Uma luz avermelhada começou a inundar o céu, para as bandas do Oriente, prenúncio de que em breve o Sol se mostraria, preguiçoso.
Na longa fila de carros ouvia-se apenas o bater de louças de cozinha, até que uma voz forte e viril soltou o conhecido grito de marcha:
— Avante, avante! O dia é curto e o caminho grande! Avante, irmãos!
O grito, pronunciado primeiro pelo chefe da caravana, foi repetido por diferentes gargantas, até que um dos carros se pôs em movimento, desfez o círculo formado durante a noite e iniciou o lento rodar das suas pesadas rodas.
Ao primeiro veículo seguiu-se outro, e outro, até que, poucos minutos passados, os carros pareciam, de longe, uma formidável serpente a rastejar pela ondulada pradaria. O sol subiu e os seus raios, ao tornarem-se perpendiculares, tornaram mais lento o já de si lento e penoso avanço.
Ao meio-dia, o homem que conduzia o último carro da caravana voltou a cabeça ao ouvir uma voz que lhe perguntava, ao seu lado:
— Pai, é verdade que logo à tarde acamparemos junto de um rio?
O homem sorriu e piscou um olho cúmplice ao filho de pouca idade que compartilhava com ele o banco. Depois respondeu, de novo atento aos cavalos:
— Que pergunta, filha! Bem ouviste o senhor Bryce garantir que assim seria, ontem à noite... Mas deves lembrar-te de que nos recomendou que poupássemos a água, não fosse o rio estar seco.
A jovem esboçou um gesto de amuo que teve o condão de tornar mais amplo o sorriso do pai.
— Devemos ser otimistas, Graça. Podes lavar-te.... Era isso que querias saber, não era?
— Obrigada, pai!
Alegremente, a rapariga cerrou os dois bocados de lona que formavam a porta da casa-rolante, passou por cima dos sacos e diversos objetos que enchiam o interior e repetiu a operação com as duas lonas da retaguarda, mergulhando assim o carro numa semiobscuridade.
Em seguida colocou um balde sobre um caixote e, servindo-se de um púcaro de folha, encheu-o com a água que tirava de um barril, cuidadosamente, como se se tratasse do mais precioso dos licores e não de simples água já muito mole. Depois puxou pela cabeça a blusa que vestia, operação complicada pela sua maravilhosa cabeleira negra, desapertou o cinto e a saia caiu-lhe aos pés.
Na luz incerta do interior brilharam as roupas brancas da rapariga. A seguir levou as mãos às costas, desabotoou a combinação, que teve o destino da saia, e o milagre moreno do seu corpo ficou nu. A brancura da roupa caída no chão fazia ressaltar ainda mais a cor de bronze do corpo jovem.
Graça sentia-se feliz. Havia vários dias que alienas podiam servir-se da água para aplacar a sede, mas ela apartara sempre da sua ração uma pequena quantidade para um asseio sumário. O que ia fazer, agora podia considerar-se um esbanjamento do precioso líquido, um verdadeiro luxo.
Inclinou-se, encheu as mãos de água morna e refrescou os braços e o peito, deliciada. Repetiu a operação, inocentemente, com a falta de recato de quem se julga a coberto de olhares estranhos e não oculta intimidades.
Sem dúvida Graça ter-se-ia coberto rapidamente se olhasse para a parte posterior do carro onde, na estreita fresta entre os dois pedaços de lona, uns olhos brilhavam com lúbricos reflexos. Foi talvez a sensação que invade os que estão a ser observados em segredo que a levou, ao mergulhar pela terceira vez as mãos no balde, a olhar na direção da retaguarda.
Que surpreendeu o miserável demonstrou-o o movimento rápido e instintivo como que agarrou na roupa que abandonara ao alcance da mão e se cobriu.
Toda a tremer, não se atreveu a gritar ou a fugir porque, tão fugaz fora a visão das pupilas intrusas, que receava tratar--se apenas de ilusão dos seus sentidos. As suas dúvidas não tardaram, porém, a desfazer-se: duas mãos peludas afastaram com gesto brusco as cortinas de lona, e um rosto de homem surgiu na abertura. Tratava-se de Bernardo Powell, o indivíduo mais repulsivo da caravana.
