sexta-feira, 4 de março de 2016

PAS592. Reencontro no momento da morte

Estava encostado ao balcão tomando uma bebida, quando o homem de rosto duro e corpo atarracado empurrou os dois batentes da porta e, com passo lento, se dirigiu para ele.
— Falo com Charles Dean?
O homem pousou o copo no tampo do balcão, voltou a cabeça e começou a contemplar o recém-vindo por cima do ombro, sem abrir a boca. Esteve quase para negar. Depois de quinze longos anos aquele nome voltava a ouvir-se dentro de um «saloon», como uma pergunta vulgar feita muitas outras vezes naquele mesmo tom. Uma pergunta que equivalia a um repto, a um desafio em que a voz do «Colt» é que ditava o vencedor. Mas, isso ficava já para trás, sepultado no passado, de onde não deveria voltar a ressurgir.
Não se deu ao trabalho de responder, como se a pergunta fosse dirigida a um desconhecido. Voltou a cara ficando-se a olhar para o espelho corrido colocado atrás do balcão, junto da estante repleta de garrafas. Enquanto contemplava a sua própria imagem refletida no espelho, ouviu novamente a voz do homem que repetia a pergunta no mesmo tom indiferente e meio fatigado:
— Falo com Charles Dean?
Via o rosto dele reproduzido no espelho. Não podia haver dúvida: era Charles Dean. Com a diferença, apenas, de que, agora, não era mais do que o espectro do pistoleiro de outros tempos. Estava ali, sim, mas tinha mais quinze anos de idade. A mesma cara de antes, mas mais chupada, mais enrugada. O bigode mais farto, semeado de branco e com as pontas caídas nas extremidades. A testa sulcada de rugas e o sobrolho franzido, revelando as suas múltiplas preocupações. Um pouco derreado dos ombros, alto e seco como um ramo de árvore sem vegetação. Estava ali refletido o seu rosto, ensombrado pelos mais desencontrados pensamentos, na superfície polida do espelho. E ouviu então, mesmo junto da face, as palavras que o homem fizera a pergunta ia proferindo, ao mesmo tempo que o bafejava com o seu hálito quente:
-- Fui encarregado de vir avisá-lo de que é esperado lá fora, dois homens que querem matá-lo.
A notícia sacudiu-o de alto a baixo, como se tivesse recebido uma pancada, à traição, pelas costas. Voltou-se e encarou bem de frente a cara do homem que lhe falava; uma cara torva, sem expressão, plena de baixeza, com um olhar que acabou por desviar dos olhos do seu interlocutor.
Perguntou com a maior calma:
— Dois homens esperam que eu saia para me matarem?
— Dizem que saia, a menos que seja um cobarde.
Os homens que se encontravam próximo do balcão voltaram-se, fixando Charles Dean com grande atenção e afastaram-se deixando-o isolado e com uma enorme clareira à sua volta. Dean ficou no centro, pensativo e carrancudo.
«Não queriam deixá-lo viver em paz. O passado não tinha morrido ainda, nem após os quinze anos de isolamento no presídio. A sua vida de pistoleiro ia ressuscitar na hora em que voltasse a empunhar o «Colt», respondendo ao desafio do primeiro louco que lhe saísse ao caminho. Mais um morto a juntar à lista do passado e mais uma história a acrescentar à vida de Charles Dean.»
Levou automaticamente a mão ao lugar do cinturão onde trazia habitualmente o coldre e não o encontrou. Não quisera munir-se de qualquer arma. Desejava regressar à vida com as mãos purificadas pela longa ausência; renegara o «Colt» por completo, sentindo-se totalmente aliviado por não ter já de suportar o peso do ferro homicida; de não ser portador daquele cacho de uvas cujos bagos de fogo e de chumbo eram sempre mensageiros da morte.
Nenhum dos presentes seria capaz de adivinhar o pensamento do ex-pistoleiro. Mostrava-se pálido, macilento, ante o homem atarracado, cabisbaixo e com as mãos pendentes ao longo do corpo. A pergunta que lhe dirigira aquele tipo sinistro estalou como uma bofetada que lhe fez erguer o rosto e enfrentar a realidade da situação:
— Não será o senhor um cobarde? Disse-lhe que o esperam para o matar.
Dean deu uma palmada na coxa dizendo, sem alterar o tom de voz:
— Não! Não sou um cobarde, mas não trago armas comigo. Quem são esses dois homens?
— Um chama-se Kirsey Logan e o outro Nandy Leick; tem apenas vinte e dois anos e é capaz de cortar o pavio de uma vela, com uma bala, a dez metros de distância. Há ainda um outro, de nome Sharto, bastante parecido comigo mas que, presentemente, não se encontra junto deles.
Charles Dean replicou sem qualquer rancor:
— Não conheço nenhum deles. Nada lhes fiz nem Cies me fizeram a mim. Não compreendo porque é que querem matar-me.
— O melhor que tem a fazer é sair e perguntar-lhes. Se não tem revólver, posso ceder-lhe o meu. Tome.
