segunda-feira, 15 de abril de 2019

BUF004.11 A defesa

— Não é verdade! Não é verdade!
— Isso é negar-se a evidência. Tu eras uma garotinha quando Milo abandonou o rancho. Florence, pelo contrário, era uma mulher. Estava em condições de o recordar perfeitamente. Pôde notar a impostura e soube imediatamente que esse homem não era teu irmão.
—Porque não mo disse?
— Disse-me a mim e julgámos conveniente calar-nos durante algum tempo. Seguir-lhe o jogo até averiguar o que ele tentava.
Evelyn moveu a cabeça teimosamente.
— Não posso crê-lo! Não posso! Contra essas razões, tenho eu a minha razão para saber que é meu irmão. Tem de ser!... Não pode ser de outra maneira!
Tex Glendin fingiu um gesto de desdenhosa comiseração, mas estava iracundo e a ponto de perder a paciência.
— A tua razão! — disse, irónico. — E que razão podes tu ter?
— Que lhe quero! — respondeu ela com apaixonada veemência. — Que lhe quis desde que o vi diante dos meus olhos!... Tudo me estimula, me arrasta para ele! E isso não podia acontecer se ele não fosse meu irmão.
— Estás louca!... Sabes que assassinaram Florence.
— Ele tem uma explicação para isso. Diz que o atacaram.
— De algum modo tem de se defender! Sabe que está perdido, que o enforcarão, a não ser que prevaleça a sua versão do sucesso. É réu de um crime que aqui não se perdoa: a morte de uma mulher.
— Ele não o sabia!
— Também acreditas nessa história da mascarilha? Florence disfarçada como um bandido? Repito que estás louca!
— Não, não o estou! Agora sei que não estou! Antes, sim, julguei-o muitas vezes. Antes, quando se repetiam aqueles atentados que eu não conseguia explicar! Queria convencer-me a mim mesma de que eram acidentes; mas não eram, não eram!
O marido lançou-lhe um olhar terrível.


— Evelyn, não brinques com a minha paciência! Ouves-me? Proíbo-te que penses isso! Ninguém atentou contra a tua vida!
Ela riu estridentemente.
— Ninguém, ninguém tentou! Mas, eu estive várias vezes prestes a morrer!
— Basta! Não te metas nisto! Vamos fazer justiça, e não deixaremos que os teus desvarios se oponham a isso. Já o sabes!
«Mustache» estava no seu costumado observatório quando Evelyn conseguiu, finalmente, encontrá-lo. Teve para isso de dar um grande rodeio com o cavalo, furtando-se à vista de Don Crater e dos seus homens.
— «Mustache»! Venho à tua procura! Procurei-te ontem à noite e não te consegui encontrar. Onde estavas?
— Estivemos de ronda por aí, eu e outros amigos — disse o velho com ar de mistério.
Evelyn notou as reticências que havia nas suas palavras.
— Que aconteceu?
— Aconteceu que não aconteceu nada. Eis a questão. Todos os sinais indicavam que ontem à noite apareceriam novamente os ladrões de gado que operam na região e, no entanto, estiveram quietos como mortos. Alguma coisa houve que os fez mudar de planos. O velho Dorcas está furioso, e os outros não lhe ficam atrás.
— Porquê? Que supõem?
«Mustache» piscou os seus olhos perspicazes.
— Verás. O velho Dorcas confiou nesse rapaz e quis que nos ajudasse.
— Quem? Milo?
— Esse rapaz que se apresentou fazendo-se passar por Milo.
— Que dizes? Tu também suspeitas... pensas que não é Milo?
— Eu não suspeito. Eu sei. Sei que não é. Falou comigo e convenceu-me de que seria boa ideia fazer-se passar por teu irmão. E resultou que a ideia não era tão boa como pensávamos.
Evelyn estava aturdida e contemplava «Mustache» com olhos atónitos.
— Não... não o entendo. Não é Milo?
— Não é. Desgraçadamente.
— Mas então, porquê... porque me senti atraída para ele desta maneira? Não... não compreendo os meus sentimentos. Era... para mim diferente dos restantes homens. Único e aparte!
