Era já noite cerrada quando Tomahawk, sempre puxando pelas rédeas do cavalo que transportava «Raposa Astuta>, chegou às proximidades de Pueblo.
A povoação estava parcamente iluminada, e o jovem índio desceu o prisioneiro da sua montada e amarrou-o solidamente a uma árvore, amordaçando-o depois para que não pudesse gritar. Era sua intenção solucionar algumas coisas antes de utilizar o filho de «Nariz Achatado> como testemunha do formidável processo que desejava levar a cabo.
Ao aproximar-se do povoado, deu-se conta de que não ia totalmente vestido; e lamentou então ter abandonado as roupas que lhe poderiam servir agora para circular pelas ruas sem chamar a atenção. Mas tudo tinha remédio. Forjou rapidamente um plano e dispôs-se a executá-lo.
Colocou-se junto à fachada de um edifício que se encontrava mergulhado na mais densa escuridão e esperou pacientemente que passasse um homem. Quando tal aconteceu, lançou-se sobre ele, golpeando-o e procurando ao mesmo tempo fazer-lhe o menor dano possível. Depois, levando-o para junto da árvore onde «Raposa Astuta» se encontrava amarrado, despiu-o, vestiu as suas roupas e amarrou-o a outra árvore vizinha, amordaçando-o também e esperando que não lhe guardasse rancor por aquilo que lhe havia feito.
Pôde comprovar, antes de se dirigir para o centro da povoação, que o homem recuperava os sentidos com certa facilidade. E partiu mais tranquilo. O fato do homem ficava-lhe curto e apertado, mas a obscuridade que reinava nas ruas de Pueblo ia facilitar-lhe a tarefa; ninguém se fixaria nele, pois, ainda por cima, o chapéu de aba larga caia-lhe sobre o rosto, ocultando-lhe assim a cor acobreada da pele.
Tomahawk havia tido tempo para meditar num plano concreto e, por conseguinte, após abandonar a rua principal, passou por detrás das casas e aproximou-se daquela que ostentava o nome da Companhia fundada por Archibald Delastone.
O edifício havia sido construído da mesma maneira que os demais, com janelas baixas e sem proteção alguma. Aquilo permitiu que o jovem «cheyenne» penetrasse nele com grande facilidade, não tardando a percorrer as suas dependências que, apesar da escuridão, os seus olhos de lince converteram bem cedo num terreno apto para se mover sem receio de tropeçar nos objetos que existiam em cada uma delas.
Não demorou muito a descobrir um raio de luz que saía por debaixo de uma porta. Aproximou-se com o silêncio de um felino e aos seus ouvidos chegou o rumor apagado de uma conversação. Colou o ouvido à madeira da porta e pôde escutar as vozes de dois homens. Prestou mais atenção e as palavras foram chegando aos seus ouvidos com mais clareza.
— E que vamos fazer com a rapariga? — perguntou uma voz.
— De momento — retorquiu outra vez, sarcástica e autoritária, que Tomahawk deduziu pertencer a Delastone, — mantê-la-emos encerrada nessa dependência do «saloon». Essa rapariga constitui um perigo enquanto os militares estiverem na região. Portanto, não a deixaremos que ponha o nariz de fora. Depois, quando o coronel e os seus homens partirem, poderemos dispor sobre o futuro dessa louca.
— Vi-a há pouco, patrão.
— Sim?
— Fui levar-lhe comida. Não faz outra coisa senão ameaçar; é uma verdadeira ferazinha. Disse-me que o seu amigo, esse maldito Tomahawk, acabaria por a vingar e daria cabo de tudo o que nós fizemos aqui.
— Não te preocupes, Ed — respondeu Delastone. — Já sabes que «Nariz Achatado» me enviou um mensageiro, esta manhã, que me comunicou que esse maldito Tomahawk havia surpreendido um dos assaltos às caravanas e que «Raposa Astuta» havia saído em sua perseguição. Como deves compreender, um índio como esse renegado, que passou tantos anos no Este, tem de ser forçosamente menos hábil do que um verdadeiro «cheyenne»; é, pois, muito natural que «Raposa Astuta» acabe por o encontrar. E, então, matá-lo-á e arrancará a sua cabeleira para juntar às que já exibe na sua tenda de futuro chefe. Claro que «Raposa Astuta» não sabe o que o espera quando regressar à sua aldeia.
— O senhor foi diabolicamente hábil, patrão! — maravilhou-se Ed...
