segunda-feira, 29 de abril de 2019

COL005.05 A versão do cínico

Na manhã do dia seguinte, anunciaram-lhe a visita de Teddy. A sua primeira reação foi a de o não receber, pois a história contada por Jayne tinha-lhe calado fundo; mas quando a criada já ia a sair, deteve-a:
—Espere. Diga-lhe que vou já.
Levantou-se da cama. A primeira coisa que fez, foi ver-se ao espelho. Assustou-se perante o sofrimento que o seu rosto revelava.
—Se me visse assim!... Oh, estou horrível!
E apressou-se a retocar a sua maquilhagem meticulosamente. O medo de que a achasse feia, era superior a tudo. Depois, vestindo um roupão, correu à saleta onde Teddy a aguardava. Deteve-se à porta, fitando-o, acusadora. Ele, como se não se apercebesse da dureza daquela expressão, disse sorrindo:
—Bom-dia. Achas bonita esta hora para te levantares? — não obteve resposta e continuou: —Uf! Que gesto! Parece que me queres fulminar! Reconheço que ontem à noite me demorei mais do que o costume. A culpa foi dos negócios. Nunca imaginei que me veria metido tão cedo numa empresa de tal envergadura. Surgiu sem o esperar e não pude desaproveitar. Quando cheguei ao saloon já tu tinhas partido. Senti-o. Julgava que não sairias.


