Haviam-no deixado numa das tendas cónicas, mas bastante próximo da de seu pai, o chefe. O jovem índio lutava valentemente contra aquela pertinaz febre que lhe havia invadido o corpo. De cada vez que recordava as caçadas, as cavalgadas através da pradaria ou as escaladas às altas e recortadas montanhas do Colorado, Tomahawk, sem o poder evitar, sentia uma raiva incontivel e apertava os punhos, rangia os dentes e amaldiçoava mil vezes aquele calor que ia consumindo lenta, mas inexoravelmente, a pouca carne que lhe restava sobre os ossos.
Seu pai, o poderoso «Águia Corredora», não se havia limitado apenas a reunir à sua volta os feiticeiros da tribo «cheyenne» que comandava. Vários correios, cavalgando corcéis rápidos como o vento, haviam partido para solicitar a ajuda de outras tribos: a dos «arapahoe», que viviam ao Norte, a dos «kiowa» de Oklahoma, a dos «comanches», que viviam no outro lado do Canadian River, e a dos índios «pueblo», que haviam estabelecido o seu acampamento nas margens do Rio Grande, no Novo México.
Feiticeiros de todas aquelas tribos haviam acudido imediatamente, instalando-se à cabeceira do jovem Tomahawk; mas nenhum deles, fosse com mágicos exorcismos fosse com os filtros mais misteriosos, lograra reduzir a febre que consumia o jovem guerreiro.
Estendido no seu leito de peles, Tomahawk meditava tristemente naquela manhã, precisamente na altura em que a tribo «cheyenne» ia receber um homem branco muito importante, o major Lenver, que vinha de muito longe para assinar com os índios um tratado de paz. Se não estivesse enfermo, Tomahawk ocuparia um lugar à direita de «Águia Corredora», deixando a «Nariz Achatado», como lhe corresponda na escala hierárquica, o lugar à sua esquerda. Mas havia já muitas luas que a febre o mantinha prostrado no leito, e não era assim de repente que iria recobrar a saúde perdida.
O jovem, por vezes, chegava a pensar que devia ter cometido qualquer falta contra Manitu e que este, para se vingar, lhe ia procurar uma morte indigna, negando-lhe a oportunidade de a conseguir a lutar pela liberdade das terras dos seus irmãos que os rostos-pálidos iam conquistando a pouco e pouco. No fundo, o jovem índio alegrava-se de que os homens brancos viessem assinar um tratado de paz. Os «cheyennes», como outras tribos índias, haviam-se oposto valorosamente ao avanço esmagador dos carromatos dos colonizadores que continuamente iam chegando do Este.
Os guerreiros estavam cansados de derramar o seu generoso sangue, e as frontes dos chefes cobriam-se de rugas, tornando-se brancos os seus cabelos e trémulas as suas rudes mãos, que noutros tempos haviam empunhado, com coragem e decisão, as rédeas de um poder ameaçado por combates esgotantes e pertinazes.
Tomahawk suspirou. Pouco lhe podia importar já o que ocorresse no mundo, que, a pouco e pouco, se ia afastando dele, deixando-o só, com aquelas febres que reduziam a nada a sua carne forte e os seus músculos elásticos, levando-lhe até a cor da sua pele, que havia adquirido já uma feia cor acinzentada. O futuro da tribo havia-se escapado das suas mãos, e doía-lhe imaginar que outro homem, certamente o filho de «Nariz Achatado», o cruel «Raposa Astuta», fosse o sucessor de «Águia Corredora».
Enquanto o jovem se consumia com pensamentos pessimistas, um grupo de soldados americanos, sob o comando do major Lenver, homem alto, de rosto aberto e simpático, aproximava-se lentamente, depois de atravessar o Arkansas River, da aldeia dos «cheyennes». Os pensamentos do major Lenver também estavam muito longe de ser otimistas; também ele meditava profundamente na missão de que o haviam encarregado e cuja importância ressaltava por si mesma.
De todos os povos índios que os brancos combatiam em luta constante e terrível, só restavam os «cheyennes» como representantes de uma raça que não se dobrava facilmente, embora de ambos os lados se houvesse derramado já muito sangue.
No Norte, em Dakota, as tribos índias mais belicosas haviam sido empurradas definitivamente para Oeste, refugiando-se em Montana e em Wyoming, onde reinavam como donas absolutas dos «crow». Dessa maneira, o governo dos Estados Unidos da América havia conseguido limpar as férteis terras do Missouri da presença incómoda dos «sioux», dos ayankton», dos «arikara», dos «teton», dos «ponga», dos «omaha», doe «pawnee» e dos «oto». Havia sido uma luta desesperada, de muitos anos de duração. Mas, finalmente, apoiados pela força do exército, os colonos puderam ocupar aquelas terras férteis, sem outra oposição que não fosse a de pequenos grupos de diferentes tribos, sobretudo daquela que lhes faziam os belicosos «sioux». No entanto, até mesmo estes foram sendo dizimados ou escorraçados, ficando completamente limpa a ampla zona onde crescia, com decidido influxo, a colonização dos pioneiros, que se fixavam, pela primeira vez, em ambas as margens do rio Missouri. Mas o problema continuava de pé.
Para o Sul, para lá de Nebraska e de Wyoming, ficavam as terras do Colorado, que eram como a porta que ia permitir abrir-se caminho para as montanhas que conduziriam depois ao Novo México e à Califórnia, aquela maravilha que só alguns brancos tinham visto e haviam descrito com um colorido verdadeiramente fantástico.
O obstáculo principal que impedia a passagem dos colonizadores para as longínquas terras do Oeste eram precisamente os «cheyennes», índios pertencentes a uma tribo selvagem, belicosa, forte, mas nobre e disposta a defender as suas terras e os seus territórios de caça enquanto houvesse um único guerreiro de pé. Haviam sido inúteis as batalhas travadas entre os brancos e aquela tribo comandada pelo valoroso «Águia Corredora». Os «cheyennes» sabiam lutar e conheciam, palmo a palmo, o território que ocupavam, não apenas na parte baixa do Arkansas River, mas também nas altas montanhas, nos desfiladeiros perigosos, nos barrancos profundos e nos terrenos planos, mais para o Norte, já junto ao Nebraska. Moviam-se à velocidade do vento, cavalgando em pelo os seus corcéis pequenos, briosos, ágeis e rápidos como relâmpagos. Por isso, Washington, considerando como excessivo o sangue que a penetração naquela zona do país já havia custado, chegara à conclusão de que a melhor coisa a fazer era estabelecer um tratado com aquela belicosa tribo e conseguir assim que se permitisse a passagem dos colo-nos pelas suas terras, pagando inclusivamente aos índios e dando-lhes uma liberdade absoluta naquela região.