— Faz-se o que se pode, rapaz. A verdade é que cometemos um erro muito grave e que nos podia ter custado caro.
— Qual, chefe?
— O consentir a «Nariz Achatado» que atacasse os colonos. Foi um erro muito grande, meu amigo. Estivemos a ponto de deitar tudo a perder por causa das exigências desse maldito índio. Teria sido muito melhor oferecer-lhe alguns presentes ou dar-lhe, inclusivamente, participação nos lucros. Claro que as coisas, agora, resolveram-se demasiado bem para que possamos arrepender-nos do que fizemos. Não ficará nem um, Ed. Pensa que amanhã, quando amanhecer, os militares terão terminado para sempre com o povo «cheyenne»; e nós ficaremos em completa liberdade para continuarmos a explorar as minas de prata, que é o que verdadeiramente nos interessa. Esses dois rapazes que trabalham para mim, os dois advogados de Chicago, Roger Shaw e Archie Odeen, encontram-se agora nas montanhas para verificarem os limites exatos onde as minas se encontram; terão assim uma base legal, absolutamente inatacável, que testemunhe a minha propriedade ante o Governo.
— Estupendo!
— 0 que a mim me interessa — prosseguiu Archibald -- é que os colonos passem tranquilamente por esta região. Quero converter esta povoação em algo maior, numa cidade, numa espécie de ponto de descanso, onde os que regressem ao Este deixem os seus dinheiros. As nossas salas de jogo «depenarão» muitos incautos, que terão de ficar a trabalhar nas minas para pagarem as suas dívidas. Está tudo muito bem pensado, hem, Ed?
— Não há dúvida, patrão. Você é um verdadeiro génio.
Até Tomahawk chegou de novo o riso antipático e satânico de Delastone.
— As coisas resolveram-se melhor do que eu julgava — disse ainda Archibald. — Os índios, quiséssemos ou não, constituíam um perigo latente, uma espécie de espada de Dâmocles sempre suspensa sobre as nossas cabeças. Não podemos esquecer que os «cheyennes» eram muito fortes e que, em qualquer momento, esse maldito «Nariz Achatado» poderia ter-se lançado sobre a nossa povoação, não deixando pedra sobre pedra. A chegada dos militares e a descoberta do que acontecia com as caravanas dos colonos veio solucionar definitivamente o problema, e, agora que teremos as mãos completamente livres, poderemos agir à nossa vontade e enriquecer num abrir e fechar de olhos. Os teus dois estúpidos companheiros, Walter e Joe, ao deixarem-se matar por esse maldito índio, perderam a possibilidade de se converterem no que eu lhes havia prometido: fazê-los homens Importantes e suficientemente ricos para não voltarem a sentir preocupações com coisa nenhuma.
— É certo.
Tomahawk havia escutado o suficiente. Na realidade, tivera de se conter várias vezes para não irromper no compartimento, castigando como devia aqueles dois canalhas. Havia deixado a carabina escondida, perto da árvore onde amarrara «Raposa Astuta», e apenas trazia o seu «Colt» 45. Não pôde resistir mais. Dando um formidável pontapé na porta, abriu-a de par em par; e penetrou, empunhando o revólver, no gabinete onde os dois bandidos se entregavam à euforia do antecipado triunfo. Com um sorriso, advertiu a expressão de surpresa e de medo que aparecia, simultaneamente, no rosto dos dois homens, que estavam muito longe, de imaginar que o seu odiado inimigo se encontrasse tão próximo.
— Chegou a vossa hora, malditos— disse. — Sois piores, que os répteis da montanha ou que os esfomeados coiotes da pradaria. Enganastes toda a gente, tanto brancos como índios. Soubestes despertar nos «cheyennes» a sua ânsia de luta e, ao mesmo tempo, entregar à morte os pobres colonos que acreditavam em vós. Não vou esperar que a justiça dos «rostos-pálidos» vos castigue. Ocorreram demasiadas coisas para esperar que sejais julgados e castigados como mereceis. Acabo de ouvir que graças à vossa maldade os soldados se lançaram contra o meu povo. A partir deste momento, com grande pesar meu, volto a ser o mesmo de sempre: um guerreiro «cheyenne». E um guerreiro «cheyenne» não pode ter piedade de nada nem de ninguém.
Havia tal decisão de matar nos seus olhos que Archibald, branco como a cera, se pôs de pé, estendendo ambas as mãos para o índio, como se quisesse deter as balas que, de um momento para o outro, iam sair do negro cano do «Colt»} que empunhava.