Com os seus cinquenta anos bem puxados, não perdera ocasião, desde a partida de Independente, de incomodá-la com galanteios, se assim podia chamar-se às palavras maliciosas e aos olhares afrontosos que constantemente lhe lançava.
O sorriso canalha e o piscar de um dos seus olhos pequeninos pareceram tornar ainda maior a cara gorda de Powell, coberta de barba hirsuta.
Graça avaliou o perigo que representaria denunciar com os seus gritos a ação infame do homem, pois o pai sem dúvida acorreria e acontecia alguma desgraça. Por isso cobriu-se o melhor que pôde e dirigiu-se para o fundo do carro, disposta a correr a lona que o patife descerrara.
Quer interpretasse mal a sua atitude, quer não, o infame aproximou mais o cavalo, puxou pelas rédeas para obrigá-lo a virar um pouco, poder agarrar-se ao veículo e saltar-lhe para dentro.
Ao observar a manobra do intruso, Graça estacou e depois recuou, ao mesmo tempo que soltava um grito de alarme. O pai, porém, não a ouviu, devido ao barulho tremendo que a acompanhava a caravana: relinchos das cavalgaduras, chiar de rodas, vozearia...
Powell contemplou-a um instante, sorridente, parado no que podia chamar-se o umbral da vivenda-rolante, inclinado para a frente e com os braços abertos, como a cortar-lhe a passagem.
A rapariga já não gritava. Fulminava o atrevido com o olhar, de queixo estendido num gesto de desafio, vencido o primeiro instante de surpresa, com as mãos a aconchegar a roupa que a cobria. O homem avançou uns passos, oscilando ao compasso dos solavancos do carro.
Graça prendeu com o queixo uma ponta da bata, libertando uma das mãos, e pegou numa enorme faca de cozinha.
— Fora daqui, velho asqueroso! — ordenou, de faca em punho. — Se dá mais um passo corto-lhe o pescoço!
Powell sorriu ainda mais e estendeu as mãos, alheio ao perigo, para tentar acariciar o braço armado.
— Quieta, ferazinha! Essa faca deve servir-te apenas para a cozinha, nada mais. Por que és tão arisca? Tantas vezes te tenho dito que se quisesses ser minha mulher... Ou julgarás que albergo más intenções a teu respeito?
Enquanto falava, o homem aproximava-se e, sem se importar com a lâmina afiada, passou os dedos ásperos pelo braço da jovem. Graça recuou, enojada com o contacto, e ameaçou:
— Matá-lo-ei, canalha, matá-lo-ei! Saia imediatamente ou...
— Qual matas, qual nada, minha linda! Conheço as mulheres e sei que, no fim, serás toda mel e doçura... Amo-te, Graça, eu...
Cego pela paixão e surdo a toda a ameaça, agarrou-a pela cintura e puxou-a para si... Um solavanco enorme atirou com o par enlaçado ao chão. Antes de cair, Graça gritou desesperadamente, cheia de repugnância, sem atrever-se contudo a servir-se da faca. Caída sobre ele, levantou-se bruscamente, satisfeita por não a prender, como seria de esperar.
De súbito sentiu uma humidade morna na mão direita, a que empunhava a faca que não largara, e ficou estupefacta ao vê-la manchada de sangue, pois não sentira qualquer dor. Não tardou, porém, a compreender. Largou a faca, levou ambas as mãos à cabeça e, antes mesmo que os seus olhos comprovassem o que receava, soltou um grito de loucura. A seus pés, preso na imobilidade da morte, jazia o homem, com a jugular cortada. A obscuridade relativa do interior do carro foi bruscamente iluminada pela abertura das lonas da parte da frente, e o pai de Graça gritou:
— Filha! Que aconteceu? Oh!... Santo Deus!
Alfredo Knox apertou nos braços a infeliz Graça, desfeita em pranto, e encontrou resposta para a sua pergunta ao observar Powell estendido no chão, com a garganta aberta. Julgando compreender o que acontecera, bateu carinhosamente nas costas da filha.
— Fizeste bem, Graça. Se esse desavergonhado tentou...