O major Lenver havia enviado muitos correios, com ofertas principescas, a «Águia Corredora», lendo depois as suas mensagens e conhecendo assim o modo de pensar do velho chefe índio, que parecia disposto a assinar aquele tratado de paz. Mas, apesar de tudo, Lenver continuava a desconfiar e desejava ardentemente encontrar um motivo mais poderoso para convencer os «peles-vermelhas». Por isso, naquele momento, à cabeça dos seus homens, que acabavam de atravessar a seu lado o Arkansas River, galopava pensativo, com o sobrolho franzido e um trejeito de preocupação desenhado nos seus lábios delgados.
O grupo americano não tardou muito a encontrar as primeiras forças que o chefe «cheyenne» havia enviado, não apenas para os escoltar, mas também para os vigiar estreitamente. Os guerreiros encontravam-se armados e limitavam-se a cavalgar de ambos os lados da coluna de soldados; à cabeça, a meia centena de metros do cavalo que o major Lenver montava, para lhes servir de guia, cavalgava um dos «cheyennes».
Pouco a pouco, o grupo foi-se aproximando do acampamento. Quando chegaram à periferia, o índio que servia de guia deteve-se e, por sinais, fez compreender ao major Lenver que apenas ele poderia penetrar na aldeia; aquilo significava que todos os seus homens deviam ficar por ali, rodeados de índios que os olhavam fixamente, sem poderem evitar o brilho do ódio que se lhes refletia nos olhos. A preocupação do major Lenver cresceu com aquela demonstração de desconfiança. Mas, fosse corno fosse, tinha de cumprir a sua missão.
Depois de descer do cavalo seguiu o índio, que também havia desmontado, e penetrou naquele mundo estranho. As tendas cónicas estendiam-se até onde a vista alcançava, demonstrando assim o poder e o número de guerreiros que viviam sob o comando de «Águia Corredora».
As crianças olhavam com «assombro para o homem de rosto branco, mas não exteriorizavam o seu espanto e permaneciam juntos das mães que, por sua vez as protegiam com as mãos. Muitas das tendas estavam cobertas de desenhos primitivos e de sinais que o americano não compreendia. Estava ali a lenda de cada família, os seus êxitos conseguidos na caça e na guerra.
Mas a habilidade política de «Águia Corredora» não tardou a ser comprovada pelo major Lenver, quando este se deu conta de que haviam sido escondidas as cabeleiras arrancadas aos brancos e que deviam abundar extraordinariamente naquele povoado. Foi algo que não deixou de o surpreender agradavelmente. E um assomo de sorriso surgiu-lhe nos lábios. Ao fim e ao cabo, e contra o que pensavam muitos dos seus companheiros do Este, os índios não careciam de sensibilidade. Era indubitável que havia entre eles homens inteligentes, de amplos pontos de vista, que nada tinham a invejar aos oficiais brancos. Isso mesmo fora demonstrado nos campos de batalha; haviam assimilado a tática utilizada pelos soldados dos Estados Unidos, não se oferecendo tão claramente com antes aos disparos das armas de fogo e criando a sua própria estratégia, que havia custado em muitas ocasiões verdadeiros rios de sangue.
Quando o major Lenver chegou às proximidades da enorme tenda cónica do chefe, este surgiu na entrada, vestido com o seu melhor traje e envergando um longo penacho de penas de águia, que lhe caía pelas costas e roçava pelo solo quando caminhava. Vestia uma jaqueta de pele de gamo com inscrições vermelhas e cabalísticas e umas calças da mesma pele, que lhe chegavam aos tornozelos e se perdiam ali numa série de franjas que calam com elegância sobre os seus mocassins finos, de cor parda. «Águia Corredora» já não era jovem. As rugas sulcavam-lhe profundamente a pele da cara e os olhos, brilhantes e resplandecentes, demonstravam a vitalidade que lhe pulsava ainda no interior do corpo. Tinha visto muitos homens brancos cair sob os golpes do seu machado de guerra, atravessados pelas flechas que disparava com habilidade surpreendente ou, mais tarde, derrubados por aquelas armas de fogo que os índios haviam aprendido a manejar com extraordinária eficácia. A sua alta estatura dava-lhe um aspeto imponente, e nem sequer pestanejou quando o branco se aproximou dele, levantando a mão direita em aberto sinal de paz.
Ao mesmo tempo que o imitava, retirava-se para um lado a fim de permitir ao homem branco a sua entrada na tenda onde iria celebrar-se o conselho. Os anciãos e os guerreiros mais importantes já se encontravam ali sentados havia muito tempo, fumando, meditando e discutindo pormenores do encontro que se avizinhava.
Lenver sentou-se no local que o chefe lhe indicou e, depois, observou com atenção os rostos estoicos, de expressão cerrada, que o rodeavam por completo. Notou imediatamente o olhar astuto de um índio, indubitavelmente chefe, que estava sentado à direita de «Águia Corredora». O major não gostou daquela expressão, nem do brilho daquele olhar, nem do sorriso cínico que lhe entreabria ligeiramente os lábios grossos. O nariz daquele índio era achatado, como se tivesse recebido um terrível golpe quando era jovem, e os seus orifícios eram amplos e desfeavam singularmente a expressão já desagradável da sua cara.
«Águia Corredora» foi ocupar o centro do semicírculo, defronte do homem branco. Houve uma longa pausa antes que o silêncio da tenda fosse rompido; mas, por fim, com voz clara e vibrante, o velho chefe índio disse:
— O «rosto-pálido» já pode falar. Os chefes e anciãos «cheyennes» aqui reunidos escutam-no com atenção. Que Manitu dê à sua língua o vigor suficiente para convencer os seus irmãos de pele-vermelha.
Lenver sorriu.
— Agradeço muito as palavras do meu irmão «Águia Corredora» — retorquiu. — Venho de muito longe, de uma grande cidade onde se estudou um pacto de paz para ser assinado sem perda de tempo. Já conheceis as condições: precisamos que os nossos colonos atravessem estas terras para irem mais longe, para chegarem a uma região onde nenhuma tribo se estabeleceu ainda. Garantimos em absoluto a segurança destes terrenos que vos pertencem e só vos pedimos que traceis um caminho para que os nossos irmãos possam alcançar as terras que ficam para lá das montanhas, a fim de que aí se estabeleçam e trabalhem como homens honrados. Infelizmente, já correu demasiado sangue entre nós. O homem branco conhece o valor do seu irmão «cheyenne» e sabe que não conseguiria nada com as armas na mão, que a guerra duraria muitas luas e que, finalmente, o sangue de uns e outros clamaria contra nós por não termos tido o discernimento de resolver tudo pelo formoso caminho da paz. Eu espero, «Águia Corredora», que a tua bondade tradicional me permita levar aos meus chefes o tratado assinado por ti.
O índio fez um gesto de assentimento.
