Os pedidos chegados à nossa caixa de correio para publicação das aventuras de Falcão Negro de 1946 foram tantos que não podemos de deixar de satisfazer os nossos amigos e, assim, elas acabaram de surgir no Páginas de BD através da digitalização do álbum nº 17 da Antologia da BD Portuguesa. Aproveitamos para vos deixar com este excelente artigo de A. Dias de Deus que acompanhou aquela publicação.
Ascensão e Queda de Falcão Negro
Publicada entre Abril e Agosto de 1946, acompanhando a voga
«western» que preenchia o repositório de «O Mosquito», a história aos
quadradinhos «Falcão Negro» surge-nos como a mais enigmática criação da dupla
E.T. Coelho-Raul Correia. A primeira vista, dá-nos a impressão duma aventura
composta por episódios despegados, com cavalgadas para aqui e acolá, acumulando
erros na cronologia e na apresentação dos atores, vindo atabalhoadamente a
público, entalada entre as epopeias marítimas «Os Náufragos do Barco Sem Nome»
e «O Caminho do Oriente».
Esta situação de «bastardia» agrava-se pela circunstância de
começar sem preâmbulo próximo, havendo ainda o esquecimento de colocar o
indicativo «FIM», ao terminar a novela. Quando acabamos de ler a 35ª e última
prancha, esbarramos com a palavra «continua», mas, no número seguinte, o que
vem é o começo de «O Caminho do Oriente».
A relativa fragilidade do argumento, onde praticamente não
se descobre intriga, a aparente monotonia das situações conflituosas,
repetitivas quase sempre, a marcada desconexão com as outras H.Q. de E.T.
Coelho que a precedem ou lhe sucedem, levar-nos-ia a considerar «Falcão Negro»
uma obra menor, produzida à míngua de recursos, para ocupar quanto baste um
espaço quanto sobre. Uma apreciação deste tipo, porém, seria injusta. Pior que
isso, seria errada.
Prodigiosa aventura onde tudo se move e nada se transforma,
tudo se repete e nada se define, orquestrada como um «cânone» em espelho, a
cada cena correspondendo outra simétrica, a cada final novo começo, em movimento
perpétuo — exemplo incomparável de mestria cinemática, esquivando
metodicamente, aos olhos do espectador desatento, o tema central e dominante da
narrativa: a crise de adolescência do Falcão Negro.
A história já vinha de trás: uma novela escrita por Raul
Correia em princípios de 1943, intitulada «Aventuras de Jim West». Era prosa
maciça, entremeada com capas flamejantes e ilustrações interiores soltas, por
Eduardo Teixeira Coelho. O estilo do desenhador, nessa altura, usava traço seco
e sombras compactas, desenvolvendo-se bem as carreiras de cavalos, longe ainda
de se apresentarem os corcéis fogosos em piruetas diabólicas, só inventados em
1945, provavelmente numa altura em que o artista estudava mais de perto a
anatomia e movimento do cavalo. Quer pelo argumento, quer pelas ilustrações, a
novela «Aventuras de Jim West» teve sucesso, a ponto de serem publicadas
separatas com construções de armar alusivas. Todavia, a história em si não é
muito brilhante, costurada um pouco ao género das aventuras dos folhetins de
Texas Jack, com todos a correr para aqui a salvar Louise, depois todos a correr
para ali a salvar Nath Pig, de seguida todos a correr para acolá a salvar Jim
West. Parecia um jogo dos 5 cantinhos, em que acabava por ficar sempre um de
fora. Havia, contudo, certo cuidado na individualização dos personagens, o que
lhes conferia calor humano. E, duma maneira geral, a novela melhorava à medida
que se aproximava do fim. O Falcão Negro já lá se encontrava, primeiro em
bolandas no ventre materno, depois, recém-nascido, nos braços de Louise.
Ser-lhe-ia dado o nome de Fred e deveria continuar as façanhas de Jim West.
Três anos mais tarde (cronologia do leitor), começa então, sob a forma de
quadradinhos, em 1946, «Falcão Negro — O Filho de Jim West». Estávamos em 1837
(cronologia do herói), portanto a história deslizara 14 anos, idade com que
Fred West se estrearia nos «media» como Actor principal. O Falcão Negro é-o de
nome e temperamento. Para fazer jus ao título, na primeira prancha abate uma
ave em pleno voo, com flecha tão certeira como a bicada do seu animal totémico.
Veste de negro, bem se pode dizer das plantas dos pés ao topo da cabeça, pois
os mocassins e fato justo são completados com um gorro alto, que faz o rapaz
presumir maior estatura do que a que realmente possui.