A rapariga levantou a cabeça e murmurou:
— Não foi isso, pai, embora... embora ele tentasse fazer o que imaginas. Tratou-se de um acidente: quando me abraçava e eu resistia, o carro deu um grande solavanco... caímos e, como agarrara na faca para assustá-lo...
— Fosse como fosse, teve o que merecia. O pior será essa gente... Mas não tenhas medo, estou eu aqui para defender-te.
Um garotito, Alfredo, abraçou-se às pernas de ambos, olhando horrorizado o morto.
— Graça... pai!
O pai acariciou-lhe a cabeça, obrigando-o a olhar para outro lado e empurrando-o para o banco, de onde saíra.
— Veste-te, Graça. Se tivemos a sorte de ninguém ouvir os teus gritos, talvez possamos atirar esse cão para qualquer lado sem o saberem.
Knox voltou para o banco e viu com desagrado que, naqueles breves instantes, os cavalos se haviam desviado um bocado do caminho e se atrasado em relação ao carro precedente. Para cúmulo, aproximava-se um cavaleiro, de braço levantado e a gritar:
— Eh, senhor Knox, que lhe aconteceu? Ter-se-á cansado de seguir-nos e quererá meter por outra direção?
O pai de Graça corrigiu imediatamente a marcha dos animais e disse entre dentes ao pequenito sentado a choramingar a seu lado:
— Por favor, Alfredo! Precisas de portar-te como um homem, compreendes? Estamos num aperto e não convém que te vejam chorar. Vamos, limpa as lágrimas.
O pequenito limpou os olhos com as mãos e sorveu as lágrimas que lhe tinham chegado à comissura dos lábios.
— Que aconteceu, avô? — perguntou de novo o cavaleiro, conjugando o andamento da sua montada com a do carro. — Adormeceu, não? Quer que tome o seu lugar por instantes?
— Adormeci, sim, foi isso... Obrigado, rapaz, mas já estou bem acordado e capaz de manejar as rédeas até ao Lago Salgado! — brincou Knox, desejoso de despistar o Mato.
— Como quiser, senhor Knox... E Graça? Não a vimos cavalgar toda a manhã...
O rapaz olhou para dentro do carro, mas, felizmente, do lugar onde estava pouco podia ver.
— Está aí para dentro, atarefada... Uma mulher tem sempre que fazer em casa, mesmo que a casa seja um carroção como este — respondeu Alfredo.
O cavaleiro afrouxou mais o passo do cavalo, sem dúvida com a intenção de seguir atrás do carro e alegrar a vista com a contemplação da jovem. Entristeceu, porém, ao ver a lona corrida. Encolheu os ombros e...
De súbito uma risca vermelha saltou-lhe à vista. Ou melhor, uma sucessão de pontos vermelhos que, formando regueiro, o carro de Alfredo Knox deixava atrás de si, perfeitamente visíveis na zona limpa de vegetação que atravessavam.
Cheios de suspeitas, os olhos do homem fitaram-se nas lonas corridas do carro. Por fim obrigou a montada a aproximar-se da retaguarda e, com um gesto brusco, afastou as cortinas.
Tão surpreendido ficou que se esqueceu de incitar o cavalo, o qual ficou parado enquanto o carro se afastava lentamente e, com ele, a cena macabra que o deixara como que atordoado: no chão, caído, encontrava-se um indivíduo que não identificara, com uma grande mancha de sangue no pescoço, e mais adiante, encolhida num canto, a figura inerte da rapariga, com os grandes olhos cheios de medo ou, talvez, de loucura.
Instigou o cavalo e, de Colt em punho, disparou para o ar até despejar o tambor, com a intenção de dar o alarme à caravana. O carro distante que abria a marcha estacou; o segundo fez o mesmo e, a pouco e pouco, todos pararam. O barulho dos carros aos solavancos pelo caminho acidentado foi substituído pela algazarra dos homens e das mulheres, que queriam saber os motivos do tiroteio.
O autor dos disparos aproximou-se então de Alfredo Knox, cuja palidez demonstrava bem o receio que sentia de ter sido descoberto.
