quarta-feira, 9 de abril de 2014

NOV009. Falcão Negro volta ao Páginas de BD

Os pedidos chegados à nossa caixa de correio para publicação das aventuras de Falcão Negro de 1946 foram tantos que não podemos de deixar de satisfazer os nossos amigos e, assim, elas acabaram de surgir no Páginas de BD através da digitalização do álbum nº 17 da Antologia da BD Portuguesa. Aproveitamos para vos deixar com este excelente artigo de A. Dias de Deus que acompanhou aquela publicação.
 
Ascensão e Queda de Falcão Negro
 
Publicada entre Abril e Agosto de 1946, acompanhando a voga «western» que preenchia o repositório de «O Mosquito», a história aos quadradinhos «Falcão Negro» surge-nos como a mais enigmática criação da dupla E.T. Coelho-Raul Correia. A primeira vista, dá-nos a impressão duma aventura composta por episódios despegados, com cavalgadas para aqui e acolá, acumulando erros na cronologia e na apresentação dos atores, vindo atabalhoadamente a público, entalada entre as epopeias marítimas «Os Náufragos do Barco Sem Nome» e «O Caminho do Oriente».
Esta situação de «bastardia» agrava-se pela circunstância de começar sem preâmbulo próximo, havendo ainda o esquecimento de colocar o indicativo «FIM», ao terminar a novela. Quando acabamos de ler a 35ª e última prancha, esbarramos com a palavra «continua», mas, no número seguinte, o que vem é o começo de «O Caminho do Oriente».
A relativa fragilidade do argumento, onde praticamente não se descobre intriga, a aparente monotonia das situações conflituosas, repetitivas quase sempre, a marcada desconexão com as outras H.Q. de E.T. Coelho que a precedem ou lhe sucedem, levar-nos-ia a considerar «Falcão Negro» uma obra menor, produzida à míngua de recursos, para ocupar quanto baste um espaço quanto sobre. Uma apreciação deste tipo, porém, seria injusta. Pior que isso, seria errada.
Prodigiosa aventura onde tudo se move e nada se transforma, tudo se repete e nada se define, orquestrada como um «cânone» em espelho, a cada cena correspondendo outra simétrica, a cada final novo começo, em movimento perpétuo — exemplo incomparável de mestria cinemática, esquivando metodicamente, aos olhos do espectador desatento, o tema central e dominante da narrativa: a crise de adolescência do Falcão Negro.
A história já vinha de trás: uma novela escrita por Raul Correia em princípios de 1943, intitulada «Aventuras de Jim West». Era prosa maciça, entremeada com capas flamejantes e ilustrações interiores soltas, por Eduardo Teixeira Coelho. O estilo do desenhador, nessa altura, usava traço seco e sombras compactas, desenvolvendo-se bem as carreiras de cavalos, longe ainda de se apresentarem os corcéis fogosos em piruetas diabólicas, só inventados em 1945, provavelmente numa altura em que o artista estudava mais de perto a anatomia e movimento do cavalo. Quer pelo argumento, quer pelas ilustrações, a novela «Aventuras de Jim West» teve sucesso, a ponto de serem publicadas separatas com construções de armar alusivas. Todavia, a história em si não é muito brilhante, costurada um pouco ao género das aventuras dos folhetins de Texas Jack, com todos a correr para aqui a salvar Louise, depois todos a correr para ali a salvar Nath Pig, de seguida todos a correr para acolá a salvar Jim West. Parecia um jogo dos 5 cantinhos, em que acabava por ficar sempre um de fora. Havia, contudo, certo cuidado na individualização dos personagens, o que lhes conferia calor humano. E, duma maneira geral, a novela melhorava à medida que se aproximava do fim. O Falcão Negro já lá se encontrava, primeiro em bolandas no ventre materno, depois, recém-nascido, nos braços de Louise. Ser-lhe-ia dado o nome de Fred e deveria continuar as façanhas de Jim West. Três anos mais tarde (cronologia do leitor), começa então, sob a forma de quadradinhos, em 1946, «Falcão Negro — O Filho de Jim West». Estávamos em 1837 (cronologia do herói), portanto a história deslizara 14 anos, idade com que Fred West se estrearia nos «media» como Actor principal. O Falcão Negro é-o de nome e temperamento. Para fazer jus ao título, na primeira prancha abate uma ave em pleno voo, com flecha tão certeira como a bicada do seu animal totémico. Veste de negro, bem se pode dizer das plantas dos pés ao topo da cabeça, pois os mocassins e fato justo são completados com um gorro alto, que faz o rapaz presumir maior estatura do que a que realmente possui.