— Como um deus. Sim, isso acontece às vezes — disse «Mustache». —É como o aço e o ímã. O ímã atrai, e o aço deixa-se atrair. Um mistério! Mas o homem-ímã, nesse caso, nunca é o irmão. É um homem desconhecido. E isso faz com que a coisa resulte ainda mais maravilhosa.
Evelyn protestou, horrorizada.
— «Mustache»! Que estás dizendo? És... és um perverso!
O velho assentiu.
— Sim, devo ser muito perverso. Seguramente. Os velhos têm alguma coisa de diabos. Bem, vamos ao que importa: o velho Dorcas crê que o rapaz traiu a confiança que nele depositávamos. Que estava de acordo com os bandidos.
— Mas, e tu? E tu? Que pensas?
— Calma! Os meus bigodes apontam em distinta direção. O céu saberá porquê, mas continuo crendo nesse rapaz.
— Eu... eu também tenho fé. Temos de falar com ele! Por isso te vim buscar. Quero que me acompanhes à povoação. Vamos. Diremos ao xerife que queremos ver o cadáver de Florence. E não mentiremos: Creio que convém deitar-lhe uma olhadela. Depois, pediremos para falar com o preso. O xerife é boa pessoa: um amigo. Não se poderá negar.
***
O depósito de cadáveres estava anexo à prisão, fora da povoação. Imber acompanhou os visitantes.
— Aqui está — disse, levantando o lençol que cobria o cadáver —. Toda a povoação desfilou ontem por aqui.
O cadáver de Florence estava exposto à vista com as mesmas roupas que ela envergava ao ser morta.
— Vês — perguntou «Mustache» a Evelyn — Lembra-te alguma coisa?
— Creio... creio que sim. Nunca, até agora, havia visto Florence com esse trajo. São roupas desconhecidas para mim. Tu também notaste isso?
— Sim.
— Parece... parece um disfarce.
Imber acusou a sua surpresa ao ouvir estas palavras.
— Que... querem dizer com isso? — perguntou, agitado.
— Pois... isso mesmo, já o ouviste — respondeu «Mustache» —. Que estas roupas parecem feitas para dissimular a personalidade de Florence.
— Mas... mas... não consigo compreendê-lo.
— No entanto, está bastante claro. Quer dizer que, se era um disfarce, nada tem de estranho que o completasse com uma máscara para tapar a cara — disse «Mustache» firmemente.
— Meu Deus! — disse Imber —. Isso seria dar razão a esse moço!
— Porque te admiras, Imber?... Quando existem duas versões diferentes de um acontecimento, não convém olhar as coisas de um só ângulo, e parece-me que isso é o que todos têm feito. Pois bem, deves começar agora a olhá-las sob um novo ângulo.
— Meu Deus! — voltou a exclamar o xerife.
A sacudidela experimentada nas suas ideias era demasiado grande.
— Uma advertência, Imber! — disse «Mustache» —. Convém que isto fique entre nós três. Não deixes escapar uma só palavra.
— Sim... sim. De acordo.
— Agora queremos ver esse jovem. Ouviremos o que tenha a dizer-nos. Pode ser?
— Estou com vocês desde este momento —disse —. Se quiserem ter-me ao par do que forem averiguando, prometo-lhes que os ajudarei. Farrei qualquer coisa para que «Três Árvores» se veja livre de ladrões e assassinos. Qualquer coisa. Bem o sabem.
* * *
— E era necessário enganar-me a mim? — perguntou Evelyn —. Foi uma farsa muito cruel. Os meus sentimentos foram enganados.
Pretendia manter-se firme na sua severidade, mas o certo era que se sentia mais perto da indulgência do que ela própria haveria querido. Barry formulou mil confusas palavras de desculpa.
— Foi ideia de Milo, e eu... não soube negar-me. Não poderia... Nunca tive uma irmã... e seduzia-me o pensamento de ter perto de mim um carinho tão doce.
— Um carinho que não lhe pertencia.
— Não. Não me pertencia. Foi um roubo. Roubei carinho... da mesma forma que um esfomeado rouba um pedaço de pão. Minha irmã, Evelyn!... Foi a experiência mais maravilhosa da minha vida. Oxalá a mentira pudesse ser verdade!
