sábado, 26 de maio de 2018

BUF162.9 A fraternidade impossível

Assustada, Alisha Silk saiu do compartimento onde havia estado encerrada e tomou o caminho que Tomahawk havia escolhido para abandonar o «saloon». Pouco depois, abandonou a rua principal e caminhou pela povoação, ansiosamente, desejando encontrar alguém a quem poder falar, a quem prevenir do espantoso destino que o homem a quem amava havia escolhido.
Mas a povoação estava mergulhada num completo silêncio, e apenas o «saloon», que acabava de abandonar e que pela primeira vez pôde ver pela parte da frente, albergava ainda alguns bêbados que cantavam e jogavam no seu interior, aplaudidos pelas gargalhadas das mulheres que Delastone havia «convidado» para o seu feudo.
Sentiu-se só, desamparada. Deitou a andar, pela rua abaixo, abandonando a povoação e aproximando-se da margem do Arkansas River, olhando as águas que refletiam a luz da lua e que constituíam para ela um obstáculo intransponível.
Sentou-se junto das águas, ouvindo o longínquo estrondo da batalha que os soldados estavam a travar com os «cheyennes». E, a pouco e pouco, inclinando a cabeça, deixou que o pranto brotasse livremente dos seus formosos olhos, enquanto os seus ombros estremeciam ao ritmo dos espasmódicos soluços. As palavras de Tomahawk ainda soavam aos seus ouvidos:
«Não é possível que as nossas raças se unam, Alisha. O Destino dispôs que a minha seja exterminada, que não fiquem mais que uns quantos homens que, no futuro, serão mostrados aos curiosos como animais selvagens, como o resto de um povo poderoso que lutou valentemente em defesa das terras que o seu deus lhe havia confiado. A vossa civilização é maravilhosa, minha amiga, mas, no fundo, contém a mesma ferocidade que existe nos nossos velhos costumes. O pior de tudo é que os meios que a vossa inteligência pôs nas vossas mãos dão ao homem branco um pavoroso aspeto de animal civilizado, de horror elegante, de ordenada maneira de dar a morte aos seus semelhantes. Isto é o que eu penso do teu povo, Alisha.»
Tinha-o dito havia muito tempo, quando nas margens do lago Michigan, sentados como bons amigos, conversavam longamente. E, agora, as palavras voltavam a soar aos seus ouvidos, nas margens daquele rio distante, nos confins do Oeste, ante terras misteriosas que, mais tarde, como Tomahawk havia vaticinado, se abririam livremente à passagem dos colonos brancos, que acabariam por as conquistar para sempre.
«Pude estudar — havia dito também o jovem índio — as lutas que entre «rostos-pálidos», no outro lado do grande mar, nesse imenso território que chamais Europa, se desenrolam durante bastante tempo. Isso demonstra, Alisha, que o homem branco é acompanhado por uma maldição que tardará muito a extinguir-se. Nós não o veremos, minha amiga, mas as gerações futuras estremecerão de horror, pois o «rosto-pálido» será absolutamente incapaz de controlar as armas que a sua mente demoníaca lhe porá nas mãos. Nesses tempos que virão, quando o vosso povo não for mais do que uma recordação que divirta e distraia, as grandes nações dos «rostos—pálidos» chocarão entre si e despedaçar-se-ão como feras selvagens, argumentando sempre cada uma das partes que luta para melhorar uma civilização, embora no fundo isso não seja mais do que um pobre disfarce, tal como a pele de lobo que cobre os ombros dos nossos feiticeiros e que serve para influir sobre a mente ignorante dos pobres índios que acreditam nos seus poderes sobrenaturais. Da mesma maneira, muitos homens vestirão os seus falsos disfarces de profetas. E mulheres e crianças, anciãos e gente inocente, cairão sob as portentosas armas que os «rostos-pálidos» inventarão. E muito possível que nessa altura haja alguém que nos recorde, que defenda a nossa memória, que não possa esquecer que não fizemos outra coisa senão defender o solo legado pelos nossos antepassados: os territórios de caça, que eram a única base de nossa vida. E é muito possível que algum homem branco, ao escavar a pradaria onde os nossos ossos estejam enterrados, tenha umas palavras amáveis para uma raça que morreu por defender algo transcendente:' a fé na terra que o seu deus lhe havia entregado!