Veste de negro porque é o eterno órfão de mãe, prolongando o
luto muito para além da idade adulta. O princípio e o fim desta H.Q. acontecem
junto ao túmulo de Louise — a tutela matriarcal ressente-se no comportamento do
herói, debatendo-se permanentemente em luta íntima para se libertar da solidão
existencial, agravada pela surda animosidade contra o pai (viúvo culpado,
porque sobrevivente). A pretensa «busca do pai» não é mais do que a camuflagem
do desejo (simbólico) de verificar o aniquilamento do pai. Perante um cadáver
putrefacto, o Falcão Negro hesita em identificá-lo; quando o próprio Jim West
reaparece o filho não consegue reconhecê-lo. A superação da crise — a
reconciliação entre o princípio de prazer (eros) e o princípio de realidade
(ananquê) — só virá a efetivar-se diante da sepultura de Louise, em imagem
simétrica da cena inicial, só que, desta vez, o pai está presente ao lado do
filho.
Os quatro princípios elementares da Natureza enquadram a Acão:
o ar, onde as flechas voam, a terra, onde os corpos caem, e, principalmente, a
água e o fogo, que precipitam as mudanças de cenário. Pelo fogo são devastadas
as cabanas de madeira dos pioneiros, que os incêndios das paixões atiçam. No
rio, omnipresente até à orla do deserto, se esfriam os ímpetos combativos dos
contendores. Simetricamente, um banho lustral do jovem Fred precede o início
das hostilidades (forçando o falcão a fugir depenado), enquanto um
banho-barrela, desencardindo Nath Pig (porco), encerra o ciclo de batalhas.
Um mesmo índio, Raposa Cinzenta, vem anunciar ao público
espectador quando a guerra começa e quando acaba. As correspondências
estruturais estão finamente ajustadas numa peça teatral onde todos rodopiam à
volta do mesmo palco. Vejamos agora os figurantes. Há índios, brancos e
cavalos. E duas raparigas mais um frade. Os índios são bons ou maus, mas, os
que são bons, às vezes parecem maus, e os maus acabam por se converter em bons.
É tão difícil uma classificação ética como étnica. Até porque, ao meio da história,
os bons, os Chipewas, passam a ser lroqueses, por confusão (?), com a agravante
que os maus, os Crows, acabam por se revelar como também fazendo parte da
família dos Chipewas.
Alguns bandidos também podem ser brancos, fornecendo-nos
E.T. Coelho uma das figuras mais sebentamente repugnantes, num homicida de
cabelo rapado e riso alvar. Foi pena não ter sido aproveitado para outras
histórias, mas os autores decidiram que aqui ficasse pendurado pelo pescoço.
Além de personagens convencionais, como Jim West e Nath Pig,
há que contar com o misterioso frade franciscano, espécie de Frei Padinha,
enfiado num roteiro «western» antes da rota das descobertas. É difícil
interpretar a missão deste frade, além da função de se tornar urna vítima, numa
história em que há quase um cadáver por página. Talvez sirva de contraponto ao
desempenho burlesco do bufarinheiro, que, exoticamente, pretende conservar a
vida numa jornada onde os mortos se alinham uns atrás dos outros. Falemos agora
da insólita intervenção dos dois garotos irmãos e do velho, seu avô. Parece uma
história diferente, que, por acaso, veio entroncar nesta. A inesperada direção
e reviravolta que imprime à narrativa é mais do gosto de José Padinha do que de
Raul Correia. Fica por deduzir a quota-parte de participação do primeiro,
através das decisões semiautónomas de E.T. Coelho. No episódio dos dois miúdos
brigões, dois aspetos devem ser apontados: em primeiro lugar, o facto de
qualquer deles ser mais audacioso e violento que o próprio Falcão Negro,
acabando este por ter que assumir uma atitude censória paternalista; em segundo
lugar, ficamos perplexos quanto ao desfecho trágico — tendo a cabana sido
incendiada pelos índios Crows, o avô e os netos morreram ou conseguiram
escapar? Nunca mais ouviremos falar deles.
Nesta novela, as próprias omissões narrativas ganham foros
de crueldade. Quanto aos figurantes do género feminino, por duas vezes se fazem
representar. Pelo início da história, num «rancho» pertencente a um francês,
temos Marie Aimard, uma rapariguinha dois anos mais nova do que Fred, com quem
«de bom grado este se demoraria mais». É um esboço de idílio bucólico, sem
tempestades.
Mais acidentado é o encontro com a outra rapariga, dois anos
mais velha que o herói. Desta vez é uma magrizela alta, desengonçada, feiota,
cabelos cor-de-linho, tratando o rapaz com desdém e troça, a ponto de este
perder as estribeiras e atirar com ela abaixo do cavalo. Os dois exemplos de
relacionamento de Fred com o sexo oposto não podiam ser mais contrastantes.