«Mustache» tossiu. Já estavam ao par da verdadeira história. Barry havia-lhes contado todos os sucessos. E eles acreditaram-no.
— Bem, basta disso — disse o ancião —. Agora o que interessa é desfazer o novelo, e desmascarar os culpados. Contaste-nos tudo. Tudo, menos uma coisa. Não nos disseste quem subornou Tommy para se inteirar do conteúdo da carta. Essa pessoa, quem quer que seja, é o principal culpado. Ela é que preparou a armadilha para caçar Milo tão depressa aqui chegasse. Quem é?
— Prefiro não o dizer. Talvez o rapaz... me mentisse.
Evelyn empalideceu terrivelmente. Algo no seu coração se liquefez, como um pedaço de gelo se funde.
— Não me interessa sabê-lo — murmurou —. Eu sei de quem se trata. Soube-o sempre sem o querer confessar a mim própria. E agora... não penso voltar ao rancho enquanto isto tudo não estiver esclarecido.
— O primeiro que há a fazer — propôs Barry —é velar pela vida de Tommy. Ele é testemunha de tudo. Sabe como morreu Florence. E Don Crater sabe que o rapaz está inteirado. Farão qualquer coisa para evitar que fale.
— Sim.
— Quanto ao resto... já conhecem o meu projeto. Esta noite, se me ajudarem, pô-lo-ei em execução. E tudo sairá bem.
— Mas se fracassar... — suspirou Evelyn — todo o mundo em «Três Árvores» o aponta como culpado. Tem os dois bandos contra si. Don Crater... meu marido... — já o nomeei — porque assim lhes convém. E os rancheiros porque julgam que você traiu a sua confiança. Se fracassar enforcam-no!
Barry sorriu:
—Não o farão. Vocês protejam a vida de Tommy. Do resto me encarrego eu. Agora, vão preparar tudo —. Estendeu a mão ao velho «Mustache» — Obrigado pela confiança que depositou em mim.
— Ora! Sou um velho! E se os anos não nos servem para calibrar as pessoas!
— E você, Evelyn... irmãzinha!... Quer perdoar-me?
— Como não o hei-de perdoar? Arriscou a sua vida por mim sem me conhecer! — A mão dela estendeu-se para ele —. Obrigado, amigo.
— O meu nome é Barry. Barry Meeker.
— Obrigado, Barry.
Olhou-o.
Olhou-o docemente.
Ele estremeceu de alegria, e voltou-se para o velho «Mustache» querendo comunicar-lhe o seu sentimento.
— Não é maravilhoso? Olhou-me... olhou-me outra vez como a um irmão! — exclamou.
O velho «Mustache» saiu do calabouço, acompanhado de Evelyn.
— Diz que o olhaste como a um irmão! —murmurou o velho ao ouvido dela.
— Assim é —protestou ela, ofendida.
O velho moveu a cabeça.
— Que tontos são os jovens! — ponderou num sussurro.
A repartição dos Correios, encontrava-se na praça, mas o pai de Tommy vivia, com o seu filho, numa ruazinha da povoação, envolta aquelas horas nas sombras da noite. Rara vez transitava por ela alguma pessoa. Alguém, no entanto, se havia colocado numa esquina, ocultando-se num portal.
Decorreram mais de quarenta minutos sem que a pessoa em questão se movesse daquele lugar. Gostaria de ter entretido a espera fumando, mas não se atrevera; o lume do cigarro poderia delatar a sua presença. Finalmente ouviram-se passos cuidadosos, e um par de vultos deslizou, entrando na ruela. Era tão densa a obscuridade, que nela se fundiram as suas silhuetas por completo.
O vigilante deixou-os passar ante ele. Ouviu como batiam a uma porta: a da casa de Tommy. Primeiro, duas pancadas, depois uma, seguidamente mais três. O homem, então, afastou-se do umbral e foi-se aproximando cautelosamente dos outros dois. Avançava pegado à parede onde as sombras se acentuavam. Ouviu a porta que se abria e apressou os passos. Da casa saiu um vulto delgado e de pouca altura.