— Quem é o ferido que levam no carro? — perguntou-lhe o rapaz.
Os olhos do pai de Graça apequenaram-se, sem dúvida para melhor apreciar o efeito da sua declaração:
— Essa carantonha é a do Powell... — murmurou.
O rapaz franziu as sobrancelhas, puxou as rédeas ao cavalo e fê-lo recuar, sem deixar de fitar Knox, certamente para ter maior liberdade de movimentos no caso de o velho fazer qualquer gesto agressivo e se tornar necessário o uso das armas.
— Porque o assassinaram, Knox? — perguntou em voz alta, da sua nova posição.
— Que dizes, Natan? — indagou outro homem. — Quem assassinaram?
Cerca de uma dúzia de homens rodearam Natan, que apontou de maneira acusadora Alfredo Knox:
— Ele o confessou! Está um homem coberto de sangue no carro e ele disse que era o Powell. Assassinou-o! A lona atrás do bando onde estavam sentados o velho e o pequeno descerrou-se e surgiu o rosto de extraordinária beleza de Graça. Com as mãos crispadas nas cortinas, a rapariga exclamou, angustiada:
— Não é verdade! Foi um acidente... Matei-o eu, mas não por minha vontade. O maldito velho tentou violentar-me, ameacei-o com uma faca, caímos, e foi então que ele se feriu, mas sem que eu o tivesse feito...
Três mulheres desataram a gritar ao mesmo tempo: três velhas harpias, todas elas esposas de Powell, as quais, arrastadas para o carro pela curiosidade, acabavam de tomar conhecimento da morte do marido. Uma delas, alta e suja, apontou a rapariga e gritou:
— É uma cadela! Matou-o! Sempre vimos como comprometia o nosso bom Donald e, agora, matou-o! Castigai-a! Matai esses ímpios que se atreveram a pôr mãos pecadoras num dos vossos irmãos!
Vários homens saltaram dos cavalos e aproximaram--se ameaçadores de Alfredo Knox que, agarrando no chicote com que fustigava os animais, o brandiu sobre a cabeça dos atacantes. A ponta de couro estalou, sem tocar em ninguém, pois o velho pretendia mais intimidar do que ferir. Todavia ninguém recuou.
Um dos homens pôs um pé nos estribos, agarrou-se com uma das mãos ao banco e, soerguendo o corpo, tentou agarrar com a outra os pés de Knox. Este, ante a necessidade imprescindível de defender-se, pregou-lhe um pontapé na cara e fê-lo cair, com um uivo de dor, sobre os que o seguiam. Frágil vitória da sua parte, pois serviu apenas para exaltar o ânimo dos atacantes, já de si exacerbado pelos gritos das velhas:
— Sempre disse que estes malditos ímpios nos trariam má sorte! — vociferava a que falara antes. — Consentis que se riam de vós? Que espécie de homens sois que deixais um só assassino fazer-vos frente? Em breve se tornou notório que a turba não hesitaria em linchar um homem desarmado e inocente. Se Knox logrou levar a melhor sobre o primeiro que tentou agarrá-lo, a sua resistência tornou-se a seguir inútil, pois vários indivíduos cercaram o carro e, enquanto uns o atacavam pelos lados, outros, mais espertos, entravam pela retaguarda.
No interior, Graça gritava e atacava três homens, disposta a defender o pai com unhas e dentes. Mas, como era inevitável, nada conseguiu. Um deles deu-lhe um murro e o caminho ficou livre.
Quando chegaram ao banco, porém, já Alfredo Knox era arrebatado por uma multidão de braços e mãos furiosas, e apenas o pequenito de sete anos lá se encontrava, encolhido e a chorar desabaladamente, com as mãos a taparem o rosto. Graça surgiu também, com a blusa rasgada pela luta, e teve ainda tempo de ver passarem uma corda pelo pescoço do pai, enquanto uma voz bradava:
— Arrastemo-lo! Como não há árvores aqui por perto, enforcar-se-á arrastando-se pelo chão! Afastaram-se todos, para o puxar, enquanto o pobre Knox se debatia no esforço inútil para largar o laço que o afogava. Horrorizada, Graça julgou enlouquecer ao ver a maneira infame como arrastavam o pai, ante a sua impotência de mulher.