Veste de negro porque é o eterno órfão de mãe, prolongando o luto muito para além da idade adulta. O princípio e o fim desta H.Q. acontecem junto ao túmulo de Louise — a tutela matriarcal ressente-se no comportamento do herói, debatendo-se permanentemente em luta íntima para se libertar da solidão existencial, agravada pela surda animosidade contra o pai (viúvo culpado, porque sobrevivente). A pretensa «busca do pai» não é mais do que a camuflagem do desejo (simbólico) de verificar o aniquilamento do pai. Perante um cadáver putrefacto, o Falcão Negro hesita em identificá-lo; quando o próprio Jim West reaparece o filho não consegue reconhecê-lo. A superação da crise — a reconciliação entre o princípio de prazer (eros) e o princípio de realidade (ananquê) — só virá a efetivar-se diante da sepultura de Louise, em imagem simétrica da cena inicial, só que, desta vez, o pai está presente ao lado do filho.
Os quatro princípios elementares da Natureza enquadram a Acão: o ar, onde as flechas voam, a terra, onde os corpos caem, e, principalmente, a água e o fogo, que precipitam as mudanças de cenário. Pelo fogo são devastadas as cabanas de madeira dos pioneiros, que os incêndios das paixões atiçam. No rio, omnipresente até à orla do deserto, se esfriam os ímpetos combativos dos contendores. Simetricamente, um banho lustral do jovem Fred precede o início das hostilidades (forçando o falcão a fugir depenado), enquanto um banho-barrela, desencardindo Nath Pig (porco), encerra o ciclo de batalhas.
Um mesmo índio, Raposa Cinzenta, vem anunciar ao público espectador quando a guerra começa e quando acaba. As correspondências estruturais estão finamente ajustadas numa peça teatral onde todos rodopiam à volta do mesmo palco. Vejamos agora os figurantes. Há índios, brancos e cavalos. E duas raparigas mais um frade. Os índios são bons ou maus, mas, os que são bons, às vezes parecem maus, e os maus acabam por se converter em bons. É tão difícil uma classificação ética como étnica. Até porque, ao meio da história, os bons, os Chipewas, passam a ser lroqueses, por confusão (?), com a agravante que os maus, os Crows, acabam por se revelar como também fazendo parte da família dos Chipewas.
Alguns bandidos também podem ser brancos, fornecendo-nos E.T. Coelho uma das figuras mais sebentamente repugnantes, num homicida de cabelo rapado e riso alvar. Foi pena não ter sido aproveitado para outras histórias, mas os autores decidiram que aqui ficasse pendurado pelo pescoço.
Além de personagens convencionais, como Jim West e Nath Pig, há que contar com o misterioso frade franciscano, espécie de Frei Padinha, enfiado num roteiro «western» antes da rota das descobertas. É difícil interpretar a missão deste frade, além da função de se tornar urna vítima, numa história em que há quase um cadáver por página. Talvez sirva de contraponto ao desempenho burlesco do bufarinheiro, que, exoticamente, pretende conservar a vida numa jornada onde os mortos se alinham uns atrás dos outros. Falemos agora da insólita intervenção dos dois garotos irmãos e do velho, seu avô. Parece uma história diferente, que, por acaso, veio entroncar nesta. A inesperada direção e reviravolta que imprime à narrativa é mais do gosto de José Padinha do que de Raul Correia. Fica por deduzir a quota-parte de participação do primeiro, através das decisões semiautónomas de E.T. Coelho. No episódio dos dois miúdos brigões, dois aspetos devem ser apontados: em primeiro lugar, o facto de qualquer deles ser mais audacioso e violento que o próprio Falcão Negro, acabando este por ter que assumir uma atitude censória paternalista; em segundo lugar, ficamos perplexos quanto ao desfecho trágico — tendo a cabana sido incendiada pelos índios Crows, o avô e os netos morreram ou conseguiram escapar? Nunca mais ouviremos falar deles.
Nesta novela, as próprias omissões narrativas ganham foros de crueldade. Quanto aos figurantes do género feminino, por duas vezes se fazem representar. Pelo início da história, num «rancho» pertencente a um francês, temos Marie Aimard, uma rapariguinha dois anos mais nova do que Fred, com quem «de bom grado este se demoraria mais». É um esboço de idílio bucólico, sem tempestades.