— Tex Glendin? — murmurou.
— Sim. Mas, cala-te! Não é preciso dizer nomes. És tu, rapaz?
— Quem, senão eu?
— Trago-te o dinheiro. O teu pai está aí dentro?
— Sim.
— Afastemo-nos um pouco, então. Vem comigo.
— Para quê?... Dê-me o dinheiro e em paz.
— Tens de dizer-me o conteúdo da carta de hoje. Vem. Não quero que o teu pai nos oiça.
O jovem hesitou, mas finalmente decidiu-se, deixando-se levar pelo rancheiro do «Doble Z».
— Que faz aquele? — perguntou, subitamente.
Os dois falavam em tom sussurrante.
— Quem?
— Aquele que vinha consigo. Entrou na casa.
— Não te preocupes. Espera-nos à porta. Não quero que escute o que tens a dizer-me. Haviam chegado ao centro da ruela.
Glendin colocou umas notas na mão do seu companheiro.
— Toma. Agora dize-me o texto da carta.
— Ia dirigida a um tal Barry Meeker, em Loonkey.
— Quem é?
— Não pude sabê-lo. E o texto...
— Que dizia... Fala!
— Rezava assim: «Querido Barry: Quero falar-te de Tex. Tu tinhas razão. É o filho bastardo de uma loba. Quando morrer, teremos de procurar a sepultura de um coiote, para o enterrarmos nela...» Tex Glendin estremeceu de fúria e agarrou o outro pelo pescoço.
— Gracejas? — rugiu.
— Sim.
Então notou Glendin algo estranho no pescoço que oprimia entre as suas mãos. Não era suave e fino, como devia ser o pescoço do jovem. Pelo contrário, estava enrugado e os seus tendões destacavam-se em relevo como cordas.
— Quem és? — estremeceu —. Não és o Tommy!
— Não. Tommy saiu da povoação. Supus que viriam selar-lhe a boca. Sabe demasiado.
— Quem és?
— Puxa-me pelo bigode e saberás. Por alguma coisa me chamam «Mustache».
A escuridão não permitiu ver como Tex Glendin mudava de cor, e nos seus olhos aparecia um brilho homicida.
— «Mustache», velho farsante! — rugiu — Terei de te matar!
As suas mãos, engarfadas no pescoço do velho, cerraram-se com a força que acesso de loucura empresta a um homem. O indivíduo que permanecera escutando ouviu a ameaça e correu para eles. Mas antes de chegar soou um tiro, e o marido de Evelyn, deixou afrouxar as suas mãos subitamente, desenvencilhando-se como um boneco a que falhassem as molas.
— «Mustache» — gritou o que chegava —. Mataste-o!
— Sim. Tive de o fazer.
— Não era necessário!
— Enganas-te, Imber. Era necessário. Era necessário.
— Maldito sejas! Porquê?
— Porque os jovens têm de viver de acordo com o 'seu destino. Tex Glendin era um canalha e um criminoso, mas o pior não é isso. Ë que, era um estorvo. Acredita-me, Imber, um verdadeiro estorvo!
Naquele momento saiu da casa o indivíduo que viera com Glendin, mas não saiu só. Dois homens sujeitavam-no fortemente pelos braços.
—Ë Don Crater? — perguntou o xerife.
— Sim, chefe. Tinha intenções, pelo visto, de assassinarem também o pai.
— Bandidos! — murmuro Imber.
O velho «Mustache» aproximou-se dele.
— Estás vendo? — disse —. Receavam que o rapaz tivesse dado à língua confiando no seu pai. Bem, agora poderá o teu prisioneiro descartar-se facilmente da morte de Florence e de Frank Dexer.
— Mas fica Milo Kerigan e a sua morte.
— Também demonstraremos que não é o culpado disso. E tu vais ajudar-nos, Imber! Deixaremos a povoação limpa como a calva de um banqueiro! Expulsaremos «Grand Fox» e, os seus bandidos! E nunca mais haverá malandrões neste território!
— Sempre ficarás tu — disse Imber, mal-humorado ainda pela morte de Tex Glendin.

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