— As palavras que o «rosto-pálido» pronunciou são boas — disse. — Se os «facas longas» estão cansados da guerra, os «cheyennes» também desejam a paz, como o demonstraram ao enterrar o machado de guerra há já muitas luas. Compreendemos perfeitamente os interesses dos nossos irmãos de pele pálida e o seu desejo de atravessarem as montanhas para colonizar terras que estão muito distantes daqui, e onde, como tu disseste, chefe branco, nenhuma tribo pode ser molestada porque ninguém vive ali. Discuti, com o meu conselho, os pormenores deste tratado; e a única coisa que exigimos, com toda a seriedade, é que os vossos colonos respeitem o nosso território e que jamais pensem em se fixar aqui. Porque então, «rosto-pálido», os «cheyennes» desenterrariam o machado de guerra e combateriam até que nenhum homem, nenhuma mulher e nenhuma criança da nossa aldeia ficasse de pé, cumprindo assim o juramento que fizemos ao nosso deus Manitu de não abandonar, por nada do mundo, o território que a sua bondade nos entregou para a caça e para a vida.
— Podes ter a certeza, «Águia Corredora», de que os colonos se limitarão apenas a atravessar estas terras. Tu mesmo marcarás o caminho, do qual jamais se afastarão. Os soldados do grande chefe branco de Washington farão que se cumpram as cláusulas do tratado e castigarão com dureza aqueles que as quebrarem. Mas há algo mais: agradecido pela tua bondade, o grande chefe branco de Washington está disposto a ajudar-te em tudo o que estiver ao seu alcance. Se a caça diminuir, se tiveres medo de que o mau tempo caia sobre estas terras e de que o teu povo passe fome, nós procuraremos enviar-vos viveres, mantas e medicamentos. Podereis assim viver com a confiança posta no nosso grande chefe branco. Assim mo disse e assim to digo, «Águia Corredora».
—Podes dizer ao grande chefe branco que as suas palavras me fizeram tanto bem como o bálsamo numa ferida recente. O conselho de «cheyennes», que aqui está reunido, marcou já o caminho que os «rostos-pálidos» terão de seguir através dos nossos territórios para atravessarem as montanhas. Escolhemos o melhor e o mais curto. Também podes estar seguro, irmão branco, de que ajudaremos aqueles colonos que se encontrarem em dificuldades, já que queremos que uma verdadeira fraternidade exista entre nós e que o machado de guerra seja enterrado definitivamente.
Naquele instante, um dos anciãos disse algumas palavras, pronunciadas muito rapidamente em língua «cheyenne». Antes que «Águia Corredora» pudesse responder àquela frase, «Nariz Achatado», segundo pôde observar o major, respondeu ao ancião de uma forma violenta. Mas o chefe dos «cheyennes», com um gesto e umas palavras secas, fez que «Nariz Achatado» se calasse. Depois, olhando o homem branco, disse:
— Um dos meus anciãos acaba de me recordar a dor que me enche o coração há já muito tempo. Falaste de ajuda, e eu não queria, nestes instantes, que julgasses que desejamos abusar da tua sincera proposta.
— De maneira nenhuma, grande chefe. Disse que vos ajudaríamos, e podemos começar a fazê-lo agora mesmo se estiver ao alcance da nossa mão.
— Muito obrigado. Trata-se do meu filho «Tomahawk».
— Aconteceu-lhe alguma coisa?
—Encontra-se enfermo desde há muitas luas. Está a ser consumido por uma febre maligna, e todos nós, os «cheyennes», estamos à espera de ter de queimar o seu corpo quando morrer.
Se não se tratasse de um momento tão importante, Lenver teria sorrido. Era precisamente a ocasião que esperava para demonstrar ao chefe índio a boa vontade e os propósitos excelentes que as autoridades americanas alimentavam em relação ao povo «cheyenne». Por isso, retorquiu com vivacidade:
— Está nas tuas mãos que tentemos algo pelo teu filho, grande chefe.
— Que queres dizer?
— Que estou disposto a levá-lo agora mesmo. Há grandes médicos entre nós que farão todos os possíveis por to devolverem são e salvo. Que dizes a isso?
«Águia Corredora» demorou bastante tempo a responder. Apesar de ser um homem inteligente, o atavismo da sua raça fazia-o desconfiar de uma maneira sincera dos misteriosos processos dos feiticeiros brancos. Tinha ouvido dizer muitas coisas sobre curas verdadeiramente milagrosas; e desejava, com ansiedade, que Tomahawk se pusesse bom depressa para fazer dele a futuro chefe da tribo. Olhou rapidamente para os anciãos. Nalguns rostos viu aprovação, noutros, desconfiança. Mas, de todos eles, o único que expressava a sua cólera incontável era o de «Nariz Achatado»; no entanto, o chefe dos «cheyennes» sabia perfeitamente o género de propósitos que se escondia no cérebro daquele chefe: no fundo do seu coração, desejava que Tomahawk morresse para que seu filho, «Raposa Astuta», fosse o futuro chefe da tribo. Foi aquilo precisamente que o decidiu, fazendo-o aceitar a oferta do homem branco.
—Vou confiar-te o meu filho, irmão «rosto pálido» — disse. — Ouvi falar da vossa magia e sei que é poderosa, mas antes quero advertir-te, com toda a nobreza, que mesmo que aconteça a infelicidade de o meu filho morrer nas vossas mãos eu não deixarei de crer que os feiticeiros brancos fizeram tudo para o salvar.
— De isso podes estar seguro, «Águia Corredora». Poremos em jogo todos os recursos que a ciência do homem branco possui para defender a vida do teu filho. E posso afirmar que, se houver alguma possibilidade de o salvar, to devolveremos são e salvo para que o convertas, mais tarde, num chefe tão sensato e bondoso como tu.
O resto das três horas que passou na tenda do chefe dos «cheyennes» foi para o militar estudar o caminho que os índios haviam assinalado através do seu território para permitir que por ali passassem os colonos brancos com destino ao outro lado das montanhas. Lenver pôde convencer-se perfeitamente de que as melhores intenções se albergavam no bondoso coração de «Águia Corredora»; e agradeceu-lhe, de uma maneira efusiva, todos os seus esforços para que o tratado assinado naquela mesma manhã tivesse vigência imediata. Depois, acompanhado pelo chefe índio, o major foi ver Tomahawk e surpreendeu-se com o estado grave em que ó jovem se encontrava.
Tomahawk havia feito já dezoito anos, mas sobre o seu corpo só restava uma pobre pele que marcava o contorno do forte esqueleto, outrora protegido por uma dura musculatura que devia ter sido o orgulho de «Águia Corredora».