— Não, não dispares! Posso fazer-te rico e poderoso como nunca sonhaste ser!
Um triste sorriso assomou aos lábios do «cheyenne».
— O «rosto-pálido» — disse com desprezo — não pode oferecer outra coisa senão aquilo que não é seu. Mas, mesmo que fosse, o resultado seria o mesmo. Independentemente do facto de desprezar a riqueza, nem toda a prata que a montanhas sagradas guardam no seu seio poderiam deter-me agora, cão maldito. Não julgues que vou vingar apenas os meus irmãos que cairão esta noite por tua culpa. Quero também vingar os colonos que foram assassinados pelo meu povo, a quem tu soubeste enganar habilmente. Já vês, «rosto-pálido», que de nava servem as espertezas quando chega o momento da verdade.
Apertou o gatilho. Archibald Delastone recebeu a bala entre as sobrancelhas. Depois, girando a uma velocidade vertiginosa, Tomahawk disparou, da mesma maneira e com idêntica pontaria, sobre Ed, que havia ficado imóvel como uma estátua. Também Sommers recebeu o balázio entre os olhos e, décimos de segundo depois, caía com um ruído surdo, batendo com a cabeça na madeira do soalho.
Sem perder mais tempo, Tomahawk abandonou o escritório da Companhia, saindo pelo mesmo sítio que havia utilizado para penetrar no edifício. O seu instinto guiava-o para a aldeia índia, onde o chamava o seu dever; mas uma imagem aparecia vigorosamente no seu cérebro e, com passo cauteloso, dirigiu-se para o «saloon», penetrando por uma porta das traseiras, percorrendo um longo corredor e descobrindo, pouco depois, a dependência fechada hermeticamente onde, sem dúvida alguma, devia encontrar-se a misteriosa rapariga de que os dois bandidos haviam estado a falar e que não podia ser outra senão Alisha Silk.
Deu um formidável empurrão na porta e esta abriu-se, saltando dos gonzos. O compartimento era pequeno e o seu mobiliário era constituído por um leito, uma mesa e uma cadeira.
Sentada nesta, escrevendo uma carta à luz do candeeiro a petróleo que se encontrava sobre a mesa, encontrava-se Alisha Silk que, levantando a cabeça, olhou o jovem índio com o maior dos assombros. Tomahawk teve de fazer um esforço supremo quando ela o abraçou, quando os seus lábios lhe roçaram a cara e quando sentiu o calor do corpo da rapariga junto do seu.
As fantásticas ideias que havia acariciado até então surgiram rápidas do fundo da sua alma. Sentiu-se invadido por uma torrente de ternura, e teve de contrair os músculos e de endurecer o espírito para, com brandura não isenta de decisão, afastar a rapariga e, segurando-a pelos ombros olhar com fixidez aqueles olhos azuis de insondável doçura.
— Sabia que havias de vir, John! — continuou ela. — Sabia-o! Vim ver-te, como te prometi, admirada de não receber noticias tuas. Descobri coisas horríveis nesta cidade, John.
— Não devias ter vindo, Alisha — retorquiu ele, muito sério. — Isto não é lugar para ti. Agora és livre.
— Que queres dizer? — inquiriu ela, franzindo o sobrolho.
— Que já és livre, Alisha. Regressa ao Este. Parte desta terra que a maldade e a ambição estão a converter num verdadeiro inferno.
—E tu?
— Eu já não sou o mesmo, pequena. O velho sangue dos meus antepassados apagou para sempre as recordações agradáveis da minha permanência nas vossas formosas cidades. Isto quer dizer, Alisha, que nunca mais voltaremos a ver-nos.
— Enlouqueceste?
— É muito possível. Porque loucura é lutar quando se sabe que tudo está perdido, quando se corre para a morte. Vós, os «rostos-pálidos», não podeis compreender a essência desse princípio índio, que nos empurra deliberadamente para o final. As vossas ideias religiosas são completamente diferentes das nossas. E a vida é, para vós, algo preciso que tendes de conservar porque o vosso Deus odeia a guerra, a destruição e o ódio. Manitu não é assim, Alisha. É um deus poderoso, cruel e implacável. Um deus que não perdoa a cobardia, a hesitação e o erro. Sabe que nós esperamos unirmo-nos a ele, para entrarmos nos territórios de caça que nos prometeu. Mas só há uma maneira de se entrar neles, Alisha: a morte em combate. E um «cheyenne» não pode ver morrer o seu povo sem mexer um dedo. Tem de morrer com ele. Não sabes quanto te agradeço tudo o que fizeste por mim durante o tempo que estive em Chicago. É muito possível que lá em cima, quando cavalgar pelas pradarias infinitas de Manitu, eu sorria, pensando na rapariga branca a quem, porque não dizê-lo agora? amei mais do que tudo nesta vida.