Na longa fila de carros ouvia-se apenas o bater de louças de cozinha, até que uma voz forte e viril soltou o conhecido grito de marcha:
— Avante, avante! O dia é curto e o caminho grande! Avante, irmãos!
O grito, pronunciado primeiro pelo chefe da caravana, foi repetido por diferentes gargantas, até que um dos carros se pôs em movimento, desfez o círculo formado durante a noite e iniciou o lento rodar das suas pesadas rodas.
Ao primeiro veículo seguiu-se outro, e outro, até que, poucos minutos passados, os carros pareciam, de longe, uma formidável serpente a rastejar pela ondulada pradaria. O sol subiu e os seus raios, ao tornarem-se perpendiculares, tornaram mais lento o já de si lento e penoso avanço.
Ao meio-dia, o homem que conduzia o último carro da caravana voltou a cabeça ao ouvir uma voz que lhe perguntava, ao seu lado:
— Pai, é verdade que logo à tarde acamparemos junto de um rio?
O homem sorriu e piscou um olho cúmplice ao filho de pouca idade que compartilhava com ele o banco. Depois respondeu, de novo atento aos cavalos:
— Que pergunta, filha! Bem ouviste o senhor Bryce garantir que assim seria, ontem à noite... Mas deves lembrar-te de que nos recomendou que poupássemos a água, não fosse o rio estar seco.
A jovem esboçou um gesto de amuo que teve o condão de tornar mais amplo o sorriso do pai.
— Devemos ser otimistas, Graça. Podes lavar-te.... Era isso que querias saber, não era?
— Obrigada, pai!
Alegremente, a rapariga cerrou os dois bocados de lona que formavam a porta da casa-rolante, passou por cima dos sacos e diversos objetos que enchiam o interior e repetiu a operação com as duas lonas da retaguarda, mergulhando assim o carro numa semiobscuridade.
Em seguida colocou um balde sobre um caixote e, servindo-se de um púcaro de folha, encheu-o com a água que tirava de um barril, cuidadosamente, como se se tratasse do mais precioso dos licores e não de simples água já muito mole. Depois puxou pela cabeça a blusa que vestia, operação complicada pela sua maravilhosa cabeleira negra, desapertou o cinto e a saia caiu-lhe aos pés.
Na luz incerta do interior brilharam as roupas brancas da rapariga. A seguir levou as mãos às costas, desabotoou a combinação, que teve o destino da saia, e o milagre moreno do seu corpo ficou nu. A brancura da roupa caída no chão fazia ressaltar ainda mais a cor de bronze do corpo jovem.
Graça sentia-se feliz. Havia vários dias que alienas podiam servir-se da água para aplacar a sede, mas ela apartara sempre da sua ração uma pequena quantidade para um asseio sumário. O que ia fazer, agora podia considerar-se um esbanjamento do precioso líquido, um verdadeiro luxo.
Inclinou-se, encheu as mãos de água morna e refrescou os braços e o peito, deliciada. Repetiu a operação, inocentemente, com a falta de recato de quem se julga a coberto de olhares estranhos e não oculta intimidades.
Sem dúvida Graça ter-se-ia coberto rapidamente se olhasse para a parte posterior do carro onde, na estreita fresta entre os dois pedaços de lona, uns olhos brilhavam com lúbricos reflexos. Foi talvez a sensação que invade os que estão a ser observados em segredo que a levou, ao mergulhar pela terceira vez as mãos no balde, a olhar na direção da retaguarda.
Que surpreendeu o miserável demonstrou-o o movimento rápido e instintivo como que agarrou na roupa que abandonara ao alcance da mão e se cobriu.
Toda a tremer, não se atreveu a gritar ou a fugir porque, tão fugaz fora a visão das pupilas intrusas, que receava tratar--se apenas de ilusão dos seus sentidos. As suas dúvidas não tardaram, porém, a desfazer-se: duas mãos peludas afastaram com gesto brusco as cortinas de lona, e um rosto de homem surgiu na abertura. Tratava-se de Bernardo Powell, o indivíduo mais repulsivo da caravana.