O major voltou para junto dos seus homens e com a ajuda de alguns índios construíram uma padiola, que podia ser adaptada entre dois cavalos e sobre a qual seria fácil transportar o corpo do jovem índio. Os «cheyennes» acompanharam-nos até às margens do Arkansas River, e ali, antes que os «rostos-pálidos» se afastassem, o chefe aproximou-se de seu filho e, olhando-o com gravidade, disse-lhe:
— Manitu é grande, jovem Tomahawk. E muito possível que os seus desígnios misteriosos me tenham feito consentir que os magos brancos tentem a tua cura. Se Manitu quiser, voltarás tão forte como o eras noutros tempos, e de novo montarás e caçarás; e serás novamente o orgulho de teu pai que, velho e cansado, vê com angústia findarem os dias do seu mandato.
— Voltarei, pai — disse o rapaz, com um brilho de entusiasmo nos olhos.
Também ele confiava na poderosa magia dos «rostos--pálidos», da qual tinha ouvido falar muito, e esperava que a sorte o favorecesse naquela ocasião. Por outro lado, de certo modo alegrava-se de abandonar a tribo, não só para poder conhecer outras terras e outros rostos, mas, também, para que alguns guerreiros jovens, em especial o filho de «Nariz Achatado», «Raposa Astuta», deixassem de sorrir daquela maneira irónica de cada vez que, simulando piedade e compaixão, se aproximavam dele, pensando e desejando que jamais se convertesse no chefe dos «cheyennes».
Uma vez o tratado assinado, urna verdadeira avalancha de colonos começou a penetrar na zona controlada pelos «cheyennes». Dispostos a demonstrar aos «rostos-pálidos» que estavam decididos a honrar os seus compromissos, os índios deixaram que os brancos passassem pelas terras que até então apenas eles haviam pisado. Inclusivamente, agrupavam-se para ver os carromatos passarem e, por vezes, até saudavam os colonos com a mão ou aproximavam-se deles para receberem ofertas, orientando-os, em troca, para os lugares onde poderiam encontrar água ou onde ficariam melhor acampados. E dessa convivência foi nascendo um princípio de comércio, com intercâmbio de objetos variados...
Também os brancos respeitaram o tratado, e tropas do exército, procedentes dos fortes situados mais ao Norte, patrulhavam constantemente o caminho marcado para evitar que algum inconsciente pudesse ferir a suscetibilidade dos «peles-vermelhas».
Tudo corria às mil maravilhas, e durante meses e meses as caravanas atravessaram o território «cheyenne» sem que se produzisse o menor facto lamentável. Mas um homem, dentro da tribo, não deixava de retorcer o espirito obscuro em pensamentos cada vez mais odiosos. Era certo que continuava sem se receber notícia alguma do jovem índio que os brancos haviam levado para o deixarem entregue nas mãos dos seus poderosos magos; no entanto, «Nariz Achatado» sentia--se impotente para conter os sentimentos de raiva que lhe nasciam constantemente no coração dolorido. De cada vez que «Raposa Astuta», seu filho, e ele conversavam, o assunto focado por ambos era invariavelmente o mesmo: o futuro da tribo e a desgraça que para os dois representaria o regresso do jovem Tomahawk completamente curado.
«Nariz Achatado» havia pensado, por mais de uma vez, em romper a harmonia que o tratado havia criado entre brancos e índios. Sabia que era simples e fácil poder atacar algumas das caravanas e romper assim o tratado, desenterrando de novo o machado de guerra. Mas «Águia Corredora» não era um homem que se deixasse enganar com facilidade, e «Nariz Achatado» sabia perfeitamente que o velho chefe o fazia vigiar dia e noite, esperando que cometesse algum atentado contra o tratado para acabar com ele definitivamente.
Dos oito anciãos que compunham o conselho, dois deles davam o seu apoio a «Nariz Achatado»; mas era um número insignificante ante a maioria. Tinha de esperar, pacientemente, que a ocasião se apresentasse; e, então, aproveitá-la-ia sem hesitar, terminando assim com o mandato de «Águia Corredora» e deixando que o seu filho se apoderasse do comando da tribo para, sem perda de tempo, demonstrar aos «rostos-pálidos» que não podia pisar-se impunemente o território que Manitu havia dado ao povo «cheyenne». Quando, na companhia de seu filho, via das colinas a passagem das caravanas dos brancos, «Nariz Achatado» estremecia ao pensar nas riquezas que desfilavam ante ele, quase ao alcance da sua mão, sem sequer lhes poder tocar. Teria sido uma magnifica ideia cortar a passagem das caravanas e apoderar-se de tudo o que os carromatos levavam. A sua velha ambição não o deixava dormir tranquilo; e, quando nas longas noites se retorcia sobre o seu leito de peles, despertava a transpirar, angustiado, fechando os punhos até quase cravar as unhas nas palmas das mãos e pensando no que teria feito se se encontrasse no lugar de <Águia Corredora». Mas, por enquanto, tinha de esquecer aquelas ideias; tinha de as afastar da mente enquanto o velho chefe fosse vivo. Era questão de tempo e de paciência.
Os dias continuavam a correr como as águas intermináveis do Arkansas River. Quase se haviam passado dois anos desde que Tomahawk abandonara a sua aldeia quando seu pai recebeu, pela primeira vez, a grande e formosa notícia de que se havia curado por completo. A carta era longa e estava escrita em língua «cheyenne», com o estilo característico de Tomahawk. E o mais maravilhoso de tudo era que o jovem índio dizia a seu pai que depois da sua cura completa estava disposto, graças à amabilidade do major Lenver, a ingressar numa escola dos «rostos-pálidos», onde queria aprender coisas que lhe permitissem converter-se depois num homem de leis capaz de defender, num futuro distante, os direitos dos índios. Estes, assim o dizia textualmente, teriam de ir cedendo a pouco e pouco devido à força e à potência da civilização que os «rostos-pálidos» possuíam. Era uma carta judiciosa e otimista, mas de um realismo extraordinário. «Águia Corredora» leu-a no conselho e observou, com prazer, o rosto descomposto de «Nariz Achatado». Agora podia ter a certeza de que o seu filho seria um dia o chefe dos «cheyennes» e que transformaria a tribo num povo laborioso, capaz de se defender por si mesmo sem necessidade de desenterrar o machado de guerra.
Passou-se mais um longo ano e as caravanas dos brancos continuavam, em número interminável, a atravessar aquele território para chegarem às zonas de terra fértil, na Califórnia. O caminho era longo e, depois de atravessarem as terras «cheyennes», no Colorado, tinham de passar por Utah e de percorrer, de uma fronteira à outra, o Estado de Nevada para chegarem ao território californiano.