Na galeria zoológica surgem ocasionalmente cães rosnando
junto ao prisioneiro, coiotes a uivar à distância e abutres que vêm
periodicamente debicar os cadáveres. Mas, as grandes vedetas são
indubitavelmente os cavalos. Desenhados numa altura em que o artista dominava
com naturalidade e fluência os jogos de movimentos das montadas, encontram-se
nesta história com uma densidade superior a qualquer outra. Desde 1944 que E.T.
Coelho estava continuamente a aperfeiçoar a representação dos cavalos. No
«Falcão Negro» atinge a perfeição. De futuro, poderemos ainda vê-los nas
histórias das mouras, na balada da conquista de Lisboa, em «O Mensageiro»;
porém, não alcançarão outra vez a liberdade plena de movimentos que desfrutam
nas cavalgadas de «Falcão Negro». Parados, a trote, a galope, cabriolando,
vistos de cima, de lado, ao nível do chão, precipitando-se em abismos, ou
cortando as vinhetas em desfiladas diagonais, constituem um motivo quase
permanente.
Deve também chamar-se a atenção para o cuidado com que o
artista trata os pormenores de vestuário e armamento usados pelos atores.
Lembremo-nos que estamos no início do século XIX e as armas de fogo carregam-se
pela boca — ainda não havia «colts». Primeiro dá-se um tiro e depois tem que se
resolver a questão à cacetada. E.T. Coelho não cai no disparate das fuzilarias
cerradas, e, se nunca vemos os personagens carregar as espingardas, a verdade é
que trazem sempre um polvorinho a tiracolo. A minúcia do desenhador na
guarnição das pistolas irá exercitar-se de forma quase maníaca nas derradeiras
histórias do Falcão Negro, onde as armas são trazidas, às vezes, para o
primeiro plano.
Chegou finalmente a altura de falarmos do herói. É moreno,
magro, espigadote, de rosto comprido e feições duras, com os cantos dos lábios
descaídos. Conclui-se facilmente que E.T. Coelho utilizou um modelo ao vivo. Se
dermos uma olhadela à H.Q. de Jayme Cortez que nessa mesma altura se publicava
também em «O Mosquito» — «Os 2 Amigos na Cidade dos Monstros Marinhos» —
descobriremos que um dos garotos (Fernando) é magro, alto e de rosto comprido,
enquanto o outro (António) é pequeno, de rosto redondo, cabelo liso e covinha
no queixo. Concluiremos ter havido um modelo que posou para «Falcão Negro» e
«Fernando», e outro modelo para as figuras de «António» e «Simão Infante».
Basta ir, ver e comparar. Já o dissemos atrás, a história do Falcão Negro é a
progressão da sua crise de adolescência, detetável nalguns episódios, como a
procura do pai, o relacionamento feminino e a camaradagem masculina. Há cenas
em que o simbolismo sádico-erótico está, presente de maneira explícita — o
galho de árvore funcionando como símbolo fálico, violentando-o, na sequência da
tortura. Depois deste acontecimento, o herói já não volta a ser o que era
antes. Faz lembrar a captura do coronel Lawrence em Deraa.
Considerando que «Falcão Negro» retrata o amadurecimento do
jovem Fred West, é óbvio que esta história só pode ser contada de uma maneira e
de uma só vez. Quando Raul Correia e Eduardo Teixeira Coelho decidiram
ressuscitar o herói, alguns anos mais tarde, em «Tempestade no Forte Benton»,
«As Vítimas do Sol» e «Terra Turbulenta», nenhuma relação havia já com o Falcão
Negro de 1946, pois, em vez dum adolescente inseguro, encontrávamos agora um
adulto, de reflexos automáticos e previsíveis, remetendo-se a aventura a um
acumular de peripécias gratuitas. E o mesmo se pode dizer da série com o mesmo
título, aparecida na revista espanhola «Chicos» (2.a série) em 1954,
parcialmente editada em Portugal, no «Cavaleiro Andante». Os garbosos cavalos,
as paisagens deslumbrantes, as lutas vigorosas, as perseguições desenfreadas
continuavam presentes. O desenhador mantinha elevada qualidade, mas as cenas
passaram a suceder-se por inércia, com qualquer tipo de argumento, ou até sem
nenhum.
PS: Fora de Portugal
e Espanha, «Falcão Negro» foi também publicado no Brasil, em «comic books» duma
editora de S. Paulo, nos finais de 1953.
A. DIAS DE DEUS
Fonte: Antologia da BD Portuguesa, nº 17
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