— Canalhas! Assassinos! — gritou a jovem, ao mesmo tempo que saltava do carro e corria atrás do infeliz.
Quando o alcançou, passou-lhe à frente e segurou na corda, tentando, com a fragilidade feminina das suas mãos, impedir a tensão.
Ao vê-la, os outros puxaram com mais força e Graça acabou por cair também, confundindo o seu corpo com o corpo inanimado do pai.
De súbito, porém, ouviu-se o galope de um cavalo e, depois, um relincho, no momento em que o cavaleiro o obrigava a parar. O homem saltou para o chão, correu para a corda homicida e cortou-a, com o golpe certeiro da sua faca.
Parou entre os linchadores e a vítima, apontando dois revólveres aos momentaneamente estupefactos assassinos. Graça não perdeu tempo a libertar o pai do laço que o asfixiava e a reanimá-lo, tentando devolver-lhe a vida que por instantes o abandonara.
A surpresa mantinha indecisos os que tão ignobilmente haviam arrastado Knox, mas uma voz colérica não tardou a indagar:
— Que ideia foi essa, Bryce? Primeiro devia ter-se inteirado do que fazíamos! Esse miserável matou Powell,e nós estávamos a aplicar-lhe o merecido castigo. Enquanto falava, o homem foi abrindo caminho até ficar parado diante daquele a quem chamara Bryce.
— Ah, sim?! Porém não dei por que houvesse julgamento, por muito parcial que fosse — volveu o rapaz.
— Qual julgamento, qual nada! Nós não temos que dar-lhe contas! Vocês é que estão entre mórmones e, portanto, têm de ater-se às nossas leis. Pode dar-se por feliz por não o responsabilizarmos também pela morte de Powell, pois foi você que insistiu em que o Knox e os seus nos acompanhassem.
O homem ganhava coragem à medida que falava, e concluiu com arrogância, sentindo-se seguro com a barreira de companheiros que atrás de si se formara:
— Queremos o nosso condenado, Bryce! Se tem uma parcela de juízo, afaste-se!
Lenta mas irremediavelmente, os vingadores de Powell aproximavam-se do jovem que se entrepunha entre eles e Knox. Bryce voltou a cabeça, para avisar os que protegia com o seu corpo:
— Para o carro, senhor Knox! Armem-se enquanto ajusto contas com esta gentalha!
Depois, em vez de recuar assustado ante o perigo que representava a vintena de homens com instintos assassinos, Bryce deu ainda alguns passos em frente e guardou as armas, facto que surpreendeu os outros. Ao vê-lo desarmado, o que capitaneava o grupo — um indivíduo alentado e quase tão alto como o rapaz —, levantou as mãos e fez menção de abatê-las, fechadas, na cabeça de Bryce.
— Assim o quiseste, guia do diabo! — vociferou, baixando já os punhos que ameaçavam rebentar o crânio de Bryce.
Mas, com um direto fulminante, o punho do rapaz atingiu o estômago do outro. Os braços do homem caíram, saiu-lhe da boca um rugido empestado de tabaco, e estatelou-se no chão. Aquilo, porém, fora apenas o romper das hostilidades e facilmente se via que a desvantagem pertencia aos mais fracos, neste caso Bryce, Knox e Graça. –
De facto, mal o adversário ficou fora de combate, o jovem sentiu envolvê-lo uma multitude de braços que, com socos brutais, o atiraram por terra e, depois, a queda de vários corpos sobre o seu, todos a procurarem afanosamente um ponto onde lhe baterem.
Knox, culpado involuntário de tudo aquilo, não obedeceu ao conselho do jovem — ou melhor, não lhe deram tempo a fazê-lo, pois vários homens correram para ele e impediram-no, e a Graça, de refugiar-se no carro.
Além de pouco corpulento, Alfredo Knox tinha ainda contra si a idade bastante avançada, e por isso não foi difícil atirá-lo de novo ao chão, com um soco violento, e depois espezinhá-lo.