Mais acidentado é o encontro com a outra rapariga, dois anos mais velha que o herói. Desta vez é uma magrizela alta, desengonçada, feiota, cabelos cor-de-linho, tratando o rapaz com desdém e troça, a ponto de este perder as estribeiras e atirar com ela abaixo do cavalo. Os dois exemplos de relacionamento de Fred com o sexo oposto não podiam ser mais contrastantes.
Na galeria zoológica surgem ocasionalmente cães rosnando junto ao prisioneiro, coiotes a uivar à distância e abutres que vêm periodicamente debicar os cadáveres. Mas, as grandes vedetas são indubitavelmente os cavalos. Desenhados numa altura em que o artista dominava com naturalidade e fluência os jogos de movimentos das montadas, encontram-se nesta história com uma densidade superior a qualquer outra. Desde 1944 que E.T. Coelho estava continuamente a aperfeiçoar a representação dos cavalos. No «Falcão Negro» atinge a perfeição. De futuro, poderemos ainda vê-los nas histórias das mouras, na balada da conquista de Lisboa, em «O Mensageiro»; porém, não alcançarão outra vez a liberdade plena de movimentos que desfrutam nas cavalgadas de «Falcão Negro». Parados, a trote, a galope, cabriolando, vistos de cima, de lado, ao nível do chão, precipitando-se em abismos, ou cortando as vinhetas em desfiladas diagonais, constituem um motivo quase permanente.
Deve também chamar-se a atenção para o cuidado com que o artista trata os pormenores de vestuário e armamento usados pelos atores. Lembremo-nos que estamos no início do século XIX e as armas de fogo carregam-se pela boca — ainda não havia «colts». Primeiro dá-se um tiro e depois tem que se resolver a questão à cacetada. E.T. Coelho não cai no disparate das fuzilarias cerradas, e, se nunca vemos os personagens carregar as espingardas, a verdade é que trazem sempre um polvorinho a tiracolo. A minúcia do desenhador na guarnição das pistolas irá exercitar-se de forma quase maníaca nas derradeiras histórias do Falcão Negro, onde as armas são trazidas, às vezes, para o primeiro plano.
Chegou finalmente a altura de falarmos do herói. É moreno, magro, espigadote, de rosto comprido e feições duras, com os cantos dos lábios descaídos. Conclui-se facilmente que E.T. Coelho utilizou um modelo ao vivo. Se dermos uma olhadela à H.Q. de Jayme Cortez que nessa mesma altura se publicava também em «O Mosquito» — «Os 2 Amigos na Cidade dos Monstros Marinhos» — descobriremos que um dos garotos (Fernando) é magro, alto e de rosto comprido, enquanto o outro (António) é pequeno, de rosto redondo, cabelo liso e covinha no queixo. Concluiremos ter havido um modelo que posou para «Falcão Negro» e «Fernando», e outro modelo para as figuras de «António» e «Simão Infante». Basta ir, ver e comparar. Já o dissemos atrás, a história do Falcão Negro é a progressão da sua crise de adolescência, detetável nalguns episódios, como a procura do pai, o relacionamento feminino e a camaradagem masculina. Há cenas em que o simbolismo sádico-erótico está, presente de maneira explícita — o galho de árvore funcionando como símbolo fálico, violentando-o, na sequência da tortura. Depois deste acontecimento, o herói já não volta a ser o que era antes. Faz lembrar a captura do coronel Lawrence em Deraa.
Considerando que «Falcão Negro» retrata o amadurecimento do jovem Fred West, é óbvio que esta história só pode ser contada de uma maneira e de uma só vez. Quando Raul Correia e Eduardo Teixeira Coelho decidiram ressuscitar o herói, alguns anos mais tarde, em «Tempestade no Forte Benton», «As Vítimas do Sol» e «Terra Turbulenta», nenhuma relação havia já com o Falcão Negro de 1946, pois, em vez dum adolescente inseguro, encontrávamos agora um adulto, de reflexos automáticos e previsíveis, remetendo-se a aventura a um acumular de peripécias gratuitas. E o mesmo se pode dizer da série com o mesmo título, aparecida na revista espanhola «Chicos» (2.a série) em 1954, parcialmente editada em Portugal, no «Cavaleiro Andante». Os garbosos cavalos, as paisagens deslumbrantes, as lutas vigorosas, as perseguições desenfreadas continuavam presentes. O desenhador mantinha elevada qualidade, mas as cenas passaram a suceder-se por inércia, com qualquer tipo de argumento, ou até sem nenhum.
 PS: Fora de Portugal e Espanha, «Falcão Negro» foi também publicado no Brasil, em «comic books» duma editora de S. Paulo, nos finais de 1953.
A. DIAS DE DEUS
 
 
Fonte: Antologia da BD Portuguesa, nº 17
 

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