Com os seus cinquenta anos bem puxados, não perdera ocasião, desde a partida de Independente, de incomodá-la com galanteios, se assim podia chamar-se às palavras maliciosas e aos olhares afrontosos que constantemente lhe lançava.
O sorriso canalha e o piscar de um dos seus olhos pequeninos pareceram tornar ainda maior a cara gorda de Powell, coberta de barba hirsuta.
Graça avaliou o perigo que representaria denunciar com os seus gritos a ação infame do homem, pois o pai sem dúvida acorreria e acontecia alguma desgraça. Por isso cobriu-se o melhor que pôde e dirigiu-se para o fundo do carro, disposta a correr a lona que o patife descerrara.
Quer interpretasse mal a sua atitude, quer não, o infame aproximou mais o cavalo, puxou pelas rédeas para obrigá-lo a virar um pouco, poder agarrar-se ao veículo e saltar-lhe para dentro.
Ao observar a manobra do intruso, Graça estacou e depois recuou, ao mesmo tempo que soltava um grito de alarme. O pai, porém, não a ouviu, devido ao barulho tremendo que a acompanhava a caravana: relinchos das cavalgaduras, chiar de rodas, vozearia...
Powell contemplou-a um instante, sorridente, parado no que podia chamar-se o umbral da vivenda-rolante, inclinado para a frente e com os braços abertos, como a cortar-lhe a passagem.
A rapariga já não gritava. Fulminava o atrevido com o olhar, de queixo estendido num gesto de desafio, vencido o primeiro instante de surpresa, com as mãos a aconchegar a roupa que a cobria. O homem avançou uns passos, oscilando ao compasso dos solavancos do carro.
Graça prendeu com o queixo uma ponta da bata, libertando uma das mãos, e pegou numa enorme faca de cozinha.
— Fora daqui, velho asqueroso! — ordenou, de faca em punho. — Se dá mais um passo corto-lhe o pescoço!
Powell sorriu ainda mais e estendeu as mãos, alheio ao perigo, para tentar acariciar o braço armado.
— Quieta, ferazinha! Essa faca deve servir-te apenas para a cozinha, nada mais. Por que és tão arisca? Tantas vezes te tenho dito que se quisesses ser minha mulher... Ou julgarás que albergo más intenções a teu respeito?
Enquanto falava, o homem aproximava-se e, sem se importar com a lâmina afiada, passou os dedos ásperos pelo braço da jovem. Graça recuou, enojada com o contacto, e ameaçou:
— Matá-lo-ei, canalha, matá-lo-ei! Saia imediatamente ou...
— Qual matas, qual nada, minha linda! Conheço as mulheres e sei que, no fim, serás toda mel e doçura... Amo-te, Graça, eu...
Cego pela paixão e surdo a toda a ameaça, agarrou-a pela cintura e puxou-a para si... Um solavanco enorme atirou com o par enlaçado ao chão. Antes de cair, Graça gritou desesperadamente, cheia de repugnância, sem atrever-se contudo a servir-se da faca. Caída sobre ele, levantou-se bruscamente, satisfeita por não a prender, como seria de esperar.
De súbito sentiu uma humidade morna na mão direita, a que empunhava a faca que não largara, e ficou estupefacta ao vê-la manchada de sangue, pois não sentira qualquer dor. Não tardou, porém, a compreender. Largou a faca, levou ambas as mãos à cabeça e, antes mesmo que os seus olhos comprovassem o que receava, soltou um grito de loucura. A seus pés, preso na imobilidade da morte, jazia o homem, com a jugular cortada. A obscuridade relativa do interior do carro foi bruscamente iluminada pela abertura das lonas da parte da frente, e o pai de Graça gritou:
— Filha! Que aconteceu? Oh!... Santo Deus!
Alfredo Knox apertou nos braços a infeliz Graça, desfeita em pranto, e encontrou resposta para a sua pergunta ao observar Powell estendido no chão, com a garganta aberta. Julgando compreender o que acontecera, bateu carinhosamente nas costas da filha.
— Fizeste bem, Graça. Se esse desavergonhado tentou...
