inquietante para quem se cruzasse no seu caminho. Nos frios olhos cinzentos lia-se o implacável desejo de vingança.
«Lone» enterrou os cascos num lamaçal, quando alcançou o cruzamento dos caminhos, próximo da quinta dos Milligan. Já se via, ao longe, os algodoeiros batidos pela chuva. Matt refreou um pouco o galope do seu cavalo ao ver surgir um cavaleiro do maciço de arbustos que limitavam a possessão dos três irmãos.
— Eh, Howland! — gritou o cavaleiro, soltando as rédeas. —Aonde vai?
Matt cravou no outro um olhar frio e decidido.
— Ando à procura de alguém — falou asperamente, destacando-se a sua voz por cima do ruído da chuva.
—A quem procura, Howland? — insistiu o outro, sem se afastar do caminho.
Matt sentiu o sangue ferver de ódio e de indignação.
— Talvez a você — disse cortante.
— A mim? — o cavaleiro soltou uma gargalhada. — Para quê?
O cavalo de Howland avançou uns passos, à medida que o rosto do fazendeiro adquiria um ar duro e violento. As suas mãos crisparam-se nas rédeas, muito próximo dos coldres.
— Pode ser que saiba finalmente quem é o canha-lha que incendeia os algodoeiros. Pode ser que deseje cravar umas onças de chumbo no corpo desse maldito cobarde. E pode ser que este seja o melhor momento!
—Bem. —O outro ergueu a sua figura na sela, endurecendo o seu olhar. — Porque não o tenta?
Matt tentou-o. Mas tinha de enfrentar-se com um homem demasiado rápido. Não é que Matt Howland fosse lento, mas as delgadas mãos do outro alcançaram antes os coldres.
Quando Matt alcançava o seu «45», com toda a rapidez, o revólver do outro «falou» por duas vezes com a mais áspera e mortal das linguagens. Dois fogachos alaranjados brotaram na espessa cortina de chuva e duas balas foram cravar-se no peito de Matt Howland. O seu dedo pôde ainda apertar o gatilho, mas o projétil perdeu-se, inofensivo na lama do caminho. Depois, o seu corpo vigoroso oscilou sobre a montada, cravou um último olhar no seu assassino e rodou pesadamente para o solo.
«Lone» relinchou, aterrorizado, voltou-se veloz sobre si mesmo ao não sentir o peso do cavaleiro e rompeu num louco galope, perdendo-se em seguida entre a chuva e os arbustos.
O assassino de Matt Howland viu fugir o cavalo com um sorriso de indiferença. Depois saltou para o chão aproximando-se, sem largar o revólver, do corpo sem vida de Howland, enterrado na lama. Inclinou-se sobre ele. Mãos hábeis revistaram os bolsos do morto.
Depressa deram com a carta enrugada e húmida que provocou em Howland a sua furiosa reação. Deitou uma olhadela ao texto, riu surdamente e meteu-a num dos seus bolsos.
Levantando-se, olhou em redor. Ninguém parecia ter ouvido os disparos. Não se via rasto de nenhum ser vivo. Olhou para a sua vítima com um ar brincalhão, e decidiu o que iria fazer com aquele corpo sem vida.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Encontro com «O homem de Louisiana


Talvez um puritano fosse da opinião que Matt Howland não empregou meios demasiado legais para obter o que tinha conseguido, mas então era difícil encontrar puritanos naquele país. Ao fim e ao cabo, Matt cometeu as mesmas ilegalidades que outros cometeram, mas sempre em jogo limpo e frente a frente. Ninguém o podia acusar de que os seus métodos de combate tivessem sido pouco nobres ou de canalha. Não, ele limitou-se somente a não sair da Lei, uma Lei não demasiado concreta nem acatada por todos.
Da sua honradez e nobre dureza, Howland sentia-se orgulhoso. Possuía os melhores terrenos de Arkansas, e a sua fortuna pessoal era bastante elevada. As suas plantações de algodão estendiam--se por um largo troço do Mississípi, não muito longe da fronteira com Louisiana, umas milhas mais abaixo de Arkansas City. 
Uma enorme conjura formou-se para alguém se apoderar dos seus terrenos. Matt apareceu morto e alguns vizinhos, portadores de velhas rivalidades, foram imediatamente acusados. Mas seria alguém com um passado menos recomendável quem tudo esclareceu e conseguiu a regeneração junto da filha do velho senhor.