Mas aqueles homens estavam dotados de uma vontade férrea; e os seus carromatos, gemendo e movendo-se pesadamente, iam cobrindo centenas de quilómetros, vencendo montanhas, rodeando profundos desfiladeiros e atravessando rios, para chegarem, finalmente, a um mundo semelhante à mais extraordinária terra de promissão, uma espécie de paraíso terreno que Deus tivesse colocado junto às tranquilas águas do Pacífico para que os homens compreendessem, sem necessidade de grandes especulações, o poder da Divina Criação.
Seu pai, o poderoso «Águia Corredora», não se havia limitado apenas a reunir à sua volta os feiticeiros da tribo «cheyenne» que comandava. Vários correios, cavalgando corcéis rápidos como o vento, haviam partido para solicitar a ajuda de outras tribos: a dos «arapahoe», que viviam ao Norte, a dos «kiowa» de Oklahoma, a dos «comanches», que viviam no outro lado do Canadian River, e a dos índios «pueblo», que haviam estabelecido o seu acampamento nas margens do Rio Grande, no Novo México.
Feiticeiros de todas aquelas tribos haviam acudido imediatamente, instalando-se à cabeceira do jovem Tomahawk; mas nenhum deles, fosse com mágicos exorcismos fosse com os filtros mais misteriosos, lograra reduzir a febre que consumia o jovem guerreiro.
Estendido no seu leito de peles, Tomahawk meditava tristemente naquela manhã, precisamente na altura em que a tribo «cheyenne» ia receber um homem branco muito importante, o major Lenver, que vinha de muito longe para assinar com os índios um tratado de paz. Se não estivesse enfermo, Tomahawk ocuparia um lugar à direita de «Águia Corredora», deixando a «Nariz Achatado», como lhe corresponda na escala hierárquica, o lugar à sua esquerda. Mas havia já muitas luas que a febre o mantinha prostrado no leito, e não era assim de repente que iria recobrar a saúde perdida.
O jovem, por vezes, chegava a pensar que devia ter cometido qualquer falta contra Manitu e que este, para se vingar, lhe ia procurar uma morte indigna, negando-lhe a oportunidade de a conseguir a lutar pela liberdade das terras dos seus irmãos que os rostos-pálidos iam conquistando a pouco e pouco. No fundo, o jovem índio alegrava-se de que os homens brancos viessem assinar um tratado de paz. Os «cheyennes», como outras tribos índias, haviam-se oposto valorosamente ao avanço esmagador dos carromatos dos colonizadores que continuamente iam chegando do Este.
Os guerreiros estavam cansados de derramar o seu generoso sangue, e as frontes dos chefes cobriam-se de rugas, tornando-se brancos os seus cabelos e trémulas as suas rudes mãos, que noutros tempos haviam empunhado, com coragem e decisão, as rédeas de um poder ameaçado por combates esgotantes e pertinazes.
Tomahawk suspirou. Pouco lhe podia importar já o que ocorresse no mundo, que, a pouco e pouco, se ia afastando dele, deixando-o só, com aquelas febres que reduziam a nada a sua carne forte e os seus músculos elásticos, levando-lhe até a cor da sua pele, que havia adquirido já uma feia cor acinzentada. O futuro da tribo havia-se escapado das suas mãos, e doía-lhe imaginar que outro homem, certamente o filho de «Nariz Achatado», o cruel «Raposa Astuta», fosse o sucessor de «Águia Corredora».
Enquanto o jovem se consumia com pensamentos pessimistas, um grupo de soldados americanos, sob o comando do major Lenver, homem alto, de rosto aberto e simpático, aproximava-se lentamente, depois de atravessar o Arkansas River, da aldeia dos «cheyennes». Os pensamentos do major Lenver também estavam muito longe de ser otimistas; também ele meditava profundamente na missão de que o haviam encarregado e cuja importância ressaltava por si mesma.
De todos os povos índios que os brancos combatiam em luta constante e terrível, só restavam os «cheyennes» como representantes de uma raça que não se dobrava facilmente, embora de ambos os lados se houvesse derramado já muito sangue.
No Norte, em Dakota, as tribos índias mais belicosas haviam sido empurradas definitivamente para Oeste, refugiando-se em Montana e em Wyoming, onde reinavam como donas absolutas dos «crow». Dessa maneira, o governo dos Estados Unidos da América havia conseguido limpar as férteis terras do Missouri da presença incómoda dos «sioux», dos ayankton», dos «arikara», dos «teton», dos «ponga», dos «omaha», doe «pawnee» e dos «oto». Havia sido uma luta desesperada, de muitos anos de duração. Mas, finalmente, apoiados pela força do exército, os colonos puderam ocupar aquelas terras férteis, sem outra oposição que não fosse a de pequenos grupos de diferentes tribos, sobretudo daquela que lhes faziam os belicosos «sioux». No entanto, até mesmo estes foram sendo dizimados ou escorraçados, ficando completamente limpa a ampla zona onde crescia, com decidido influxo, a colonização dos pioneiros, que se fixavam, pela primeira vez, em ambas as margens do rio Missouri. Mas o problema continuava de pé.
Para o Sul, para lá de Nebraska e de Wyoming, ficavam as terras do Colorado, que eram como a porta que ia permitir abrir-se caminho para as montanhas que conduziriam depois ao Novo México e à Califórnia, aquela maravilha que só alguns brancos tinham visto e haviam descrito com um colorido verdadeiramente fantástico.
O obstáculo principal que impedia a passagem dos colonizadores para as longínquas terras do Oeste eram precisamente os «cheyennes», índios pertencentes a uma tribo selvagem, belicosa, forte, mas nobre e disposta a defender as suas terras e os seus territórios de caça enquanto houvesse um único guerreiro de pé. Haviam sido inúteis as batalhas travadas entre os brancos e aquela tribo comandada pelo valoroso «Águia Corredora». Os «cheyennes» sabiam lutar e conheciam, palmo a palmo, o território que ocupavam, não apenas na parte baixa do Arkansas River, mas também nas altas montanhas, nos desfiladeiros perigosos, nos barrancos profundos e nos terrenos planos, mais para o Norte, já junto ao Nebraska. Moviam-se à velocidade do vento, cavalgando em pelo os seus corcéis pequenos, briosos, ágeis e rápidos como relâmpagos. Por isso, Washington, considerando como excessivo o sangue que a penetração naquela zona do país já havia custado, chegara à conclusão de que a melhor coisa a fazer era estabelecer um tratado com aquela belicosa tribo e conseguir assim que se permitisse a passagem dos colo-nos pelas suas terras, pagando inclusivamente aos índios e dando-lhes uma liberdade absoluta naquela região.
O major Lenver havia enviado muitos correios, com ofertas principescas, a «Águia Corredora», lendo depois as suas mensagens e conhecendo assim o modo de pensar do velho chefe índio, que parecia disposto a assinar aquele tratado de paz. Mas, apesar de tudo, Lenver continuava a desconfiar e desejava ardentemente encontrar um motivo mais poderoso para convencer os «peles-vermelhas». Por isso, naquele momento, à cabeça dos seus homens, que acabavam de atravessar a seu lado o Arkansas River, galopava pensativo, com o sobrolho franzido e um trejeito de preocupação desenhado nos seus lábios delgados.
