segunda-feira, 8 de abril de 2019

BUF004.03 O perigo de se chamar Milo

Barry Meeker rezou uma breve oração sobre a sepultura do seu amigo perseguidor, antes de se afastar dali para iniciar a sua viagem até ao lugar onde aquele nascera.
Numa das algibeiras transportava Barry os papéis do morto. Milo Kerigan era natural da povoação de «Três Árvores», situada a grande distância de Loonkey, e Barry pensou que dificilmente encontraria ali alguém que conhecesse a sua verdadeira personalidade.
— Vai ser uma situação do demónio — murmurou.
Pela centésima vez releu a carta que encontrara na carteira de Kerigan, embora já soubesse o seu conteúdo de memória. Estava datado do rancho «Doble Z», perto de «Três Árvores», e rezava o seguinte:
«Milo querido: Recordas-te da pequena Evelyn?... Eu não te pude esquecer em tantos anos e sempre suspirei pela tua presença. Foste o herói da minha meninice e continuas sendo o da minha juventude. Ninguém sabe que te escrevo, mas... tinha de o fazer. Preciso de ti, Milo. Estão acontecendo coisas muito estranhas aqui, no rancho, e eu estaria mais tranquila, se o meu herói estivesse comigo. Vem. Vem depressa. Esperam-te muitos, muitos beijos da tua,
Evelyn»
— Muitos beijos... Diabo! — murmurou para consigo.


Barry pensou como era natural que a contemplação do amplo vale que se estendia após a ladeira que acabava de descer fizesse ferver o seu sangue com um fogo para ele desconhecido até então.
Uma ligeira neblina ocultava à sua vista a parte inferior do terreno; mas, a julgar pela erva verdejante que cobria a parte alta em que Barry se encontrava, o vale devia ser muito fértil. Ali, ou muito perto dali, encontrava-se o termo da sua longa viagem.
Pensou que não se sentiria mais emocionado se realmente tivesse tido ali o seu berço. Não nascera naquela região, mas o destino podia esperá-lo ali.
Iniciou a descida, deixando que o cavalo escolhesse o caminho, que não deixava de oferecer as suas dificuldades. Estava atravessando o último trecho que o deixaria no vale, quando uma súbita detonação o fez deter subitamente. Procurou com a vista um local onde se pudesse abrigar... Não o havia. O caminho não lhe oferecia saída pelos flancos. Tinha de optar por voltar a garupa ou seguir adiante. Barry não era dos que retrocedem, de modo que tomou a carabina, para disparar rapidamente em caso necessário, e continuou o caminho em direção ao vale.
Durante a sua descida ouviu outro tiro e, logo a seguir, uma descarga cerrada de quatro ou cinco armas. Os tiros não lhe eram dirigidos. No entanto, redobrou de precauções, pois o combate feria-se muito próximo, notando que, ao terminar o caminho, desembocaria bruscamente em pleno campo de batalha.
Apeou-se e encaminhou-se para o alto de uma rocha que formava uma saliente sobre o vale. Dali viu a cena que se desenrolava aos seus pés. Quatro homens armados de carabinas acossavam outro que se havia entrincheirado ao abrigo de um penhasco.
Estava ferido, mas ainda se podia defender. Barry viu-o apontar para o mais próximo dos atacantes; mas para isso teve de se descobrir um pouco, e os outros aproveitaram o momento, descarregando as suas armas contra ele. A carabina voou das mãos do ferido e o homem caiu de bruços sobre a rocha que lhe havia servido de parapeito. Os seus inimigos, dando gritos de alegria, aproximavam-se rapidamente, com o propósito evidente de o liquidarem. Barry duvidava. O seu impulso era intervir em favor do homem que caíra, mas... podia tratar-se de um bandido perseguido por pessoas honradas. Ouviu-o, então, gritar:
«Canalhas!... Assassinos!», e aquilo decidiu-o.
Apontou e disparou ferindo no ombro o indivíduo que parecia dirigir o ataque. Este caiu para trás, como se fosse bruscamente derrubado por um soco. Os outros três estacaram repentinamente. Estava bem situado para dominar a situação. Os agressores deveriam obedecer-lhe se fossem homens prudentes. Viu como o localizavam. O indivíduo que Barry acabava de derrubar ergueu-se sobre um cotovelo com um terrível gesto de raiva apontando-o aos seus companheiros.