A rapariga levantou a cabeça e murmurou:
— Não foi isso, pai, embora... embora ele tentasse fazer o que imaginas. Tratou-se de um acidente: quando me abraçava e eu resistia, o carro deu um grande solavanco... caímos e, como agarrara na faca para assustá-lo...
— Fosse como fosse, teve o que merecia. O pior será essa gente... Mas não tenhas medo, estou eu aqui para defender-te.
Um garotito, Alfredo, abraçou-se às pernas de ambos, olhando horrorizado o morto.
— Graça... pai!
O pai acariciou-lhe a cabeça, obrigando-o a olhar para outro lado e empurrando-o para o banco, de onde saíra.
— Veste-te, Graça. Se tivemos a sorte de ninguém ouvir os teus gritos, talvez possamos atirar esse cão para qualquer lado sem o saberem.
Knox voltou para o banco e viu com desagrado que, naqueles breves instantes, os cavalos se haviam desviado um bocado do caminho e se atrasado em relação ao carro precedente. Para cúmulo, aproximava-se um cavaleiro, de braço levantado e a gritar:
— Eh, senhor Knox, que lhe aconteceu? Ter-se-á cansado de seguir-nos e quererá meter por outra direção?
O pai de Graça corrigiu imediatamente a marcha dos animais e disse entre dentes ao pequenito sentado a choramingar a seu lado:
— Por favor, Alfredo! Precisas de portar-te como um homem, compreendes? Estamos num aperto e não convém que te vejam chorar. Vamos, limpa as lágrimas.
O pequenito limpou os olhos com as mãos e sorveu as lágrimas que lhe tinham chegado à comissura dos lábios.
— Que aconteceu, avô? — perguntou de novo o cavaleiro, conjugando o andamento da sua montada com a do carro. — Adormeceu, não? Quer que tome o seu lugar por instantes?
— Adormeci, sim, foi isso... Obrigado, rapaz, mas já estou bem acordado e capaz de manejar as rédeas até ao Lago Salgado! — brincou Knox, desejoso de despistar o Mato.
— Como quiser, senhor Knox... E Graça? Não a vimos cavalgar toda a manhã...
O rapaz olhou para dentro do carro, mas, felizmente, do lugar onde estava pouco podia ver.
— Está aí para dentro, atarefada... Uma mulher tem sempre que fazer em casa, mesmo que a casa seja um carroção como este — respondeu Alfredo.
O cavaleiro afrouxou mais o passo do cavalo, sem dúvida com a intenção de seguir atrás do carro e alegrar a vista com a contemplação da jovem. Entristeceu, porém, ao ver a lona corrida. Encolheu os ombros e...
De súbito uma risca vermelha saltou-lhe à vista. Ou melhor, uma sucessão de pontos vermelhos que, formando regueiro, o carro de Alfredo Knox deixava atrás de si, perfeitamente visíveis na zona limpa de vegetação que atravessavam.
Cheios de suspeitas, os olhos do homem fitaram-se nas lonas corridas do carro. Por fim obrigou a montada a aproximar-se da retaguarda e, com um gesto brusco, afastou as cortinas.
Tão surpreendido ficou que se esqueceu de incitar o cavalo, o qual ficou parado enquanto o carro se afastava lentamente e, com ele, a cena macabra que o deixara como que atordoado: no chão, caído, encontrava-se um indivíduo que não identificara, com uma grande mancha de sangue no pescoço, e mais adiante, encolhida num canto, a figura inerte da rapariga, com os grandes olhos cheios de medo ou, talvez, de loucura.
Instigou o cavalo e, de Colt em punho, disparou para o ar até despejar o tambor, com a intenção de dar o alarme à caravana. O carro distante que abria a marcha estacou; o segundo fez o mesmo e, a pouco e pouco, todos pararam. O barulho dos carros aos solavancos pelo caminho acidentado foi substituído pela algazarra dos homens e das mulheres, que queriam saber os motivos do tiroteio.
O autor dos disparos aproximou-se então de Alfredo Knox, cuja palidez demonstrava bem o receio que sentia de ter sido descoberto.
— Quem é o ferido que levam no carro? — perguntou-lhe o rapaz.