domingo, 6 de janeiro de 2019

CLT024.08 Até à última bala

— Deita-te ao chão, Alma! Eu me encarregarei de averiguar quem disparou!
sobre as suas cabeças sibilaram vários projéteis mais, quase ao mesmo tempo. Eram vários os que disparavam, e faziam-no com espingardas pesadas. Uma imensa rocha que se achava sobre as suas cabeças fez chover sobre eles fragmentos de grande tamanho.
— São Brakam e seus homens, Milton.... Caíste numa armadilha.
O jovem, com os dois revólveres à altura dos olhos voltou-se para ela.
— É uma armadilha?
Alma arrastou-se sobre os cotovelos até colocar-se junto dele, ao abrigo duma rocha.
— Os homens de Brakam deliberaram seguir as minhas pegadas, e chegaram até aqui. Mas não adverti a sua presença. Estava desfalecida de fome e de sede. Até mim só se aproximou um homem...
—Um tipo ridículo com um cavalo meio morto?
—Esse... Esse mesmo. Não oferecia perigo. Deu-me de beber, e deixou-me um pouco de comida. Eu roguei-lhe que me tirasse daqui, mas não quis, pretextando que o seu cavalo não podia com duas pessoas. Era verdade. Então pedi-lhe, que se dirigisse a Oregon, passasse por Batteville e te avisasse. Ao princípio não tive nenhuma esperança, mas depressa compreendi que o tipo se dirigia diretamente para ali, para dar-te a mensagem e atrair-te.
— Atrair-me porquê? Acaso...?

sábado, 5 de janeiro de 2019

CLT024.07 O cerco

Com um seco sabor a pólvora nas suas gargantas, apertando com os dedos as culatras, dobrados os corpos sobre os cavalos que acabavam de roubar, Luigi Starza e Milton Carey tinham-se feito por uns instantes donos da rua, na pacífica cidade de Dusty Plain.
O êxito do seu golpe radicava-se na surpresa e na audácia com que o tinham planeado. Com efeito, nenhum dos pistoleiros postos na cidade por Brakam tinha podido suspeitar, que junto ao solo, entre as rodas do carro que semanalmente fazia serviço de correio entre o sul da Califórnia e a comarca de Dusty Plain, pudesse haver dois homens armados e dispostos a tudo.
Não tinha sido difícil para Carey deter o correio, pois este não estava protegido. Por causa de dezenas de assaltos, tinha-se determinado não admitir a seu cargo nenhum objeto de valor. E os dois homens que guiavam o carro não quiseram averiguar se aqueles revólveres estavam carregados ou não, quando viram as suas bocas apontando-lhes para o peito.
— Não correm perigo. Não receberão nenhuma classe de dano se se limitarem a ignorar a nossa presença —tinha prometido Carey. — Só queremos entrar em Dusty Plain sem sermos advertidos.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

CLT024.06 Gatilhos

As mãos de Milton Carey tinham-se fechado furiosamente sobre as culatras negras.
— Estavas louco, Luigi! Não adivinhaste o que queria fazer? Porque diabo a deixaste a vigiar? Ê capaz de ter ido negociar com Wilburn Brakam!
Os olhos do calabrês estavam fixos no chão, e todo o seu aspeto denotava uma grande distração.
—Não me ocorreu, Milton. Como podia supor que ia fugir? Tinha um aspeto muito abatido, incapaz de tomar uma decisão...

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

CLT024.05 Saudação de pistoleiro

Capítulo V
SAUDACAO DE PISTOLEIRO
Luttell foi enterrado debaixo da areia do deserto. Entre Milton e Starza cavaram uma pequena sepultura num Lugar afastado de todos os caminhos. Com ramas secas formaram uma tosca cruz. A India ajudou-os a cravá-la. Depois rezaram os três, com as cabeças baixas e as mãos nas costas. O velho medico, com o corpo bem repleto de álcool, ficou para sempre repousando debaixo da terra sem água.
—Bem, como diabo to chamas?
A pergunta surgiu quase violentamente dos lábios de Carey, apenas se afastaram uns passos da tosca sepultura. A India nao se atreveu a olhá-lo. Tinha ainda a cabeça baixa, e parecia contemplar a crina do seu cavalo.
—Chamo-me Alma. Sou filha de pai espanhol e de mãe India, nascida no México.
Milton contemplou-a com major interesse. Na verdade, a rapariga delatava a mistura de raças que se tinha dado nela. E isso fez-lhe recordar uma das frases favoritas do velho Luttell: «A natureza nunca consegue obras mestras com elementos puros. Se queres um vinho excelente mistura duas classes de vinho. E se queres obter uma mulher que de verdade tenha algo, mistura duas raças.»