— John! — exclamou ela, com voz afogada.
— Não, deixa-me continuar, Alisha. Amei-te muito, embora desde o princípio me houvesse dado conta do absurdo do meu desejo. Jamais os teus teriam permitido que nos uníssemos em casamento.
— Isso é mentira.
— Para ti, que me amas, todos os obstáculos podem ser destruídos. Mas tu não te dás conta de que no caso de uma possível união, para nos convertermos no casal que sempre sonhei, o mal não se refletiria em nós, mas nos nossos filhos, que não passariam de mestiços eternamente envergonhados do que os seus pais haviam feito.
Ela olhava-o aterrorizada, pálida como a cera.
— Tenho de me ir embora, Alisha. O dever reclama-me. Cometi o erro de acreditar que havia uma possível solução para o problema que foi sempre como um abismo entre as nossas duas raças. Fui um sonhador, Alisha, um estúpido da cabeça aos pés. Esqueci o que os meus antepassados me haviam ensinado e sonhei em unir o teu povo ao meu, em fazer dos homens da minha raça os povoadores desse mundo que a vossa civilização força a toda a pressa. Mas tudo isso não passou de um sonho vão, de uma ilusão que não pode manter-se. Adeus, Alisha. Volta para o Este e sê muito feliz. Esta terra está a empapar-se de sangue, e não queria, de modo algum, que a brancura da tua alma fosse salpicada.
Ainda se aproximou dela, abraçando-a de novo e beijando-a com toda a força. Depois, girando sobre os calcanhares, abandonou o «saloon» por uma janela das traseiras e correu, como um louco, enquanto ia arrancando as roupas que vestia, para o lugar onde havia deixado «Raposa Astuta». Ao chegar junto das duas árvores, onde também havia deixado os cavalos, encontrou-se com o olhar carregado de ódio do índio.
— Vais matar-me de uma vez, renegado? — perguntou.
Um triste sorriso apareceu nos lábios do Tomahawk.
— Não — retorquiu-lhe. — Não vou fazer-te nenhum mal, «Raposa Astuta». As coisas mudaram muito desde que te deixei aqui. Acabo de saber que o vosso antigo amigo, Archibald Delastone, lançou as tropas contra a nossa aldeia.
«Raposa Astuta> estremeceu dos pés à cabeça.
— Isso é verdade?
— Sim.
— Nesse caso... solta-me! Por que esperas? Quero matar esse maldito branco com as minhas mãos!
— Chegas tarde, «Raposa Astuta». Já o fiz.
O ódio havia desaparecido por completo dos olhos do filho de «Nariz Achatado». Olhava agora para Tomahawk com a mesma admiração que lhe dedicara em criança. Depois, sorriu.
— Está bem — disse. — Nada do ocorrido entre nós se guarda na minha memória, irmão. Queres soltar-me agora?
— Sim. Cortou rapidamente as cordas com a faca de mato.
Depois, olhando fixamente «Raposa Astuta», disse:
— O nosso povo está em perigo, irmão. É muito possível que esta noite seja a última que os nossos olhos vejam.
— Não importa. Temos de ir ter com eles. Não é certo que vieste para isso? — Sim, é certo. <Raposa Astuta> apontou para o branco que Tomahawk havia capturado para lhe roubar as roupas e que continuava amarrado à árvore vizinha, contemplando com horror a cena que se desenrolava diante dele.
— Começamos por este? — inquiriu.
Tomahawk, com a cabeça, fez um sinal negativo.
— Não, irmão. Este homem não tem culpa de nada. Além disso, que ganharíamos nós em matá-lo? O nosso dever não está aqui, assassinando «rostos-pálidos» indefesos, mas na nossa aldeia, a lutar contra os soldados ao lado dos nossos. Para vencer ou morrer.
— Tens razão.
Saltaram rapidamente para os cavalos, deixando à direita a povoação dos «rostos-pálidos», e atravessaram, à ténue luz da lua, o curso tranquilo das águas do Arkansas River. Uma vez na outra margem, fustigaram furiosamente os cavalos; e, enquanto avançavam rapidamente, ouviam o fragor do combate, as detonações e os gritos de guerra que saiam das gargantas dos jovens «cheyennes».