Alisha nunca soube o tempo que permaneceu ali, adormecida, com a cabeça apoiada no peito. De súbito, um ruído despertou-a e, erguendo o olhar, viu um grupo de soldados de cavalaria que começava a atravessar o rio para a margem onde se encontrava. Pôs-se de pé, agitando os braços como uma louca.
Mais tarde, quando os soldados estiveram a seu lado e quando pôde ver os seus uniformes destroçados, as ligaduras que cobriam muitos deles e as suas faces enegrecidas pela pólvora, estremeceu dos pés à cabeça e as lágrimas voltaram a brotar-lhe generosamente dos olhos. Um dos homens, com galões de coronel, deteve o seu cavalo junto da rapariga e desceu, aproximando-se dela com um triste sorriso nos lábios.
— Que faz aqui, menina? — perguntou o militar.
— Não sei — respondeu Alisha. — Vim para ver se podia atravessar o rio, a fim de o avisar de que o meu amigo, John Tomahawk, tinha ido lutar ao lado dos «cheyennes».
— Assim foi, menina — retorquiu o coronel. — Tomahawk lutou durante toda a noite contra nós, da mesma forma que o fizeram os demais guerreiros «cheyennes». Mas agora — acrescentou com um fio de voz, — tudo terminou.
Ela não perguntou mais. Deu-se conta de que todos os guerreiros «cheyennes», incluindo John, haviam terminado como ele desejava fazê-lo: lutando, para penetrarem de cabeça erguida naqueles fantásticos territórios de caça que um deus cruel e implacável, Manitu, lhes havia prometido. Sentiu que as pernas lhe fraquejavam, e se não fosse socorrida pelos braços fortes do coronel teria tombado no solo.
— Vamos, menina. Venha connosco para a povoação. Temos de castigar os verdadeiros culpados. «Nariz Achatado», antes de morrer, enquanto se esvaía em sangue no solo, contou-nos toda a verdade. Estava arrependido do que fizera, pois fora ele o causador da morte de «Águia Corredora»; mas ao ver que o filho do homem a quem assassinara voltava na companhia do seu, depois de lhe perdoar a vida, para lutar ao lado do seu povo, sentira-se profundamente comovido e arrependido. Há homens nessa povoação que vão ser castigados, porque eles foram os verdadeiros culpados.
Montaram Alisha num cavalo e, pouco depois, penetraram na povoação. Os oficiais do coronel não tardaram, porém, a comunicar-lhe que a justiça havia sido feita e que Tomahawk havia terminado para sempre com a vida dos dois homens que restavam do fatídico bando.
Pueblo continua a existir. É agora uma formosa e limpa cidade, um sitio maravilhoso nas margens de um rio que é cruzado por pontes formidáveis. Passaram-se muitíssimos anos desde aquele tempo em que os primeiros brancos se atreveram a atravessar o estado do Colorado, aproveitando-se da bondade de um homem que se chamou «Águia Corredora».
Nos tempos modernos, aqueles em que vivemos, as pessoas já quase não pensam naquelas horas de paixão, de luta e de combate, quando os Estados Unidos da América estavam a ganhar a sua prosperidade e eram os pioneiros que defendiam cada parcela de terra, cada acre de pastos, muitas vezes com o seu próprio sangue. n muito provável que alguém tenha escrito a verdade sobre o que ocorreu nas margens do Arkansas River.
Também é muito possível que essa mesma pessoa haja meditado tristemente sobre aqueles homens de raça branca que, esquecendo tudo, não pensaram senão em levar por diante a sua desmedida ambição. Há já muitíssimos anos que os ossos dos «cheyennes», que caíram a lutar valentemente perto do Arkansas River, se misturaram com a terra, agora cultivada, onde se erguem formosas granjas, em cujas proximidades passam automóveis e sobre as quais voam, de vez em quando, como flechas de prata, os mais modernos aviões. Mas o que é certo é que ninguém terá recordado as palavras de Tomahawk.
E esses homens de hoje, que acabam de regressar da Europa e do Pacifico, onde se viram envolvidos por uma onde de sangue e de terror, estremeceriam de ternura se houvessem conhecido aquele jovem índio, aquele simpático John Tomahawk, como lhe chamavam em Chicago, que sonhara um dia com uma fraternidade que, até agora, parece não passar de uma quimera, de uma utopia sem esperança.
FIM 

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