Os «negócios» de que Egan falava circunscreviam-se à sua entrevista com o indesejável Benson Rudd e depois, com outros sequazes deste que poderiam vir a ser-lhe úteis nas suas pérfidas maquinações. A conversa e o whisky, fizeram com que o tempo se passasse depressa. A sua experiência tinha-o ensinado que o melhor para submeter as mulheres era alterar os carinhos com as desatenções. Ressentida, Doris contestou:
—Pensava que significava para ti mais do que qualquer negócio.
—Claro que sim. Limitei-me a adiar por umas horas o nosso encontro para que não me fugisse das mãos, um bom negócio. Sê compreensiva, rapariga. As operações financeiras não admitem demora. Ao menor descuido intromete-se um terceiro e deita tudo a perder. Hoje desforrar-nos-emos. Não te largarei um só momento.
Quis acariciá-la, mas ela repeliu-o.
— Não me toques I
—Preferes que me vá embora?
Perguntou-lho, desabridamente, dando a entender a sua resolução de o fazer. Doris tremeu ante a ideia de o perder, mas disfarçou e respondeu:
—Antes de chegar a esse extremo, necessito que me digas a verdade sobre o que se passou ontem à noite.
O sorriso do homem tornou-se frio. Desdenhoso, replicou:
Não te chega o que Jayne te contou?
—Como? Que estás a insinuar?
—Não irás negar-me que falaste com ela.
—Naturalmente que falámos!
— Então, pronto...
—Teddy!
Fitou-o, angustiada. Ele, adotando o ar duma pessoa que se encontra acima do bem e do mal, lançou-se ao golpe de audácia, que trazia planeado. Deixando cair lentamente as palavras, disse:
—Não foram só os negócios que me afastaram de ti. Quis observar a confiança que te inspiro, deixar-te sozinha e analisar a tua reação. Fiquei a saber. A primeira coisa que te ocorreu foi ter uma entrevista com a tua... «amiga».
Doris ficou desconcertada.
—Fiz mal?
—Oh, não! —continuou irónico. —Era o mais sensato e o mais doloroso também...
—Mas... não compreendes o estado em que ficou o meu espírito? Tu não vinhas e eu não podia dominar-me.
—Quando se ama deveras, quando se tem fé no ente amado, essas dúvidas não existem. Bem, não te censuro. Quase prefiro que tenhas tido essa conversa, sem que estivesses influída por mim. Agora, responde-me a isto que te pergunto: Acreditas em Jayne ou em mim? Diz-me antes que te dê qualquer explicação. Se for a primeira hipótese, ir-me-ei embora e tudo terminará entre nós; se a segunda, dir-te-ei a verdade.
A rapariga respondeu, torcendo as mãos:
—Quero acreditar em ti... Preciso de acreditar... tira-me deste martírio!
—Assim está melhor--o seu acento tornou-se acariciante. —O mínimo que posso pedir a uma mulher que vai ser minha, é que não se deixe levar pelas aparências. Agora escuta. Conheci Jayne há tempos...
Doris interrompeu-o, novamente exaltada:
— Conhecia-la? E por que é que ao se encontrarem...?
—Deixa-me falar. Em princípio não a reconheci. Além disso estava tão longe da minha imaginação...! Depois não lhe concedi importância pois era perder tempo. Tu e eu, tínhamos coisas muito mais importantes para dizermos, um ao outro.
—Bem, então, que houve entre vocês?
—Absolutamente nada. Era uma dessas raparigas que pululam nos cabarets. Era nova, atraente e divertimo-nos. Em má hora o fiz. Tomou a sério umas palavras ditas sem outra intenção que não fosse a de passar um bom bocado e, a partir de então, tornou-se um pesadelo para mim. Tinha coisas muito importantes para fazer e não podia perder tempo com ela. Disse-lho com dureza e deixou-me em paz. Não nos voltámos a ver. Ontem à noite tive a pouca sorte de acudir aos seus gritos; o médico estava a maltratá-la e intervim sem imaginar que a coisa teria tais consequências. E acabou-se a história. Já vês que é simples.
Doris soltou um suspiro de alívio. O amor não raciocina. Qualquer coisa lhe serve. Para aquela rapariga, Teddy representava tudo. Qualificou Jayne de perversa, ingrata, maldita e ele, de homem superior, nobre, generoso e caluniado.
Houve lágrimas, mútuos protestos de carinho, sorrisos felizes, beijos... Meia hora depois saíam de braço dado.
Deliberadamente, sem lhe ter exposto as suas intenções, a jovem artista fez com que passassem perto do «Paraíso» e exclamou, de repente, como se se lembrasse nessa altura:
— Entremos. Quero falar com o empresário.
—Para quê?
—Vais já saber.
Nicholas recebeu-os, com a costumada amabilidade, com que tratava as primeiras figuras.
— Venho apresentar-lhe um pequeno problema, Sr. Joy—anunciou Doris.
— Oh, não! — troçou o empresário. —Mais problemas, não!
— Este é de fácil solução.
—Bem... se não há outro remédio...
—Entre mim e Jayne Bruce surgiu um problema delicado e não quero trabalhar onde ela actue. Agradecer-lhe-ei que estude a maneira de rescindir o seu contrato.
Nicholas levou as mãos à cabeça.
— Por favor! Chama a isso um pequeno problema?
—Claro que sim. Surgem amiúde situações análogas. Tudo se resumirá em indemnizá-la.
—Mas... compreenda... O público gostou dessa mulher... O seu trabalho agrada...
—Mais do que o meu?
—Oh, não!
— Então, escolha: ou ela ou eu!
Teddy interveio:
— Sê transigente, querida...
—Perdoa, mas não posso. A incompatibilidade entre Jayne e eu, atingiu o máximo.
Nicholas apresentou vários argumentos, mas Doris manteve-se firme.
— Falarei com o Sr. Kerr — disse Nicholas.
—Julguei que tivesse autoridade suficiente...
—Mas não até ao ponto de contrariar uma decisão dele. Lembre-se que a contratou pessoalmente.
— Pois diga-lhe a minha decisão. Fico à espera.
Nicholas saiu.
—Se soubesse que pensavas fazer isto, teria procurado dissuadir-te— murmurou Teddy.
—Por quê? Desejas que Jayne continue aqui?
—Como desejá-lo? Essa mulher, é-me absolutamente indiferente.
—Pois a mim, não me é. Não só porque te caluniou, como porque continua a gostar de ti.
— Aí vêm os ciúmes!
—Põe-te no meu lugar. Gostarias de me ver a trabalhar, com um homem apaixonado por mim?
—Mulher...
—Não, não é verdade? Pois o caso é idêntico. Não suporto a ideia... de que vocês se possam encontrar.
Teddy estava satisfeitíssimo. À medida que verificava o aumento de paixão daquela criatura, mais realizáveis via os seus projetos. Se se conseguisse que Jayne fosse despedida, quanto menos escolhos, melhor! Não permitiria essa que Doris saísse do
«Paraíso», cujo palco era a melhor «montra» da cidade e a ele convinha-lhe que continuassem a admirá-la.
Começou a argumentar em tal sentido, modificando pouco a pouco, a atitude da jovem. Nicholas reapareceu:
—Não se importa de ir ao escritório do Sr. Kerr?
— Claro que não! Vamos, Teddy.
Sidney, fazendo de conta que não via Egan, disse, mal chegaram:
—Menina Doris: quis ter a gentileza de a receber em vez de mandar a minha resposta, por intermédio do Sr. Joy. A sua petição é injusta. A mim, como empresário, não me interessam os problemas particulares dos que atuam neste saloon e pretender que haja causa comum consigo, pelas desavenças que possa ter tido com a menina Jayne Bruce, é inadmissível. Além disso, nunca tolerei, nem tolerarei imposições.
Significa isso, que a prefere...?
—Não se trata de preferências, mas sim de impedir que as coisas saiam dos eixos. Tenho um contrato firmado com essa artista e respeitá-lo-ei.
—Então eu...
—Você assinou outro e tem de o cumprir, sem me obrigar a exigi-lo. Pense... e aborrece-me ter de falar nestes termos, que se não cumprir o contrato, terei de pedir uma indemnização por perdas e danos. Há mais ainda. Nós, os principais empresários da Califórnia, mantemos uma estreita união no que diz respeito a assuntos desta natureza. Tenho, pois, o dever de a avisar de que, no caso de manter a sua decisão, ser-lhe-á muito difícil encontrar quem a contrate.
A fúria de Doris era enorme. Nunca lhe tinham falado assim. Se estivesse sozinha teria deitado tudo a perder; mas Teddy estava presente e evitou o conflito.
—Dê-me licença, Sr. Kerr, para intervir. A menina Doris, minha noiva, tem um temperamento, às vezes, irrefletido. Acabo de lhe dizer, lá fora, que ignorava o motivo da sua visita. Da mesma maneira, que a tentaria dissuadir antes, faço-o agora...
—Mas... Teddy... — protestou ela, sem firmeza.
— O Sr. Kerr tem razão. Que seria de um empresário, se tivesse de se submeter às exigências dos artistas? Reconheço que te sobram razões para te manteres a distância dessa companheira de trabalho, mas não tens nenhuma para causares prejuízos à empresa. Afasta-te dessa pessoa e cumpre a tua obrigação.
Se Sidney não tivesse conhecimento do que se passara com aquele indivíduo no camarim, tê-lo-ia em bom conceito; mas sabia o suficiente para o desprezar e nem sequer lhe concedeu a honra de concordar com ele. Em compensação, Doris prestou-lhe homenagem.
—Tens o dom de persuadir até as pessoas mais teimosas. Mantenho as minhas reservas, mas não quero desgostar-te, nem que o Sr. Kerr me chame intransigente. Continuarei no «Paraíso» até expirar o meu contrato.
A entrevista acabou. Os noivos retiraram-se e Sidney abriu a janela para purificar a atmosfera que Teddy Egan tinha respirado.

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