— Obrigado. Não penso bater-me. A minha vida de pistoleiro terminou há quinze anos.
— Como' queira. Não creio que os convença, mas o melhor é ir saindo, para que não pensem que tudo isso é cobardia.
Todos o viram dirigir-se para a porta e abri-la. Correram para as janelas laterais, de onde puderam ver os dois homens postados em frente do «saloon» mas no lado oposto da rua. Charles Dean parou, com a jaqueta desapertada, deixando ver que não era portador de qualquer arma e com os braços pendentes ao longo do corpo. Atravessou o piso e desceu os dois degraus que dava para a calçada. O cavalo que deixara preso pela arreata moveu a cabeça dando um breve relincho, tendo-o o ex-pistoleiro- acariciado ligeiramente. Parou e quedou-se especado, olhando para os dois pistoleiros que, com a cabeça inclinada e um sorriso torvo o contemplavam com o olhar brilhante de ironia. O sol arrancava reflexos dos adornos metálicos dos cintos e dos «Colts» que emergiam dos coldres. Bastava que dessem dois passos em frente e que disparassem para que as balas o ferissem ou, mesmo, o matassem.
O mais jovem dos dois deveria ser Nandy Leick. Vestia todo de negro: calças, camisa e até o próprio chapéu. A grossa fivela metálica reluzia com brilho intenso, estabelecendo um flagrante contraste com a negridão do vestuário. Debaixo da aba do chapéu, escondia-se um riso doirado. Na mão direita, cujo polegar descansava na fivela do cinturão, brilhava um grosso anel de ouro, enfiado no dedo maior. Tudo no seu possuidor era falso, inclusivamente a pedra do anel que rebrilhava intensamente à luz do sol.
A seu lado, afastado apenas alguns passos, estava Kirsey Logan, o autêntico reverso de uma medalha: sujo e por barbear; mãos enormes e cobertas de cabelos, a testa estreita e contraída. Os seus amplos sacões, ligados às pernas por meio de correias, faziam lembrar as asas de um morcego.
O silêncio foi interrompido pelo mais jovem, num tom calmo e ao mesmo tempo sardónico:
— Olá... Charles Dean. Viemos aqui só para o matar.
Nenhum deles, entretanto, fez o menor gesto para levar a cabo a ameaça. Ficaram-se estáticos, na mesma posição, com os olhos cravados nele como lâminas aceradas, vigiando todos os seus movimentos.
Dean estendeu os braços, mostrando as palmas das mãos abertas e vazias, dizendo simplesmente:
— Não vos conheço de parte alguma. Nada tenho contra vós, nem creio que vós algo tenhais contra mim. Deixei de ser pistoleiro. Sou apenas um homem que saiu do presídio e procura esquecer.
Houve uma ligeira pausa durante a qual os dois pistoleiros trocaram 'um olhar de inteligência. Quando voltaram a olhá-lo, Nandy perguntou em ar de troça:
— Tens medo de morrer, Dean? Quem havia de dizê-lo...
— A morte não me mete medo. Parei aqui, em Tohmsone, somente para aguardar a chegada de meu filho. Não me interessa continuar a ser um pistoleiro. Passei quinze anos no presídio por um crime que não cometi. Isso, porém, já não conta. A única coisa que me interessa é ficar ao lado de meu filho. Também não tenho qualquer prazer em liquidar-vos. Se fazeis questão em matar-me, deixai ao menos que eu veja o meu filho. Não quereria morrer sem vê-lo. Depois... se não houver mais remédio...
Nandy retomou a palavra. Divertia-se cruelmente com aquilo que ele supunha ser medo do homem:
— Não podemos fazer-te a vontade, Dean, nem podemos esperar. Bem sabes que no nosso ofício sempre se tem muita pressa. Faz-se o trabalho e o cavalo se encarrega de pôr terreno de intermédio, se tanto for preciso. Pagaram-nos para te liquidar... e temos de cumprir, mas damos-te a oportunidade de te defenderes.
— Não tenho armas e, além disso não quero disparar contra vocês nem contra quem quer que seja. Quero apenas reunir-me a meu filho. Deixem-me abraçá-lo. Há uma quantidade de anos que o não vejo. A última vez que o vi foi quando foi ao presídio visitar-me.
Nandy abanou vagarosa e negativamente a cabeça.
— Não, Dean. Não verás o teu filho. Teríamos, talvez, de lutar depois, contra ele. Assim, uma vez liquidada a tua pessoa, fica o trabalho acabado. E a verdade é que não me agrada nem quero falar mais. Faz-me sede. E agora, vamos a acabar com isto rapidamente, para ir tomar umas bebidas no «saloon» lá de cima antes de me safar de Thomsone.
Dean levantou-se e falou. As suas palavras estalaram como uma bofetada no rosto do bandido mais jovem:
— Não passas de um canalha Nandy Leick. Nunca te tinha visto na minha vida e quando eu andava a cavalo por todas as povoações do Oste selvagem, ainda te não tinham desmamado. Mas, do que não há dúvida é que te deram muito mau leite a beber, para que, em tão verdes anos, tenhas já tanta maldade. Está bem! Prefiro defrontar-me contigo e com esse que te acompanha, para não deixar a tarefa a meu filho. Mas não tenho armas. Passa-me um dos teus revólveres e eu te ensinarei como se maneja um «Colt».