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

CLT024.04 A hora da decisão

Era estranho: os seus olhos eram demasiado duros, demasiado cruéis e frios.
Um homem como Milton Carey devia

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

CLT024.03 «Mão Morta»

Ao oitavo dia de peregrinação, depois de ser despedido de todas as partes, morto de fome e sem poder-se conter sobre a sela, chegou a uma cerca atrás da qual estava um cartaz de madeira pintado de branco, com letras vermelhas que diziam:
RANCHO BRAKAM
Centenas de acres de boa terra se estendia diante dos seus olhos. Terra coberta de um limo verde, donde se podiam arrancar as melhores colheitas do país. O assassino de seu pai era um homem de sorte.
A vala de arame farpado estendia-se durante léguas e léguas ao longo dos caminhos. Aquela devia ser a zona de cultivo, onde os gados não podiam penetrar. Mais além, em prados verdes abertos a todos os ventos, centenas de cabeças de gado pastavam vigiadas pelos cowboys.
O sol caía a prumo, e o cavalo coxo de Milton Carey caminhava como um sonâmbulo. Os escassos riachos estavam quase secos pela intensa evaporação, e da terra desprendia-se um calor espesso e asfixiante.


Ao meio-dia, quando o sol era mais implacável, Milton contemplou uma cena inolvidável. Tinha ouvido falar de que a escravatura estava abolida só nominalmente, mas nunca tinha podido acreditar que cenas como aquela teriam lugar depois da vitoria dos generais de Lincoln.
Três cowboys arrastando, seguros aos seus cavalos, dois índios e uma rapariga branca. Na planície havia um poste alto e ataram-nos nele, abandonando-os ao sol corn as cabeças descobertas.
— Até dentro de três dias! —ouviu que gritava um dos vaqueiros, enquanto o pequeno grupo se afastava a galope.
Os olhos de Milton Carey cintilaram. Esperou que as três figuras se tivessem perdido de vista, e cravou as esporas no seu cavalo, que empreendeu um curto e doloroso trote. A cem jardas dos três castigados, deteve-se. Depois continuou avançando, até poder distinguir as suas feições.
Os negros eram corpulentos, e pareciam fatalistas e coma resignados diante da morte. A outra figura correspondia a uma menina duns onze anos, morena, de olhos cintilantes. Era uma India.
Milton Carey sentiu que alga se agitava no seu peito, e dispôs-se a avançar mais. Mas naquele momento, um disparo passou assobiando junto da sua cabeça. Atónito, viu agachado numa elevação próxima um homem que apontava de novo a espingarda.
 0 rapaz compreendeu que o novo disparo seria a matar. Voltou costas, afastando-se lentamente, sem sequer fazer pressão nos flancos do seu cavalo. Se o atravessassem com uma bala, importava-lhe muito pouco.
Mas o novo disparo foi um aviso também. E depois, ao ver que a sua figura se ia perdendo ao longe, já não insistiram no fogo.
Dois anos arrastou Milton Carey naquela vida errante e miserável. Durante eles viveu, como o seu cavalo, do que lhe davam por onde passavam. Vestia as roupas velhas que lhe entregavam nos ranchos em troca de duros trabalhos, coma partir troncos ou limpar poços.
Lavou-se nos rios e nos riachos que encontrava no caminho. Obteve irrisórias quantidades de dinheiro por empregos circunstanciais em três Estados distintos. Nao foi para a Califórnia diretamente, como tinha combinado corn Luttell.
Num momento de desespero, e confiando cegamente nas suas forças, pensou em chegar até Missouri, onde era conhecido e onde poderia alguém ajuda-lo. Mas ainda no oeste de Kansas, compreendeu que com aquele cavalo demoraria seis meses a chegar. E a verdade seja dita, tentava-o mais a nova terra da Califórnia.
Voltou costas.
«Se chego a Missouri — pensou — abrir-se-ão, pelo menos trinta bocas para perguntar-me por meu pai. E decidiu que a Califórnia seria para ele a terra prometida. Nesse tempo insinuaram-se estranhos sinais nos seus antigamente fracos braços, o seu peito alargou, o seu queixo fez-se mais proeminente, e os seus olhos azuis e infantis adquiriram a cor cinzenta de aço.