Graça não teve melhor sorte: duas megeras, que lamentavam a morte do marido comum, lançaram-se a ela, derrubaram-na, arranharam-na e morderam-lhe, encorajadas pela voz esganiçada de uma terceira, a qual causava mais dano com a sua língua viperina do que com as mãos sujas, que agitava no ar para imprimir maior expressão às palavras:
— Matai-a! Matai-a! Foi ela, a cadela, que atraiu ao carro o nosso bom Donald. Chupai o sangue à filha de cães!
Uma voz que, apesar de elevada, conservava uma tonalidade pacífica, uma modulação especial que dizia não conhecer o seu proprietário arrebatamentos iracundos, dominou o tumulto:
— Que fazeis, irmãos? Acalmai-vos... Peço-vos um momento de atenção...
Não tardou a verificar-se que o velho que falara, um venerável ancião de barbas brancas que avançava devagar com a ajuda de um cajado, era por todos respeitado: os homens largaram Bryce e Knox e estes levantaram-se também, o último dos quais tão abalado que teve de ser amparado pelo primeiro.
Só as mulheres continuaram a espancar Graça, por tal forma que os dois homens que tinham acompanhado o ancião tiveram de lançar-se a elas e arrancar-lhes a rapariga das garras. O velho, no meio do círculo que se formara em seu redor, deu uma volta completa com o cajado e exclamou:
— Envergonho-me de vós, irmãos! Nada, absolutamente nada, pode justificar a vossa inqualificável atitude. Que explicações dais do vosso desaforo contra estes três infelizes?
Rompeu-se o círculo e a velha que instigara ao linchamento aproximou-se do ancião:
— Dar-ta-ei eu, venerável Josiah. Fica sabendo que esses...
O báculo ergueu-se, ameaçador, na mão decrépita do velho, e Josiah deu um passo na direção da mulher:
— Fora daqui, Marta! Desde quando, entre mórmones, é permitido a uma mulher falar em assembleia? Vai lavar as panelas e que seja Powell, o teu marido, quem fale por ti!
Marta desviou o corpo, para se furtar à ameaça do cajado, mas, em vez de retirar-se, voltou a falar, com os olhos vermelhos de cólera:
— Não deves esperar que os mortos te deem explicações, Josiah! Donald morreu às mãos desse assassino que permitiste nos acompanhasse!
E a mulher estendeu o braço descarnado e apontou Knox, que se encontrava do outro lado, abraçado a Graça e amparado por Bryce. Uma expressão de dúvida brilhou nas pupilas de Josiah e o ancião dirigiu-se então, desalentado, ao jovem que impedira o enforcamento de Knox:
— Bryce, meu rapaz, pode explicar-me o que de facto aconteceu?
O jovem aproximou-se dele e, apontando também para Knox, disse:
— Creio que terá de ser o próprio senhor Knox a explicar-nos. Eu apenas cheguei a tempo de evitar que esses... anjos o fizessem em pedaços.
— Aproxime-se, senhor Knox — ordenou o velho.
Mas quem se aproximou foi a irada Marta, com passos furtivos como os de uma gata pronta a saltar de um momento para o outro.
— Que vais fazer, Josiah? Permitir que nos conte as mentiras que lhe vierem à cabeça e que continue a respirar, quando já devia estar feito em pedaços? Foi Donald Powell, o homem mais íntegro da caravana, que caiu sob as garras dessa gentalha! Mas que vos importa que cinco fracas mulheres tenham ficado viúvas porque essa víbora, com a beleza de Satanás, atraiu nosso marido a uma armadilha?
— Estou cansado de ouvir-te, bruxa do diabo! Fora daqui ou racho-te a cabeça!
O ancião afastou Bryce e avançou para a mulher, mas esta voltou-lhe as costas e desapareceu entre a assistência, deixando atrás dela um chorrilho de maldições.
— Conte-nos o que se passou, Knox. É verdade que matou Powell? — perguntou Josiah ao pai de Graça, o qual se aproximou assim que a velha fugiu.
— Powell está morto no meu carro, mas foi um acidente...