O grupo americano não tardou muito a encontrar as primeiras forças que o chefe «cheyenne» havia enviado, não apenas para os escoltar, mas também para os vigiar estreitamente. Os guerreiros encontravam-se armados e limitavam-se a cavalgar de ambos os lados da coluna de soldados; à cabeça, a meia centena de metros do cavalo que o major Lenver montava, para lhes servir de guia, cavalgava um dos «cheyennes».
Pouco a pouco, o grupo foi-se aproximando do acampamento. Quando chegaram à periferia, o índio que servia de guia deteve-se e, por sinais, fez compreender ao major Lenver que apenas ele poderia penetrar na aldeia; aquilo significava que todos os seus homens deviam ficar por ali, rodeados de índios que os olhavam fixamente, sem poderem evitar o brilho do ódio que se lhes refletia nos olhos. A preocupação do major Lenver cresceu com aquela demonstração de desconfiança. Mas, fosse corno fosse, tinha de cumprir a sua missão.
Depois de descer do cavalo seguiu o índio, que também havia desmontado, e penetrou naquele mundo estranho. As tendas cónicas estendiam-se até onde a vista alcançava, demonstrando assim o poder e o número de guerreiros que viviam sob o comando de «Águia Corredora».
As crianças olhavam com «assombro para o homem de rosto branco, mas não exteriorizavam o seu espanto e permaneciam juntos das mães que, por sua vez as protegiam com as mãos. Muitas das tendas estavam cobertas de desenhos primitivos e de sinais que o americano não compreendia. Estava ali a lenda de cada família, os seus êxitos conseguidos na caça e na guerra.
Mas a habilidade política de «Águia Corredora» não tardou a ser comprovada pelo major Lenver, quando este se deu conta de que haviam sido escondidas as cabeleiras arrancadas aos brancos e que deviam abundar extraordinariamente naquele povoado. Foi algo que não deixou de o surpreender agradavelmente. E um assomo de sorriso surgiu-lhe nos lábios. Ao fim e ao cabo, e contra o que pensavam muitos dos seus companheiros do Este, os índios não careciam de sensibilidade. Era indubitável que havia entre eles homens inteligentes, de amplos pontos de vista, que nada tinham a invejar aos oficiais brancos. Isso mesmo fora demonstrado nos campos de batalha; haviam assimilado a tática utilizada pelos soldados dos Estados Unidos, não se oferecendo tão claramente com antes aos disparos das armas de fogo e criando a sua própria estratégia, que havia custado em muitas ocasiões verdadeiros rios de sangue.
Quando o major Lenver chegou às proximidades da enorme tenda cónica do chefe, este surgiu na entrada, vestido com o seu melhor traje e envergando um longo penacho de penas de águia, que lhe caía pelas costas e roçava pelo solo quando caminhava. Vestia uma jaqueta de pele de gamo com inscrições vermelhas e cabalísticas e umas calças da mesma pele, que lhe chegavam aos tornozelos e se perdiam ali numa série de franjas que calam com elegância sobre os seus mocassins finos, de cor parda. «Águia Corredora» já não era jovem. As rugas sulcavam-lhe profundamente a pele da cara e os olhos, brilhantes e resplandecentes, demonstravam a vitalidade que lhe pulsava ainda no interior do corpo. Tinha visto muitos homens brancos cair sob os golpes do seu machado de guerra, atravessados pelas flechas que disparava com habilidade surpreendente ou, mais tarde, derrubados por aquelas armas de fogo que os índios haviam aprendido a manejar com extraordinária eficácia. A sua alta estatura dava-lhe um aspeto imponente, e nem sequer pestanejou quando o branco se aproximou dele, levantando a mão direita em aberto sinal de paz.
Ao mesmo tempo que o imitava, retirava-se para um lado a fim de permitir ao homem branco a sua entrada na tenda onde iria celebrar-se o conselho. Os anciãos e os guerreiros mais importantes já se encontravam ali sentados havia muito tempo, fumando, meditando e discutindo pormenores do encontro que se avizinhava.
Lenver sentou-se no local que o chefe lhe indicou e, depois, observou com atenção os rostos estoicos, de expressão cerrada, que o rodeavam por completo. Notou imediatamente o olhar astuto de um índio, indubitavelmente chefe, que estava sentado à direita de «Águia Corredora». O major não gostou daquela expressão, nem do brilho daquele olhar, nem do sorriso cínico que lhe entreabria ligeiramente os lábios grossos. O nariz daquele índio era achatado, como se tivesse recebido um terrível golpe quando era jovem, e os seus orifícios eram amplos e desfeavam singularmente a expressão já desagradável da sua cara.
«Águia Corredora» foi ocupar o centro do semicírculo, defronte do homem branco. Houve uma longa pausa antes que o silêncio da tenda fosse rompido; mas, por fim, com voz clara e vibrante, o velho chefe índio disse:
— O «rosto-pálido» já pode falar. Os chefes e anciãos «cheyennes» aqui reunidos escutam-no com atenção. Que Manitu dê à sua língua o vigor suficiente para convencer os seus irmãos de pele-vermelha.
Lenver sorriu.
— Agradeço muito as palavras do meu irmão «Águia Corredora» — retorquiu. — Venho de muito longe, de uma grande cidade onde se estudou um pacto de paz para ser assinado sem perda de tempo. Já conheceis as condições: precisamos que os nossos colonos atravessem estas terras para irem mais longe, para chegarem a uma região onde nenhuma tribo se estabeleceu ainda. Garantimos em absoluto a segurança destes terrenos que vos pertencem e só vos pedimos que traceis um caminho para que os nossos irmãos possam alcançar as terras que ficam para lá das montanhas, a fim de que aí se estabeleçam e trabalhem como homens honrados. Infelizmente, já correu demasiado sangue entre nós. O homem branco conhece o valor do seu irmão «cheyenne» e sabe que não conseguiria nada com as armas na mão, que a guerra duraria muitas luas e que, finalmente, o sangue de uns e outros clamaria contra nós por não termos tido o discernimento de resolver tudo pelo formoso caminho da paz. Eu espero, «Águia Corredora», que a tua bondade tradicional me permita levar aos meus chefes o tratado assinado por ti.
O índio fez um gesto de assentimento.