Fazendo aquela vida, Milton Carey não tinha outro remedio sendo morrer ou converter-se num autêntico cachorro. E Milton nao morreu.  Desde Kansas dirigiu-se ao Colorado e Utah, e depois a Nevada. Tinha catorze anos quando entrou pelo norte do Estado da Califórnia, e parecia ter cumprido os vinte. Os seus cabelos loiros, de um loiro dourado, bronzeada a pele e finos os lábios que nunca sorriam, tinha algo em Milton Carey que chamava a atenção. Talvez por nao levar armas, pois tinha vendido seu revolver no Colorado, durante um tempo de má sorte. Pensou que nao levando armas nunca correria o risco de transformar-se num pistoleiro. Milton Carey nao queria ser um fugitivo como seu pai.
Queria ser o que Rody sonhou quando lhe ensinava a ler sobre os seus joelhos. Na Califórnia deram-lhe um bom trabalho: cowboy para transportar reses desde Oregon às populosas e recém levantadas cidades do Sul, onde a came era paga por bons preços. Essa vida errante e desconcertante, sem ver um tecto jamais, dormindo, por assim dizer, sobre a sela do seu cavalo, agradou a Milton.
Ninguém mandava nele, e a sua única obrigação consistia em ser honrado, bom cavaleiro e bom conhecedor dos caminhos. O resto nao interessava. Uma noite, sem embargo, ao terminar a sua primeira viagem, teve uma discussão corn o capataz do rancho.
—Há ladrões nas montanhas. Porque nao levas revólver?
—Não me agradam as armas de fogo. Nao quero ter ocasião de ser um pistoleiro.
O capataz olhou-o como quem vê visões.
-- Os meus homens vão armados, e nao são pistoleiros. Pelo contrário, os seus revolveres servem para defender-se dos atiradores profissionais. É que queres que algum dia te entreguem seis medalhas na pele?
—Quando um homem vai desarmado e nao ofende ninguém, ninguém o mata.
— Mas tu levas gado que vale muitas centenas de dólares, amigo. Na próxima viagem sairás armado, ou nao sairás.
Milton, encolheu os ombros, replicou que se magoaria os músculos com os coldres. Mas o capataz nao ficou demasiado convencido, e no dia seguinte quis vê-lo atirar.
—Toma este revolver —disse-lhe, atirando-lhe o seu. Milton apanhou-o no ar corn a esquerda. —És canhoto?
—Nao. Nao sou canhoto.
—Então, vamos a ver como estas de pulso. Vês aquele chapéu colocado sobre a vala?
—Sim.
—Tens de fazê-lo saltar. Olha para mim.
Quase sem apontar, o capataz fez fogo, e o chapéu saltou violentamente pelos ares para cair depois brandamente no chão.
— Agora tu.
Milton empunhou o revolver com a sua direita. Agora, as mãos eram exatamente iguais e da mesma cor, e só se notava a cicatriz no punho. Mas a direita tinha mais nervos que a esquerda, era mais formada, mais perfeita. Nao obstante isso, movia-a corn uma extraordinária lentidão.
—Que se passa com essa mão? Já me fixei várias vezes nela, na casa de jantar. Apenas moves os dedos.
-- Tive um acidente quando era criança. Desde então nao posso movê-la bem.
—Mas se apenas sabes manejar o revolver! Vamos, dispara! Agora o chapéu está em terra, e o alvo é muito mais fácil para ti!
Milton fez fogo, e a bala saiu alta. Insistiu, e só pôde rocar o chapéu. A sua demonstração foi lamentável. Via bem o alvo e apontava-lhe com segurança, mas a mão negava-se-lhe a obedecer, e cada vez que apertava o gatilho, o revolver dava um estranho salto entre os dedos.
—És um inútil e um cobarde, Milton. Nao sei como te confio o gado que compramos em Oregon e que até, as crianças te poderão roubar. Nem sequer mereces qui te chame pelo teu nome. A partir de agora serás «Mão Morta». Isso – riu da sua lembrança -- é a melhor alcunha para ti: Mão Morta.
Milton Carey fez mais três viagens de Oregon a Califórnia, sem novidade. Levava os revolveres a cintura, mas descarregados sempre. Paulatinamente, a sua mão direita, na qual tinha renunciado em pensar, ia adquirido certa vida própria, certa ligeireza. Podia empregá-la já em pequenos trabalhos, e os seus músculos endurecidos respondiam as ordens da sua vontade.
Nao obstante, Milton nao prestava demasiada atenção a ela. Na rota entre Oregon e a Califórnia cumpriu os seus dezassete anos. Na rota das montanhas deixou as suas últimas formas infantis e as suas últimas expressões cândidas.