Interrompeu-o um clamor de protestos, mas Josiah levantou os braços, a reclamar silêncio, e o homem prosseguiu:
— Ainda que me façam em pedaços, afirmo que não lamento o que aconteceu a esse desavergonhado, a esse velho libertino! O canalha entrou no nosso carro, com a intenção de abusar de minha filha, e ela pegou numa faca, para defender-se. Powell, abraçou-a, o carro entrou num buraco e, com um solavanco, caíram os dois. Graça afirma, e eu acredito-a, que foi por acidente que a faca se lhe espetou no pescoço, mas mesmo que fosse de outro modo estaria ao lado dela!
A expectativa era enorme, pareciam todos pendentes dos lábios de Josiah, chefe da expedição e chefe espiritual da caravana de mórmones a caminho do Lago Salgado.
— Onde está Powell? — perguntou simplesmente o velho, passado um minuto de silêncio.
No mesmo instante, fora do círculo que o rodeava, irromperam lamentações e gritos femininos. A atenção do grupo fixou-se então nas mulheres que tiraram o cadáver de Powell do carro de Knox e o estenderam no chão, entre frases de dor e ameaças aos assassinos. Josiah segurou num braço de Bryce, o guia, e disse--lhe:
— Escute, meu filho. Se é verdade o que o senhor Knox nos contou, não serei eu que o acuse ou exija a sua vida, ou a da-filha, em troca da de Powell... Proporei um julgamento esta noite. Entretanto, acompanhe-os ao carro e tome conta deles. Compreendeu?
Em seguida, ajudado por vários homens, o velho organizou o funeral da vítima. Abriram uma sepultura funda perto do carroção onde encontrara a morte, e a ela fizeram descer o corpo de Powell, acompanhado por uma oração murmurada por Josiah, sem grande convencimento, e pelos lamentos histéricos das suas mulheres.
Quinze minutos depois, a ordem de marcha percorria os carros, do princípio ao fim e a caravana prosseguia no seu caminho, preguiçosamente, sob o sol escaldante. No carro de Knox, sentado no banco ao lado do velho, seguia o jovem que tão eficazmente interviera para evitar o seu linchamento.
— Não podia permitir — dizia — que lhe dessem tão infamante morte. Sempre o considerei um bom homem, por isso não me detive sequer a pensar se esses mórmones teriam ou não razão e decidi ajudá-lo... embora reconheça que a ajuda mais efetiva foi a de Josiah.
— Bom homem, esse Josiah — observou Knox. — O facto de professar crenças religiosas erradas não o impede de ser uma pessoa justa. Seja como for, creio que fizemos mal em querer atravessar a pradaria com esses fanáticos.
— Teriam perdido um tempo precioso, se o não fizessem; é difícil organizar uma caravana tão poderosa com gente de outras classes. De resto, quem sabe, talvez se viajassem com outros companheiros os incidentes fossem ainda piores — replicou o rapaz.
— Piores? — perguntou o velho, tristemente, atento à condução do veículo. — Prometeram-me um julgamento esta noite... Um julgamento no qual tomarão parte, como juízes e jurados, os mesmos homens que há pouco só por milagre não me mataram. Ainda crê que possa existir situação mais difícil?
Entardecia. Os animais tinham-se tornado mais nervosos, levantavam a cabeça, para melhor aspirarem o ar, e emitiam um concerto de relinchos. Graça, que ocupava agora o lugar de Bryce, o qual, por sua vez, substituirá Knox na condução do carro, perguntou, com um estremecimento:
— Que terão os animais? Pressentirão a proximidade da morte? Acha, Bryce, que enforcarão meu pai?
O rapaz puxou as rédeas, sustendo os animais que pareciam ansiosos por iniciar um galope perigoso para o carro que puxavam.
— Que tolice! — exclamou, a sorrir, olhando-a de soslaio. — Não compreendeu que os cavalos perceberam que estamos perto da água e relincham de contentamento? Quanto ao seu pai, não esteja preocupada. Tenho cá o meu plano e se esses velhacos insistirem nas suas manias homicidas deixá-los-emos no meio da pradaria...