A povoação estava parcamente iluminada, e o jovem índio desceu o prisioneiro da sua montada e amarrou-o solidamente a uma árvore, amordaçando-o depois para que não pudesse gritar. Era sua intenção solucionar algumas coisas antes de utilizar o filho de «Nariz Achatado> como testemunha do formidável processo que desejava levar a cabo.
Ao aproximar-se do povoado, deu-se conta de que não ia totalmente vestido; e lamentou então ter abandonado as roupas que lhe poderiam servir agora para circular pelas ruas sem chamar a atenção. Mas tudo tinha remédio. Forjou rapidamente um plano e dispôs-se a executá-lo.
Colocou-se junto à fachada de um edifício que se encontrava mergulhado na mais densa escuridão e esperou pacientemente que passasse um homem. Quando tal aconteceu, lançou-se sobre ele, golpeando-o e procurando ao mesmo tempo fazer-lhe o menor dano possível. Depois, levando-o para junto da árvore onde «Raposa Astuta» se encontrava amarrado, despiu-o, vestiu as suas roupas e amarrou-o a outra árvore vizinha, amordaçando-o também e esperando que não lhe guardasse rancor por aquilo que lhe havia feito.
Pôde comprovar, antes de se dirigir para o centro da povoação, que o homem recuperava os sentidos com certa facilidade. E partiu mais tranquilo. O fato do homem ficava-lhe curto e apertado, mas a obscuridade que reinava nas ruas de Pueblo ia facilitar-lhe a tarefa; ninguém se fixaria nele, pois, ainda por cima, o chapéu de aba larga caia-lhe sobre o rosto, ocultando-lhe assim a cor acobreada da pele.
Tomahawk havia tido tempo para meditar num plano concreto e, por conseguinte, após abandonar a rua principal, passou por detrás das casas e aproximou-se daquela que ostentava o nome da Companhia fundada por Archibald Delastone.
O edifício havia sido construído da mesma maneira que os demais, com janelas baixas e sem proteção alguma. Aquilo permitiu que o jovem «cheyenne» penetrasse nele com grande facilidade, não tardando a percorrer as suas dependências que, apesar da escuridão, os seus olhos de lince converteram bem cedo num terreno apto para se mover sem receio de tropeçar nos objetos que existiam em cada uma delas.
Não demorou muito a descobrir um raio de luz que saía por debaixo de uma porta. Aproximou-se com o silêncio de um felino e aos seus ouvidos chegou o rumor apagado de uma conversação. Colou o ouvido à madeira da porta e pôde escutar as vozes de dois homens. Prestou mais atenção e as palavras foram chegando aos seus ouvidos com mais clareza.
— E que vamos fazer com a rapariga? — perguntou uma voz.
— De momento — retorquiu outra vez, sarcástica e autoritária, que Tomahawk deduziu pertencer a Delastone, — mantê-la-emos encerrada nessa dependência do «saloon». Essa rapariga constitui um perigo enquanto os militares estiverem na região. Portanto, não a deixaremos que ponha o nariz de fora. Depois, quando o coronel e os seus homens partirem, poderemos dispor sobre o futuro dessa louca.
— Vi-a há pouco, patrão.
— Sim?
— Fui levar-lhe comida. Não faz outra coisa senão ameaçar; é uma verdadeira ferazinha. Disse-me que o seu amigo, esse maldito Tomahawk, acabaria por a vingar e daria cabo de tudo o que nós fizemos aqui.
— Não te preocupes, Ed — respondeu Delastone. — Já sabes que «Nariz Achatado» me enviou um mensageiro, esta manhã, que me comunicou que esse maldito Tomahawk havia surpreendido um dos assaltos às caravanas e que «Raposa Astuta» havia saído em sua perseguição. Como deves compreender, um índio como esse renegado, que passou tantos anos no Este, tem de ser forçosamente menos hábil do que um verdadeiro «cheyenne»; é, pois, muito natural que «Raposa Astuta» acabe por o encontrar. E, então, matá-lo-á e arrancará a sua cabeleira para juntar às que já exibe na sua tenda de futuro chefe. Claro que «Raposa Astuta» não sabe o que o espera quando regressar à sua aldeia.
— O senhor foi diabolicamente hábil, patrão! — maravilhou-se Ed...
— Faz-se o que se pode, rapaz. A verdade é que cometemos um erro muito grave e que nos podia ter custado caro.