Os olhos do pai de Graça apequenaram-se, sem dúvida para melhor apreciar o efeito da sua declaração:
— Essa carantonha é a do Powell... — murmurou.
O rapaz franziu as sobrancelhas, puxou as rédeas ao cavalo e fê-lo recuar, sem deixar de fitar Knox, certamente para ter maior liberdade de movimentos no caso de o velho fazer qualquer gesto agressivo e se tornar necessário o uso das armas.
— Porque o assassinaram, Knox? — perguntou em voz alta, da sua nova posição.
— Que dizes, Natan? — indagou outro homem. — Quem assassinaram?
Cerca de uma dúzia de homens rodearam Natan, que apontou de maneira acusadora Alfredo Knox:
— Ele o confessou! Está um homem coberto de sangue no carro e ele disse que era o Powell. Assassinou-o! A lona atrás do bando onde estavam sentados o velho e o pequeno descerrou-se e surgiu o rosto de extraordinária beleza de Graça. Com as mãos crispadas nas cortinas, a rapariga exclamou, angustiada:
— Não é verdade! Foi um acidente... Matei-o eu, mas não por minha vontade. O maldito velho tentou violentar-me, ameacei-o com uma faca, caímos, e foi então que ele se feriu, mas sem que eu o tivesse feito...
Três mulheres desataram a gritar ao mesmo tempo: três velhas harpias, todas elas esposas de Powell, as quais, arrastadas para o carro pela curiosidade, acabavam de tomar conhecimento da morte do marido. Uma delas, alta e suja, apontou a rapariga e gritou:
— É uma cadela! Matou-o! Sempre vimos como comprometia o nosso bom Donald e, agora, matou-o! Castigai-a! Matai esses ímpios que se atreveram a pôr mãos pecadoras num dos vossos irmãos!
Vários homens saltaram dos cavalos e aproximaram--se ameaçadores de Alfredo Knox que, agarrando no chicote com que fustigava os animais, o brandiu sobre a cabeça dos atacantes. A ponta de couro estalou, sem tocar em ninguém, pois o velho pretendia mais intimidar do que ferir. Todavia ninguém recuou.
Um dos homens pôs um pé nos estribos, agarrou-se com uma das mãos ao banco e, soerguendo o corpo, tentou agarrar com a outra os pés de Knox. Este, ante a necessidade imprescindível de defender-se, pregou-lhe um pontapé na cara e fê-lo cair, com um uivo de dor, sobre os que o seguiam. Frágil vitória da sua parte, pois serviu apenas para exaltar o ânimo dos atacantes, já de si exacerbado pelos gritos das velhas:
— Sempre disse que estes malditos ímpios nos trariam má sorte! — vociferava a que falara antes. — Consentis que se riam de vós? Que espécie de homens sois que deixais um só assassino fazer-vos frente? Em breve se tornou notório que a turba não hesitaria em linchar um homem desarmado e inocente. Se Knox logrou levar a melhor sobre o primeiro que tentou agarrá-lo, a sua resistência tornou-se a seguir inútil, pois vários indivíduos cercaram o carro e, enquanto uns o atacavam pelos lados, outros, mais espertos, entravam pela retaguarda.
No interior, Graça gritava e atacava três homens, disposta a defender o pai com unhas e dentes. Mas, como era inevitável, nada conseguiu. Um deles deu-lhe um murro e o caminho ficou livre.
Quando chegaram ao banco, porém, já Alfredo Knox era arrebatado por uma multidão de braços e mãos furiosas, e apenas o pequenito de sete anos lá se encontrava, encolhido e a chorar desabaladamente, com as mãos a taparem o rosto. Graça surgiu também, com a blusa rasgada pela luta, e teve ainda tempo de ver passarem uma corda pelo pescoço do pai, enquanto uma voz bradava:
— Arrastemo-lo! Como não há árvores aqui por perto, enforcar-se-á arrastando-se pelo chão! Afastaram-se todos, para o puxar, enquanto o pobre Knox se debatia no esforço inútil para largar o laço que o afogava. Horrorizada, Graça julgou enlouquecer ao ver a maneira infame como arrastavam o pai, ante a sua impotência de mulher.
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