— A ele! — ouviu-o ordenar.
A sua voz parecia o ladrido de um cão atacado de raiva. Os outros lançaram as carabinas à cara. Barry adiantou-se aos seus tiros, e a segunda bala da sua arma fincou-se no cotovelo de outro homem. Aquilo devia ser terrivelmente doloroso, pois o indivíduo deixou-se cair sobre o solo e nele se revolveu como um possesso, entre blasfêmias espantosas e alaridos próprios de um ataque de loucura. As balas dirigidas contra ele silvaram aos seus ouvidos, mas não o lograram alcançar.
O jovem disparou uma e outra vez, sem ânimo de causar novos males, mas fazendo com que os projéteis levantassem a terra junto dos pés dos seus adversários. Estes saltaram como bailarinos de uma dança grotesca. Estavam desmoralizados por aquele espetáculo impressionante do companheiro ferido, que continuava a retorcer-se e ululando a sua dor insuportável.
— Atrás! — Tornou a gritar Barry —. Ajudem os vossos companheiros e saiam daqui... Depressa!
O próprio chefe reconheceu que haviam sido derrotados e deu uma ordem que os seus homens se apressaram a cumprir. Aquele lugar não era muito saudável para eles.
A partida dos quatro indivíduos constituiu um espetáculo de lamentável derrota. Um dos que permaneciam ilesos procurava suster o do cotovelo destroçado, passando-lhe o ombro pelo outro braço. O ferido deixava escapar surdos gemidos, com os dentes raivosamente apertados para aguentar o sofrimento.
O chefe caminhava com dificuldade, ajudado pelo quarto indivíduo, homenzarrão truculento com uma expressão de inaudita barbárie impressa no semblante. Este último deteve-se um momento para levantar o braço em gesto de ameaça.
— Hás-de te recordar disto, forasteiro! —gritou —. Deixa que o «Grand Fox» o saiba!
— Silêncio, idiota! — ordenou o que atuava como chefe —. Não se ladra quando não se pode morder nem se dão nomes quando ninguém os pede!
Barry deixou-os seguir, embora agora pensasse que teria sido mais acertado tapar a boca aos quatro. «Grand Fox»!... O nome não lhe era desconhecido. Correspondia ao pistoleiro mais famoso que há dez anos existia no Oeste, terra de famosos assassinos. O mais famoso... o mais astuto... e o mais implacável!
Barry Mee'ker dedicou a sua atenção ao indivíduo que determinara a sua intervenção na contenda. Havia caído da rocha e olhava o seu defensor com os olhos muito abertos. A sua expressão era de assombro e também de reprovação. Barry compreendeu que havia sido testemunha de tudo o que ocorrera, embora não se achasse em situação de poder intervir.
— Cometeu um terrível erro — disse cheio de amargura —. Terá de fugir desta região a toda a velocidade do seu cavalo, se é que aspira a continuar vivendo. De contrário, matam-no como me mataram a mim... e com maior motivo. De todos os modos, agradeço a sua intervenção, embora tenha sido para mim um pouco tarde.
Era certo. Barry não necessitou deter-se muito no exame das feridas para compreender que o pobre diabo terminaria ali, a sua existência. Era jovem, da mesma idade talvez que o seu defensor.
— Porque o atacaram esses homens? — quis saber.
— Acredita-me, se lhe disser que não sei?... Não, não o sei, realmente. Nem encontra um motivo? Parece... parece que o meu nome não lhes agradou.
— O seu nome?
— Sim. Desde que entrei na povoação de «Três Árvores» começaram a acontecer coisas estranhas com o meu nome. Nunca me aproximara daqui ninguém podia conhecer-me e, no entanto, mal cheguei, um indivíduo abraçou-me celebrando o encontro e chamando-me pelo meu nome. Depois, um homenzinho vestido de negro deu-me um encontrão...
— COMO?
— Pisou-me, deliberadamente, estou certo. Fingiu embater comigo... e quis depois que lhe pedisse desculpas.
— Que fez você?