— Qual, chefe?
— O consentir a «Nariz Achatado» que atacasse os colonos. Foi um erro muito grande, meu amigo. Estivemos a ponto de deitar tudo a perder por causa das exigências desse maldito índio. Teria sido muito melhor oferecer-lhe alguns presentes ou dar-lhe, inclusivamente, participação nos lucros. Claro que as coisas, agora, resolveram-se demasiado bem para que possamos arrepender-nos do que fizemos. Não ficará nem um, Ed. Pensa que amanhã, quando amanhecer, os militares terão terminado para sempre com o povo «cheyenne»; e nós ficaremos em completa liberdade para continuarmos a explorar as minas de prata, que é o que verdadeiramente nos interessa. Esses dois rapazes que trabalham para mim, os dois advogados de Chicago, Roger Shaw e Archie Odeen, encontram-se agora nas montanhas para verificarem os limites exatos onde as minas se encontram; terão assim uma base legal, absolutamente inatacável, que testemunhe a minha propriedade ante o Governo.
— Estupendo!
— 0 que a mim me interessa — prosseguiu Archibald -- é que os colonos passem tranquilamente por esta região. Quero converter esta povoação em algo maior, numa cidade, numa espécie de ponto de descanso, onde os que regressem ao Este deixem os seus dinheiros. As nossas salas de jogo «depenarão» muitos incautos, que terão de ficar a trabalhar nas minas para pagarem as suas dívidas. Está tudo muito bem pensado, hem, Ed?
— Não há dúvida, patrão. Você é um verdadeiro génio.
Até Tomahawk chegou de novo o riso antipático e satânico de Delastone.
— As coisas resolveram-se melhor do que eu julgava — disse ainda Archibald. — Os índios, quiséssemos ou não, constituíam um perigo latente, uma espécie de espada de Dâmocles sempre suspensa sobre as nossas cabeças. Não podemos esquecer que os «cheyennes» eram muito fortes e que, em qualquer momento, esse maldito «Nariz Achatado» poderia ter-se lançado sobre a nossa povoação, não deixando pedra sobre pedra. A chegada dos militares e a descoberta do que acontecia com as caravanas dos colonos veio solucionar definitivamente o problema, e, agora que teremos as mãos completamente livres, poderemos agir à nossa vontade e enriquecer num abrir e fechar de olhos. Os teus dois estúpidos companheiros, Walter e Joe, ao deixarem-se matar por esse maldito índio, perderam a possibilidade de se converterem no que eu lhes havia prometido: fazê-los homens Importantes e suficientemente ricos para não voltarem a sentir preocupações com coisa nenhuma.
— É certo.
Tomahawk havia escutado o suficiente. Na realidade, tivera de se conter várias vezes para não irromper no compartimento, castigando como devia aqueles dois canalhas. Havia deixado a carabina escondida, perto da árvore onde amarrara «Raposa Astuta», e apenas trazia o seu «Colt» 45. Não pôde resistir mais. Dando um formidável pontapé na porta, abriu-a de par em par; e penetrou, empunhando o revólver, no gabinete onde os dois bandidos se entregavam à euforia do antecipado triunfo. Com um sorriso, advertiu a expressão de surpresa e de medo que aparecia, simultaneamente, no rosto dos dois homens, que estavam muito longe, de imaginar que o seu odiado inimigo se encontrasse tão próximo.
— Chegou a vossa hora, malditos— disse. — Sois piores, que os répteis da montanha ou que os esfomeados coiotes da pradaria. Enganastes toda a gente, tanto brancos como índios. Soubestes despertar nos «cheyennes» a sua ânsia de luta e, ao mesmo tempo, entregar à morte os pobres colonos que acreditavam em vós. Não vou esperar que a justiça dos «rostos-pálidos» vos castigue. Ocorreram demasiadas coisas para esperar que sejais julgados e castigados como mereceis. Acabo de ouvir que graças à vossa maldade os soldados se lançaram contra o meu povo. A partir deste momento, com grande pesar meu, volto a ser o mesmo de sempre: um guerreiro «cheyenne». E um guerreiro «cheyenne» não pode ter piedade de nada nem de ninguém.
Havia tal decisão de matar nos seus olhos que Archibald, branco como a cera, se pôs de pé, estendendo ambas as mãos para o índio, como se quisesse deter as balas que, de um momento para o outro, iam sair do negro cano do «Colt»} que empunhava.
— Não, não dispares! Posso fazer-te rico e poderoso como nunca sonhaste ser!