— As palavras que o «rosto-pálido» pronunciou são boas — disse. — Se os «facas longas» estão cansados da guerra, os «cheyennes» também desejam a paz, como o demonstraram ao enterrar o machado de guerra há já muitas luas. Compreendemos perfeitamente os interesses dos nossos irmãos de pele pálida e o seu desejo de atravessarem as montanhas para colonizar terras que estão muito distantes daqui, e onde, como tu disseste, chefe branco, nenhuma tribo pode ser molestada porque ninguém vive ali. Discuti, com o meu conselho, os pormenores deste tratado; e a única coisa que exigimos, com toda a seriedade, é que os vossos colonos respeitem o nosso território e que jamais pensem em se fixar aqui. Porque então, «rosto-pálido», os «cheyennes» desenterrariam o machado de guerra e combateriam até que nenhum homem, nenhuma mulher e nenhuma criança da nossa aldeia ficasse de pé, cumprindo assim o juramento que fizemos ao nosso deus Manitu de não abandonar, por nada do mundo, o território que a sua bondade nos entregou para a caça e para a vida.
— Podes ter a certeza, «Águia Corredora», de que os colonos se limitarão apenas a atravessar estas terras. Tu mesmo marcarás o caminho, do qual jamais se afastarão. Os soldados do grande chefe branco de Washington farão que se cumpram as cláusulas do tratado e castigarão com dureza aqueles que as quebrarem. Mas há algo mais: agradecido pela tua bondade, o grande chefe branco de Washington está disposto a ajudar-te em tudo o que estiver ao seu alcance. Se a caça diminuir, se tiveres medo de que o mau tempo caia sobre estas terras e de que o teu povo passe fome, nós procuraremos enviar-vos viveres, mantas e medicamentos. Podereis assim viver com a confiança posta no nosso grande chefe branco. Assim mo disse e assim to digo, «Águia Corredora».
—Podes dizer ao grande chefe branco que as suas palavras me fizeram tanto bem como o bálsamo numa ferida recente. O conselho de «cheyennes», que aqui está reunido, marcou já o caminho que os «rostos-pálidos» terão de seguir através dos nossos territórios para atravessarem as montanhas. Escolhemos o melhor e o mais curto. Também podes estar seguro, irmão branco, de que ajudaremos aqueles colonos que se encontrarem em dificuldades, já que queremos que uma verdadeira fraternidade exista entre nós e que o machado de guerra seja enterrado definitivamente.
Naquele instante, um dos anciãos disse algumas palavras, pronunciadas muito rapidamente em língua «cheyenne». Antes que «Águia Corredora» pudesse responder àquela frase, «Nariz Achatado», segundo pôde observar o major, respondeu ao ancião de uma forma violenta. Mas o chefe dos «cheyennes», com um gesto e umas palavras secas, fez que «Nariz Achatado» se calasse. Depois, olhando o homem branco, disse:
— Um dos meus anciãos acaba de me recordar a dor que me enche o coração há já muito tempo. Falaste de ajuda, e eu não queria, nestes instantes, que julgasses que desejamos abusar da tua sincera proposta.
— De maneira nenhuma, grande chefe. Disse que vos ajudaríamos, e podemos começar a fazê-lo agora mesmo se estiver ao alcance da nossa mão.
— Muito obrigado. Trata-se do meu filho «Tomahawk».
— Aconteceu-lhe alguma coisa?
—Encontra-se enfermo desde há muitas luas. Está a ser consumido por uma febre maligna, e todos nós, os «cheyennes», estamos à espera de ter de queimar o seu corpo quando morrer.
Se não se tratasse de um momento tão importante, Lenver teria sorrido. Era precisamente a ocasião que esperava para demonstrar ao chefe índio a boa vontade e os propósitos excelentes que as autoridades americanas alimentavam em relação ao povo «cheyenne». Por isso, retorquiu com vivacidade:
— Está nas tuas mãos que tentemos algo pelo teu filho, grande chefe.
— Que queres dizer?
— Que estou disposto a levá-lo agora mesmo. Há grandes médicos entre nós que farão todos os possíveis por to devolverem são e salvo. Que dizes a isso?
«Águia Corredora» demorou bastante tempo a responder. Apesar de ser um homem inteligente, o atavismo da sua raça fazia-o desconfiar de uma maneira sincera dos misteriosos processos dos feiticeiros brancos. Tinha ouvido dizer muitas coisas sobre curas verdadeiramente milagrosas; e desejava, com ansiedade, que Tomahawk se pusesse bom depressa para fazer dele a futuro chefe da tribo. Olhou rapidamente para os anciãos. Nalguns rostos viu aprovação, noutros, desconfiança. Mas, de todos eles, o único que expressava a sua cólera incontável era o de «Nariz Achatado»; no entanto, o chefe dos «cheyennes» sabia perfeitamente o género de propósitos que se escondia no cérebro daquele chefe: no fundo do seu coração, desejava que Tomahawk morresse para que seu filho, «Raposa Astuta», fosse o futuro chefe da tribo. Foi aquilo precisamente que o decidiu, fazendo-o aceitar a oferta do homem branco.
—Vou confiar-te o meu filho, irmão «rosto pálido» — disse. — Ouvi falar da vossa magia e sei que é poderosa, mas antes quero advertir-te, com toda a nobreza, que mesmo que aconteça a infelicidade de o meu filho morrer nas vossas mãos eu não deixarei de crer que os feiticeiros brancos fizeram tudo para o salvar.
— De isso podes estar seguro, «Águia Corredora». Poremos em jogo todos os recursos que a ciência do homem branco possui para defender a vida do teu filho. E posso afirmar que, se houver alguma possibilidade de o salvar, to devolveremos são e salvo para que o convertas, mais tarde, num chefe tão sensato e bondoso como tu.
O resto das três horas que passou na tenda do chefe dos «cheyennes» foi para o militar estudar o caminho que os índios haviam assinalado através do seu território para permitir que por ali passassem os colonos brancos com destino ao outro lado das montanhas. Lenver pôde convencer-se perfeitamente de que as melhores intenções se albergavam no bondoso coração de «Águia Corredora»; e agradeceu-lhe, de uma maneira efusiva, todos os seus esforços para que o tratado assinado naquela mesma manhã tivesse vigência imediata. Depois, acompanhado pelo chefe índio, o major foi ver Tomahawk e surpreendeu-se com o estado grave em que ó jovem se encontrava.
Tomahawk havia feito já dezoito anos, mas sobre o seu corpo só restava uma pobre pele que marcava o contorno do forte esqueleto, outrora protegido por uma dura musculatura que devia ter sido o orgulho de «Águia Corredora».
O major voltou para junto dos seus homens e com a ajuda de alguns índios construíram uma padiola, que podia ser adaptada entre dois cavalos e sobre a qual seria fácil transportar o corpo do jovem índio. Os «cheyennes» acompanharam-nos até às margens do Arkansas River, e ali, antes que os «rostos-pálidos» se afastassem, o chefe aproximou-se de seu filho e, olhando-o com gravidade, disse-lhe:
— Manitu é grande, jovem Tomahawk. E muito possível que os seus desígnios misteriosos me tenham feito consentir que os magos brancos tentem a tua cura. Se Manitu quiser, voltarás tão forte como o eras noutros tempos, e de novo montarás e caçarás; e serás novamente o orgulho de teu pai que, velho e cansado, vê com angústia findarem os dias do seu mandato.