A pele endureceu debaixo da pressão potente dos músculos, e os dorsais superdesenvolvidos deram as suas costas uma aparência titânica, que impressionava de longe.
Nao obstante, todos continuavam chamando-lhe «Mão Morta», e ninguém apostava pela sua vida um quarto de d6lar, pois era evidente que tarde ou cedo havia de se ver envolvido nalguma luta.
Levava três anos no rancho, quando um dos seus companheiros foi assassinado. Mas então, Milton já podia mover a mão direita com completa segurança.
--Foram os do rancho Baklam—disseram os companheiros, da vítima.
— Querem comprar os nossos terrenos de pastagem e pretendem impor-se pelo terror.
A partir daquele momento advertiu-se constantemente o pessoal que ninguém devia sentir-se seguro, extremando as precauções durante os serviços noturnos.
E uma noite, Milton pensou encontrar-se em frente do assassino. Estava num extremo do terreno de pastos, junto dum bosquezito. Ia passeando tranquilamente, enquanto preparava um cigarro, quando ouviu um rumor a poucos passos dele, entre as arvores, e a luz da lua cheia projetou claramente uma sombra.
Naquele momento, Milton agiu por instinto. Nao teve tempo de pensar. A sua mão direita foi para o coldre, e extraiu o revólver com uma velocidade estonteante. Foi algo que o deixou perplexo a ele próprio: a mão tinha atuado como impulsionada por um salto. Os seus dedos agarraram tao perfeitamente o revolver e com tal segurança, que se encontrou apontando ao seu hipotético inimigo antes que este pudesse reagir.
Mas Milton nao disparou. O emboscado era um dos seus próprios companheiros.
— Pregaste-me um grande susto! —gritou, com voz de falsete, o sentinela, ao reconhecer Milton. — Estava-te apontando, e de repente vi aparecer o revolver na tua mão. Mas com uma velocidade tal, que estou certo de que me terias dado primeiro. Isso nao o vi nem a Marshall, o que matou três homens o ano passado. Ouve, «Mão Morta», nao nos estarás enganando?
Milton, sem responder-lhe, voltou-se corn brusquidão. Pela primeira vez na sua vida tinha medo de algo muito concreto, e era medo de si próprio. Com passos rápidos e elásticos dirigiu-se velozmente para o rancho. Estendeu-se em cima da sua cama, e durante muito tempo pôde ver a ponta do seu cigarro acesa na escuridão.
No dia seguinte era domingo, e todos os vaqueiros foram divertir-se na povoação mais próxima, Milton Carey ficou sozinho.
Carregando o seu revolver, encaminhou-se para um extremo do terreno de pastos, afastado de toda a fiscalização. Levava seis pequenas latas de conserva vazias, que colocou em seis pequenas estacas, quase ao nível do chão. A umas cinquenta jardas, extraiu o revolver com a mão direita.
Era surpreendente a segurança corn que os dedos se adaptavam a ele, e docilmente todos os comandos da arma obedeciam ao contacto da mão. Milton Carey, que tinha presenciado mais que uma luta, sabia facilmente que os dedos dum homem se adaptavam sobre o revolver, quando o manejava nervoso, e o exposto que estava então em receber a bala definitiva. Ele, em troca, tinha a clara sensação de que a nao podia» enganar-se.
Apontando a primeira lata, disparou, fazendo o mesmo com as restantes, uma a uma, fixando apenas o alvo e corn rapidez extraordinária. Em oito segundos, o seu tambor ficou vazio e as seis latas jaziam na erva, a muita distancia das estacas que as tinham suportado. Qualquer um tinha sentido orgulho diante daquela façanha. Milton Carey sentiu terror. Para ele seria endiabradamente fácil matar um homem. A partir daquele dia preocupou-se, com mais rigor que nunca, em nao levar munições.
Meses mais tarde foi assassinado outro dos seus companheiros, e, com motivos ou nao, declarou-se uma guerra aberta entre o seu rancho e o de Buklam. Numa manhã de Primavera, o dono do rancho convocou todo o seu pessoal para a pequena esplanada que se estendia diante dos edifícios principais. Ordenou a todos os vaqueiros que ficassem montados e com as armas.
— Os homens de Jerome Buklam converteram-se em assassinos e ladrões -- começou o chefe, corn voz agreste.