Um triste sorriso assomou aos lábios do «cheyenne».
— O «rosto-pálido» — disse com desprezo — não pode oferecer outra coisa senão aquilo que não é seu. Mas, mesmo que fosse, o resultado seria o mesmo. Independentemente do facto de desprezar a riqueza, nem toda a prata que a montanhas sagradas guardam no seu seio poderiam deter-me agora, cão maldito. Não julgues que vou vingar apenas os meus irmãos que cairão esta noite por tua culpa. Quero também vingar os colonos que foram assassinados pelo meu povo, a quem tu soubeste enganar habilmente. Já vês, «rosto-pálido», que de nava servem as espertezas quando chega o momento da verdade.
Apertou o gatilho. Archibald Delastone recebeu a bala entre as sobrancelhas. Depois, girando a uma velocidade vertiginosa, Tomahawk disparou, da mesma maneira e com idêntica pontaria, sobre Ed, que havia ficado imóvel como uma estátua. Também Sommers recebeu o balázio entre os olhos e, décimos de segundo depois, caía com um ruído surdo, batendo com a cabeça na madeira do soalho.
Sem perder mais tempo, Tomahawk abandonou o escritório da Companhia, saindo pelo mesmo sítio que havia utilizado para penetrar no edifício. O seu instinto guiava-o para a aldeia índia, onde o chamava o seu dever; mas uma imagem aparecia vigorosamente no seu cérebro e, com passo cauteloso, dirigiu-se para o «saloon», penetrando por uma porta das traseiras, percorrendo um longo corredor e descobrindo, pouco depois, a dependência fechada hermeticamente onde, sem dúvida alguma, devia encontrar-se a misteriosa rapariga de que os dois bandidos haviam estado a falar e que não podia ser outra senão Alisha Silk.
Deu um formidável empurrão na porta e esta abriu-se, saltando dos gonzos. O compartimento era pequeno e o seu mobiliário era constituído por um leito, uma mesa e uma cadeira.
Sentada nesta, escrevendo uma carta à luz do candeeiro a petróleo que se encontrava sobre a mesa, encontrava-se Alisha Silk que, levantando a cabeça, olhou o jovem índio com o maior dos assombros. Tomahawk teve de fazer um esforço supremo quando ela o abraçou, quando os seus lábios lhe roçaram a cara e quando sentiu o calor do corpo da rapariga junto do seu.
As fantásticas ideias que havia acariciado até então surgiram rápidas do fundo da sua alma. Sentiu-se invadido por uma torrente de ternura, e teve de contrair os músculos e de endurecer o espírito para, com brandura não isenta de decisão, afastar a rapariga e, segurando-a pelos ombros olhar com fixidez aqueles olhos azuis de insondável doçura.
— Sabia que havias de vir, John! — continuou ela. — Sabia-o! Vim ver-te, como te prometi, admirada de não receber noticias tuas. Descobri coisas horríveis nesta cidade, John.
— Não devias ter vindo, Alisha — retorquiu ele, muito sério. — Isto não é lugar para ti. Agora és livre.
— Que queres dizer? — inquiriu ela, franzindo o sobrolho.
— Que já és livre, Alisha. Regressa ao Este. Parte desta terra que a maldade e a ambição estão a converter num verdadeiro inferno.
—E tu?
— Eu já não sou o mesmo, pequena. O velho sangue dos meus antepassados apagou para sempre as recordações agradáveis da minha permanência nas vossas formosas cidades. Isto quer dizer, Alisha, que nunca mais voltaremos a ver-nos.
— Enlouqueceste?
— É muito possível. Porque loucura é lutar quando se sabe que tudo está perdido, quando se corre para a morte. Vós, os «rostos-pálidos», não podeis compreender a essência desse princípio índio, que nos empurra deliberadamente para o final. As vossas ideias religiosas são completamente diferentes das nossas. E a vida é, para vós, algo preciso que tendes de conservar porque o vosso Deus odeia a guerra, a destruição e o ódio. Manitu não é assim, Alisha. É um deus poderoso, cruel e implacável. Um deus que não perdoa a cobardia, a hesitação e o erro. Sabe que nós esperamos unirmo-nos a ele, para entrarmos nos territórios de caça que nos prometeu. Mas só há uma maneira de se entrar neles, Alisha: a morte em combate. E um «cheyenne» não pode ver morrer o seu povo sem mexer um dedo. Tem de morrer com ele. Não sabes quanto te agradeço tudo o que fizeste por mim durante o tempo que estive em Chicago. É muito possível que lá em cima, quando cavalgar pelas pradarias infinitas de Manitu, eu sorria, pensando na rapariga branca a quem, porque não dizê-lo agora? amei mais do que tudo nesta vida.