— Voltarei, pai — disse o rapaz, com um brilho de entusiasmo nos olhos.
Também ele confiava na poderosa magia dos «rostos--pálidos», da qual tinha ouvido falar muito, e esperava que a sorte o favorecesse naquela ocasião. Por outro lado, de certo modo alegrava-se de abandonar a tribo, não só para poder conhecer outras terras e outros rostos, mas, também, para que alguns guerreiros jovens, em especial o filho de «Nariz Achatado», «Raposa Astuta», deixassem de sorrir daquela maneira irónica de cada vez que, simulando piedade e compaixão, se aproximavam dele, pensando e desejando que jamais se convertesse no chefe dos «cheyennes».
Uma vez o tratado assinado, urna verdadeira avalancha de colonos começou a penetrar na zona controlada pelos «cheyennes». Dispostos a demonstrar aos «rostos-pálidos» que estavam decididos a honrar os seus compromissos, os índios deixaram que os brancos passassem pelas terras que até então apenas eles haviam pisado. Inclusivamente, agrupavam-se para ver os carromatos passarem e, por vezes, até saudavam os colonos com a mão ou aproximavam-se deles para receberem ofertas, orientando-os, em troca, para os lugares onde poderiam encontrar água ou onde ficariam melhor acampados. E dessa convivência foi nascendo um princípio de comércio, com intercâmbio de objetos variados...
Também os brancos respeitaram o tratado, e tropas do exército, procedentes dos fortes situados mais ao Norte, patrulhavam constantemente o caminho marcado para evitar que algum inconsciente pudesse ferir a suscetibilidade dos «peles-vermelhas».
Tudo corria às mil maravilhas, e durante meses e meses as caravanas atravessaram o território «cheyenne» sem que se produzisse o menor facto lamentável. Mas um homem, dentro da tribo, não deixava de retorcer o espirito obscuro em pensamentos cada vez mais odiosos. Era certo que continuava sem se receber notícia alguma do jovem índio que os brancos haviam levado para o deixarem entregue nas mãos dos seus poderosos magos; no entanto, «Nariz Achatado» sentia--se impotente para conter os sentimentos de raiva que lhe nasciam constantemente no coração dolorido. De cada vez que «Raposa Astuta», seu filho, e ele conversavam, o assunto focado por ambos era invariavelmente o mesmo: o futuro da tribo e a desgraça que para os dois representaria o regresso do jovem Tomahawk completamente curado.
«Nariz Achatado» havia pensado, por mais de uma vez, em romper a harmonia que o tratado havia criado entre brancos e índios. Sabia que era simples e fácil poder atacar algumas das caravanas e romper assim o tratado, desenterrando de novo o machado de guerra. Mas «Águia Corredora» não era um homem que se deixasse enganar com facilidade, e «Nariz Achatado» sabia perfeitamente que o velho chefe o fazia vigiar dia e noite, esperando que cometesse algum atentado contra o tratado para acabar com ele definitivamente.
Dos oito anciãos que compunham o conselho, dois deles davam o seu apoio a «Nariz Achatado»; mas era um número insignificante ante a maioria. Tinha de esperar, pacientemente, que a ocasião se apresentasse; e, então, aproveitá-la-ia sem hesitar, terminando assim com o mandato de «Águia Corredora» e deixando que o seu filho se apoderasse do comando da tribo para, sem perda de tempo, demonstrar aos «rostos-pálidos» que não podia pisar-se impunemente o território que Manitu havia dado ao povo «cheyenne». Quando, na companhia de seu filho, via das colinas a passagem das caravanas dos brancos, «Nariz Achatado» estremecia ao pensar nas riquezas que desfilavam ante ele, quase ao alcance da sua mão, sem sequer lhes poder tocar. Teria sido uma magnifica ideia cortar a passagem das caravanas e apoderar-se de tudo o que os carromatos levavam. A sua velha ambição não o deixava dormir tranquilo; e, quando nas longas noites se retorcia sobre o seu leito de peles, despertava a transpirar, angustiado, fechando os punhos até quase cravar as unhas nas palmas das mãos e pensando no que teria feito se se encontrasse no lugar de <Águia Corredora». Mas, por enquanto, tinha de esquecer aquelas ideias; tinha de as afastar da mente enquanto o velho chefe fosse vivo. Era questão de tempo e de paciência.
Os dias continuavam a correr como as águas intermináveis do Arkansas River. Quase se haviam passado dois anos desde que Tomahawk abandonara a sua aldeia quando seu pai recebeu, pela primeira vez, a grande e formosa notícia de que se havia curado por completo. A carta era longa e estava escrita em língua «cheyenne», com o estilo característico de Tomahawk. E o mais maravilhoso de tudo era que o jovem índio dizia a seu pai que depois da sua cura completa estava disposto, graças à amabilidade do major Lenver, a ingressar numa escola dos «rostos-pálidos», onde queria aprender coisas que lhe permitissem converter-se depois num homem de leis capaz de defender, num futuro distante, os direitos dos índios. Estes, assim o dizia textualmente, teriam de ir cedendo a pouco e pouco devido à força e à potência da civilização que os «rostos-pálidos» possuíam. Era uma carta judiciosa e otimista, mas de um realismo extraordinário. «Águia Corredora» leu-a no conselho e observou, com prazer, o rosto descomposto de «Nariz Achatado». Agora podia ter a certeza de que o seu filho seria um dia o chefe dos «cheyennes» e que transformaria a tribo num povo laborioso, capaz de se defender por si mesmo sem necessidade de desenterrar o machado de guerra.
Passou-se mais um longo ano e as caravanas dos brancos continuavam, em número interminável, a atravessar aquele território para chegarem às zonas de terra fértil, na Califórnia. O caminho era longo e, depois de atravessarem as terras «cheyennes», no Colorado, tinham de passar por Utah e de percorrer, de uma fronteira à outra, o Estado de Nevada para chegarem ao território californiano.
Mas aqueles homens estavam dotados de uma vontade férrea; e os seus carromatos, gemendo e movendo-se pesadamente, iam cobrindo centenas de quilómetros, vencendo montanhas, rodeando profundos desfiladeiros e atravessando rios, para chegarem, finalmente, a um mundo semelhante à mais extraordinária terra de promissão, uma espécie de paraíso terreno que Deus tivesse colocado junto às tranquilas águas do Pacífico para que os homens compreendessem, sem necessidade de grandes especulações, o poder da Divina Criação.
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