A rapariga chegou-se mais para ele, deu-lhe o braço e perguntou, satisfeita:
— Sério, Bryce? Fará tanto por nós?
O rapaz esqueceu-se por momentos dos cavalos e fitou os olhos repletos de gratidão da jovem.
— Não imagina do que eu seria capaz, Graça!
Talvez tencionasse fazer-lhe qualquer confidência íntima, mas uma sucessão de vozes fez-se ouvir nesse momento:
— O rio! O rio! Água! Preparar para acampar!
— Água... — repetiu Graça, num murmúrio, toda trémula. — Temia este momento. Agora...
Formou-se um círculo enorme de carros, e homens e cavalgaduras correram para a estreita faixa do rio. Havia risos e gritos de alegria, nada parecia pressagiar a tragédia que iria ocorrer. Bryce e Knox desatrelaram os cavalos e deixaram-nos correr também para o rio, e depois, com odres e baldes, começaram a encher os barris do carro.
A noite descia sobre o acampamento. Passada a euforia dos primeiros momentos, a alegria de disporem do precioso líquido com abundância, as várias famílias que compunham a caravana agruparam-se junto dos respetivos carroções, em volta das fogueiras onde preparavam a ceia.
O guia da expedição aceitou o prato de folha que Graça lhe estendeu, fez uma carícia nos cabelos do pequenito Alfredo e esforçou-se por comer os legumes que a jovem lhe servira. Não o conseguiu, porém. Desviou o prato e suportou os olhares que lhe dirigiam o pai e a filha.
— Falou com Josiah? — indagou o primeiro.
— Falei... Daqui a bocado chamarão os homens para se reunirem em assembleia...
O bom velho não pode evitá-lo. Reunir-se-ão em conselho para decidirem que fazer consigo, insistem em que foi você com certeza quem matou Powell.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual os quatro recomeçaram a comer. Por fim Bryce enrolou um cigarro e ofereceu tabaco ao outro. Um ruído metálico, como o bater numa frigideira, fez com que várias sombras se encaminhassem para o centro do acampamento. Bryce deixou-se ficar na mesma posição.
— Não vai assistir? — perguntou-lhe, temerosa, a rapariga.
— Para quê? Não me ouviriam... O nosso melhor defensor será o venerável Josiah. Eu faço mais falta aqui.
Meia hora depois, um homem afastou-se do grupo e aproximou-se do carro de Knox. Bryce ouviu-o, imperturbável:
— O nosso chefe, o venerável Josiah, pede a sua presença na assembleia. Quer acompanhar-me, senhor Bryce?
Antes de seguir o outro, o guia animou os amigos:
— Talvez seja bom sinal chamarem-me a mim... — Depois acrescentou, baixinho, para que o enviado não o ouvisse: — De qualquer modo, mantenha-se vigilante, senhor Knox.
Josiah estava sentado, mas sem abandonar o cajado em que se apoiava para andar.
— Sente-se, rapaz — convidou com um sorriso de simpatia, apontando-lhe com o cajado um lugar junto da fogueira.
Bryce obedeceu, sem o desfitar.
— Tenho boas notícias para o senhor Knox... segundo creio. Não houve julgamento, nem o haverá, de momento.
Decidimos — egoisticamente, reconheço-o — respeitar-lhe a vida enquanto durar a travessia da pradaria. Os perigos abundam nestas paragens e achámos preferível contar com mais um homem capaz de empunhar uma carabina contra os nossos inimigos comuns...
— Quer dizer...? — murmurou o rapaz.
— Que o julgamento de Alfredo Knox, pelo assassínio de Donald Powell, fica adiado até chegarmos ao Lago Salgado.
Bryce levantou-se, com as mãos perto das pistolas, e observou:
— Não é grande coisa, mas creio que o senhor Knox e os filhos se alegrarão...
Um grito dilacerante cortou a noite. Bryce voltou-se para o lado de onde partira -- o carro de Knox — e estremeceu ao ouvir as palavras angustiadas de Graça
— Pai, pai! Assassinos! Mataram-no... mataram--no!...
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