— John! — exclamou ela, com voz afogada.
— Não, deixa-me continuar, Alisha. Amei-te muito, embora desde o princípio me houvesse dado conta do absurdo do meu desejo. Jamais os teus teriam permitido que nos uníssemos em casamento.
— Isso é mentira.
— Para ti, que me amas, todos os obstáculos podem ser destruídos. Mas tu não te dás conta de que no caso de uma possível união, para nos convertermos no casal que sempre sonhei, o mal não se refletiria em nós, mas nos nossos filhos, que não passariam de mestiços eternamente envergonhados do que os seus pais haviam feito.
Ela olhava-o aterrorizada, pálida como a cera.
— Tenho de me ir embora, Alisha. O dever reclama-me. Cometi o erro de acreditar que havia uma possível solução para o problema que foi sempre como um abismo entre as nossas duas raças. Fui um sonhador, Alisha, um estúpido da cabeça aos pés. Esqueci o que os meus antepassados me haviam ensinado e sonhei em unir o teu povo ao meu, em fazer dos homens da minha raça os povoadores desse mundo que a vossa civilização força a toda a pressa. Mas tudo isso não passou de um sonho vão, de uma ilusão que não pode manter-se. Adeus, Alisha. Volta para o Este e sê muito feliz. Esta terra está a empapar-se de sangue, e não queria, de modo algum, que a brancura da tua alma fosse salpicada.
Ainda se aproximou dela, abraçando-a de novo e beijando-a com toda a força. Depois, girando sobre os calcanhares, abandonou o «saloon» por uma janela das traseiras e correu, como um louco, enquanto ia arrancando as roupas que vestia, para o lugar onde havia deixado «Raposa Astuta». Ao chegar junto das duas árvores, onde também havia deixado os cavalos, encontrou-se com o olhar carregado de ódio do índio.
— Vais matar-me de uma vez, renegado? — perguntou.
Um triste sorriso apareceu nos lábios do Tomahawk.
— Não — retorquiu-lhe. — Não vou fazer-te nenhum mal, «Raposa Astuta». As coisas mudaram muito desde que te deixei aqui. Acabo de saber que o vosso antigo amigo, Archibald Delastone, lançou as tropas contra a nossa aldeia.
«Raposa Astuta> estremeceu dos pés à cabeça.
— Isso é verdade?
— Sim.
— Nesse caso... solta-me! Por que esperas? Quero matar esse maldito branco com as minhas mãos!
— Chegas tarde, «Raposa Astuta». Já o fiz.
O ódio havia desaparecido por completo dos olhos do filho de «Nariz Achatado». Olhava agora para Tomahawk com a mesma admiração que lhe dedicara em criança. Depois, sorriu.
— Está bem — disse. — Nada do ocorrido entre nós se guarda na minha memória, irmão. Queres soltar-me agora?
— Sim. Cortou rapidamente as cordas com a faca de mato.
Depois, olhando fixamente «Raposa Astuta», disse:
— O nosso povo está em perigo, irmão. É muito possível que esta noite seja a última que os nossos olhos vejam.
— Não importa. Temos de ir ter com eles. Não é certo que vieste para isso? — Sim, é certo. <Raposa Astuta> apontou para o branco que Tomahawk havia capturado para lhe roubar as roupas e que continuava amarrado à árvore vizinha, contemplando com horror a cena que se desenrolava diante dele.
— Começamos por este? — inquiriu.
Tomahawk, com a cabeça, fez um sinal negativo.
— Não, irmão. Este homem não tem culpa de nada. Além disso, que ganharíamos nós em matá-lo? O nosso dever não está aqui, assassinando «rostos-pálidos» indefesos, mas na nossa aldeia, a lutar contra os soldados ao lado dos nossos. Para vencer ou morrer.
— Tens razão.
Saltaram rapidamente para os cavalos, deixando à direita a povoação dos «rostos-pálidos», e atravessaram, à ténue luz da lua, o curso tranquilo das águas do Arkansas River. Uma vez na outra margem, fustigaram furiosamente os cavalos; e, enquanto avançavam rapidamente, ouviam o fragor do combate, as detonações e os gritos de guerra que saiam das gargantas dos jovens «cheyennes».
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