—Há um ano, dois dos vossos companheiros caíram debaixo do seu chumbo, e ontem uma parte do nosso gado foi afogada e morta no rio por um grupo dos seus homens. Sei que hoje o mais «seleto» da sua tropa está conduzindo centenas de cabeças para a encosta, e vamos dar-lhes uma boa lição. Quero que esses homens morram pisados pelo seu próprio gado. Será uma bonita luta e uma bonita lição. Mas necessito e admito só homens valentes. Aqueles que de vocês se sintam femininos e nao queiram atirar, que se retirem agora.
Todos soltaram uma gargalhada diante daquela insinuação, pois ninguém tinha pensado em retirar-se numa ocasião semelhante. Todos, menos Milton Carey. Tremiam os dedos da sua mão direita como possuídos por uma agitação inexplicável. A maçã de Adão subia e baixava espasmodicamente pelo seu pescoço poderoso. As suas feições estavam densamente lívidas.
— Retiro-me—disse a meia voz. — Nao faço parte do pessoal do rancho.
E entre os insultos e gritaria dos demais, afastou-se lentamente, a trote curto do seu cavalo.
Califórnia vivia em plena febre do ouro.
Centenas de aventureiros tinham chegado do Sul e do Este em caravanas e pelas recém-construídas linhas férreas. Centenas de pistoleiros profissionais abandonaram os ranchos e os prados do Norte para se dirigirem a primaveril Califórnia em busca da fortuna. Astutos mexicanos expulsos das suas terras vendiam-se pela melhor oferta, como espertos e minuciosos assassinos e guarda-costas. Era uma estranha «civilização a que, de repente, tinha chegado aquela terra anteriormente religiosa e pacifica. Os homens como Milton Carey nao tinham grande coisa a fazer por ali. Mas decidiu nao sair do Estado, uma vez abandonado o seu emprego no rancho. e, ingenuamente, pensou que também podia encontrar o ouro, sem causar mal a ninguém, acompanhando-o somente um pouco de sorte. E naquela luta solitária e quase sempre sem esperança, consumiu um ano mais.
Nao encontrou nenhum filão, e apenas obteve algumas pequenas pepitas de ouro que o ajudaram a viver de qualquer maneira. Era já uma espécie de gigante loiro quando conheceu Luigi Starza. Luigi era calabres, homem sentimental, pacifico e amante do vinho e da música. Encontraram-se um dia atuando no mesmo sítio.
—Nao penso que haja nada por aqui, amigo —disse Luigi, ameaçador. —Pelo menos, nada para si.
— Isso ainda temos de ver —respondeu Milton, que naquele dia nao estava de bom humor.
— Creio que este sítio é bom, e ficar-me-ei a trabalhá-lo.
Luigi encarou-se corn ele. Tinha bigodes de salsicheiro, que lhe caiam até ao queixo.
— Nao estou acostumado a que ninguém me desafie, ouves? Replicou com voz irritada. —E muito menos tu, criança.
Para que isto nao pudesse acabar a tiro e já que estavam apenas a um passo de distância, Milton decidiu desarmar o seu inimigo corn um movimento rápido. Estirando o braço corn uma velocidade estonteante, sujeitou corn os dedos o único revolver de Luigi, arrancando-lho do coldre. Mas o calabres parecia ter tido justamente a mesma ideia, e se nao pode evitar a manobra de Milton, foi por estar fazendo precisamente o mesmo que o gigante loiro. Os dois olharam-se atónitos, cada um corn o revolver alheio na mão.
E os seus olhos abriram-se mais ainda ao comprovar, pelo pouco peso das armas, que ambas estavam descarregadas. Durante um largo minuto estiveram quietos e contemplando-se. Depois, Milton langou uma gargalhada, que o calabres coroou em seguida com um espetacular movimento do bigode.
— Alegro-me de encontrar um fanfarrão pacifico — disse o jovem, batendo no ombro de Luigi. — Chamo-me Milton Carey, e só trago o revolver para adornar o coldre.
— E eu Luigi Starza — respondeu o outro, quase abraçando-o, deixando-se levar pelo natural afeto da sua raça. — O gatilho do meu revolver está oxidado. Quer que procuremos juntas nesta zona e repartamos os benefícios?
— De acordo — disse Milton, estendendo a mão. — E eu estou muito satisfeito de ter topado consigo. Em companhia de Luigi Starza deambulou pela Cali-f6rnia durante três anos.