Nandy sorriu-se com um prazer doentio:
— Não, Dean. Os meus «Colts» são unicamente para meu uso, mas esse homem que está ai à tua ilharga certamente te dispensará o seu.
Dean voltou-se. Estava ali, com efeito, um homem, encostado a um dos pilares do alpendre do «saloon». Era o mesmo homem que entrara no estabelecimento a dar--lhe o aviso respeitante aos pistoleiros que o aguardavam. O homem pegou no «Colt» e atirou-o a Dean, acompanhando o gesto da seguinte frase:
— Aí tem, Charles Dean! Defenda-se!
A arma volteou no ar e foi encaixar-se na palma da mão do ex-pistoleiro. Sentiu o contacto e o peso do metal, a dureza impecável e a força latente, destrutiva e aniquiladora da vida humana. De novo, como em anos já distantes, os seus dedos se crisparam na coronha da arma e o dedo indicador se dobrou com raiva sobre o gatilho, visando instantaneamente os seus dois inimigos.
Estes já tinham as armas empunhadas. No mesmo instante que Dean premia o gatilho, ouviram-se as detonações dos dois «Colts». Quatro tiros, quatro balas que lhe penetraram em diferentes partes do corpo, enquanto o assombro e a raiva impotente se lhe estampavam no rosto ao verificar que o revólver que empunhava estava descarregado e sem bala alguma no tambor.
Os tiros haviam cessado e apesar de ter as balas no corpo continuava de pé. Girou lentamente sobre si mesmo, largando da mão a arma inútil que se enterrou na poeira, ficou uma fração de segundo olhando acusadoramente para o indivíduo que lhe cedera o revólver vazio:
— Cobar...de!
Soou então o último tiro. A bala entrou-lhe junto de um ombro, derrubando-o sobre a poeira onde bateu com a cara, ficando de braços e pernas abertas, completamente imóvel.
Uma voz disse:
— Charles Dean está despachado. Vamos ao «saloon» lá de cima. De tanto falar tenho a boca a saber-me a trapos.
As botas afastaram-se. Fora a voz de Nandy Leick que falara mas Dean mal o ouvia. Ouvia apenas o deslizar lento e quente do seu sangue brotando das feridas abertas na sua carne. Uma humidade tépida ia-o mergulhando num indefinível letargo... e, nas trevas da sua mente ouvia cada vez mais próximo e mais nítido o galope surdo de um cavalo que se aproximava. E logo a seguir, a estacada, uma pausa e um grito:
— Pai! Quem foi que te atacou? Quem? Quem?
Encheu-se-lhe o peito de alegria ao ouvir aquela voz. Era o grito rebelde do sangue, clamando pelo mesmo sangue. Abriu os olhos e sentiu a sensação de se contemplar a si próprio. Era exatamente a sua cara de há vinte anos; o mesmo brilho no olhar; o mesmo poder e a mesma força nas mãos que se crispavam na sua carne rasgada e sangrenta. Nada lhe doía já na presença de seu filho, ao ouvir a sua voz bramindo de raiva. A raiva do filho, despertada pelo mal feito a seu pai, enchia-o de orgulho e de ventura, uma ventura que podia considerar-se compensada pelas balas que lhe tiraram a vida.
— Pai! Quem foi? Dize-me quem foi...
Abriu a boca num penoso esforço, dizendo quase num sopro:
— Não tentes vingar-me, filho. Deixa-os. O sangue pede sangue e a cólera chama a cólera. Não passam de uns assassinos... nada tinham contra mim. Pagaram-lhes para me matarem. Tinha a cabeça a prémio. A profissão deles é matar. Não penses em vingar-me, Jack. Não quero que venhas a ser um pistoleiro.
Ficou-se a olhar para o filho que murmurava em voz sombria:
— Não posso obedecer-te, pai. Irei até aonde for preciso à procura deles. Ainda que me matem. Maldezir-me-ia a mim próprio toda a vida, se o não fizesse. Será feita justiça. Depois... voltarei à charrua. Não serei um pistoleiro.
Ainda pôde contemplar as suas feições durante mais uns segundos. Era igualzinho a si. Seu filho! Aquela promessa solene era o grito do sangue. Charles Dean antes de expirar, ainda sentiu o calor do sangue invadir-lhe todo o corpo como se fosse uma bandeira desfraldado, ao vento; a rajada violenta da paixão e da luta. Seu filho falou como ele teria ambicionado. O seu peito encheu-se de orgulho por aquele filho que o não renegava e oferecia a sua vida em holocausto à de seu pai.
— Bem hajas, filho. Sou completamente... feliz -- inclinou a cabeça, ficando com a face encostada à palma da mão de Jack Dean, aberta e encharcada de sangue.

Sem comentários:

Enviar um comentário