— Pedi-lhas. Pedi-lhe mil perdões... pela minha estupidez em me deixar pisar
A voz do ferido continuava cheia de amargura.
— E depois?
— Depois agarrei um cavalo na primeira ocasião e saí fugindo da povoação. Que podia, eu fazer?... Aquele homenzinho!... Maldito seja! Levo-lhe meio metro de estatura, mas... não podia medir-me com ele. Não sou um pistoleiro.
— E ele era-o, não é verdade? — perguntou.
— Aquele homem era...
Barry havia compreendido.
— «Grand Fox». Ainda pergunto o que poderia esse homem ter contra mim. Conhecia o seu nome e a sua fama, como todo o mundo, mas os nossos caminhos nunca se haviam cruzado. Humilhei-me ante ele, concedi-lhe essa satisfação. Porque havia, então, de me perseguir... até acabar comigo?
— Então foi isso.... Perseguiu-o sem que entre vocês houvesse alguma coisa.
— Ele não. É demasiado importante para correr atrás de um homem que se mostra tão cobarde... Mas mandou os seus amigos atrás de mim. Você viu-o.
Barry sentia uma grande compaixão. Começava, também, a forjar uma teoria que explicava a infelicidade daquele pobre jovem. Quase sentia remorsos, embora nenhuma culpa lhe coubesse do sucedido.
— Sim, vi — disse gravemente —. E posso dizer que você não é um cobarde. Demonstrou a sua coragem defendendo-se de quatro foragidos e portou-se bastante bem.
O ferido sorriu agradecido. Respirava já com dificuldade e Barry apressou a pergunta que já tinha nos seus lábios. Uma pergunta que quase lhe dava medo.
— Disse que a culpa de tudo se baseava, talvez, no seu nome. Qual é o seu nome, amigo? Quer dizer-me? Milo. Milo Catesby.
Milo. Era o que Barry havia pressentido. Aquele jovem entrara na povoação quando na mesma se esperava outro jovem da mesma idade, chamado Milo também. E o que acontecera era uma clara demonstração das intenções que animavam aqueles bandidos acerca do irmão de Evelyn Kerigan. E ele, Barry Meeker, devia apresentar-se assumindo aquela identidade!... Já podia ir fazendo ideia do que lhe cairia em cima quando «Grand Fox» e os seus homens se apercebessem do erro cometido.
— Pouca sorte a sua em se chamar assim! —murmurou —. Os seus pais, não acertaram ao batizá-lo com esse nome. Souberam na poVoação qual era o seu apelido?
— Não sei. Creio que não. Já lhe disse que... mal acabava de chegar um indivíduo se aproximou de mim parecendo conhecer-me. Disse-me: «Milo! És tu!». Eu disse que sim, embora não compreendesse como ele o sabia. E, seguidamente, começaram a acontecer coisas... Meu Deus... falta-me a respiração...
Barry contemplava-o com piedade.
— Só posso dizer que lamento o engano. Não era você o Milo a quem eles esperavam!
O horror e o pasmo incendiaram momentaneamente os olhos do ferido, já velados pelas sombras da agonia.
— Quer dizer-me que morro em lugar de outro?... Não era eu... não era eu... o que devia morrer?
— Assim é.
— Não deviam... não deviam suceder coisas assim!... É.… é um drama ridículo!
— Má sorte, amigo.
— Quem era... quem era... o outro?
— Milo Kerigan. E, se me pergunta quem usa esse nome, devo confessar... que sou eu.
— Você?
O rancor tornou-se ostensivo no moribundo, mas não durou muito aquele sentimento, logo substituído por expressão de uma imensa tristeza.
— Sim — admitiu Barry —. Sou eu quem devia estar aí caída ao pé da rocha. Creia que as coisas não sucederam conforme os meus desejos.
— Você... portou-se bem para comigo. E agora, irão contra si. Diga-me... diga-me que não vencerão! Quero que me prometa... que saberá defender-se.
— E prometo vingá-lo, se o puder fazer. Averiguarei quem foi o promotor deste crime.
— Obrigado. Agora já... estou mais tranquilo... mais tranquilo...
— Sim. Mais tranquilo.
E Barry fechou-lhe lentamente as pálpebras. O desgraçado Milo Catesby acabava de morrer.

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