sábado, 6 de abril de 2019

BUF004.01 A captura

Milo Kerigan havia chegado ao final daquela longa e acidentada perseguição. O fugitivo estava ali, ao alcance dos seus olhos e dos seus revólveres.
Contra sua vontade, teve de o olhar com certo respeito. Chamava-se Meeker, Barry Meeker, e era um esplêndido exemplar humano. Era corpulento e, no entanto, nem uma onça de peso supérfluo: uma máquina de lutar, feita de músculos e de fogo.
Agora, que estava dormindo, o seu rosto parecia suavizado e os seus traços eram corretos e agradáveis, desaparecidos os rasgos de dureza impostos por uma vida acidentada.
Era olhado como se olham os lutadores e, antes de nada, viam-se os seus olhos azuis gelados como dois diminutos lagos na época invernal. O único frio naquele ardente ser. Mas Barry Meeker tinha agora os olhos cerrados.
Kerigan aproximou-se, pisando suavemente, e deu-lhe uma pequena pancada com o pé.
A reação de Barry foi semelhante à de um explosivo ao fazer contacto com o fogo. Ergueu-se como uma lâmina de aço que se soltasse repentinamente, com a arma já na mão, disposta para entrar em ação. Kerigan, no entanto, encontrava-se prevenido e encostou-lhe a sua própria arma.
— Larga o revólver! — ordenou com voz firme.


O outro imobilizou-se numa crispação que em muito se parecia à de uma fera disposta ao ataque. Depois deixou que os seus músculos se relaxassem lentamente, deixando cair a arma no chão. Seguidamente voltou-se para o seu captor, situado nas suas costas, e olhou-o fixamente. Nem o medo nem a surpresa se refletiam nos seus olhos.
— Já? — disse o fugitivo.
O xerife Kerigan assentiu.
— Sim. Já. Finalmente.
Uma suave censura se manifestou no gesto de Barry Meeker.
— Demasiado cedo. Teria querido dormir um par de horas mais — disse, em tom de queixa.
Kerigan novamente o admirou. Era valente aquele demónio!... E tinha um especial sentido de humor que lhe agradava particularmente. Moveu a cabeça, sorrindo.
— Acredito — disse —. Eu gostaria de dormir todo o resto do mês. E ainda estamos a meio.
Barry Meeker riu silenciosamente, com um riso que estremecia o corpo.
— Ultimamente não tem tido muito tempo, hem? Quanto durou esta perseguição?
— Noventa e quatro dias.
— Não esteve mal. Você é um bom rafeiro.
— Obrigado, Meelker. Tu és um bom bandido.
O jovem prisioneiro franziu levemente a testa.
— Não me agrada essa palavra — disse muito sério.
— Não?... Não te consideras um bandido?
— Matei um homem, e isso é tudo. Tive as minhas razões.
— Acredito. Há razões para tudo.
— As minhas eram boas, você não á ignora. E, nos noventa e quatro dias de perseguição...
— O quê?
-- Tive várias ocasiões de acabar com você. Um bandido tê-lo-ia feito.
— Sim. É possível.
— Que vai fazer agora?
— Agora?... Teremos de regressar. Tu virás comigo, naturalmente.
— Para ser julgado?
Milo Kerigan encolheu os ombros numa certa atitude de desculpa.
— 'É a Lei... — disse.
— Mas você sabe muito bem quem são os homens que me vão julgar. Todos amigos do morto. Seus cúmplices.
O xerife engoliu em seco com certa dificuldade.
— Isso... devias tê-lo pensado antes — murmurou.
— Sim?... E tolerar as suas manobras? —A voz de Meeker estava agora caldeada pela veemência —. Olhe, Kerigan, você é um homem honesto, dos poucos que há na povoação, e sabe perfeitamente o que ali está ocorrendo. Sabe-o, não é verdade?
— Alguma coisa chegou até mim. Mas que queres que faça?... A Lei...
O jovem Barry murmurou uma maldição e olhou o xerife com ira. Kerigan redobrou de atenção, receando alguma violência desesperada. Os dois eram de idêntica estatura. As idades eram aproximadamente as mesmas. E até no físico possuíam muitos traços semelhantes.
— Maldita seja essa Lei que está sempre nos seus lábios, Kerigan!... Que faz?... Dorme com ela?... Alimenta-se com a sua letra?... Pois tenha cuidado não o faça rebentar algum dial... Essa Lei é um veneno!
— Calma, Barry, não te exaltes! Tu sabes que eu nada posso fazer.
— Você irrita-me mais do que eles próprios!... Eles tratam do seu negócio. Não lhes importa despojarem os colonos das terras que vêm trabalhando há gerações. Você bem o sabe!... Continuando assim, dentro de pouco tempo serão donos de tudo aquilo. Recolherão o que outros semearam. E porquê?... Por que há cem anos fez-se uma absurda concessão de terras que não chegou
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a tornar-se efetiva e que agora resgataram por quatro miseráveis centenas de dólares. Por isso, aquilo que sempre foi nosso, depressa deixará de o ser. Agora será só deles... E, ai daquele que se oponha, como eu quis fazer, em defesa dos nossos direitos! Feriram o meu pai! Não! Dispararam contra ele! Podia eu fazer outra coisa, senão disparar também quando vi o que acontecia?
— Levavam um mandato judicial, Barry —recordou Kerigan, suavemente —. A Lei amparava-os.
— A Lei! E é boa essa Lei que ampara tanto roubo?
— Eu não digo que seja boa.
— Mas é a Lei, não? E, em virtude dela, aqueles que nos despojam continuam sendo pessoas honradas, e eu... eu sou um bandido.
— Um «fora da Lei». Sinto-o, Barry. Não creias que me satisfaz o estado em que se encontram as coisas. Não, não me agrada. Vou-me embora da povoação. Este será o meu último serviço.
Barry continuou a olhá-lo, exasperado.
— O seu último serviço? Então...
— O quê?
O prisioneiro encolheu os ombros e serenou-se subitamente como quem chega a uma decisão.
— Nada. Compreendo. A minha pele será o último troféu a acrescentar à sua coleção. Realmente, foi tolice esperar...
— Que esperavas?
— Não sei. Quase desejei que você, por fim, me alcançasse. Por isso me encontrou dormindo tão tranquilamente, sabendo que estava na minha pista.
Kerigan mostrava-se incrédulo.
— Que história é essa? A tua reação ao despertar não foi a de um homem que desejava entregar-se.
— Sim, eu sei. O instinto de defesa é mais forte que nós próprios. Sobrepõe-se a todos os propósitos.
— Hum... Mas ainda não me disseste o que esperavas.
Barry encolheu novamente os ombros.
— Era tolice, já o sei. Esperava que uma vez satisfeito o seu amor próprio com a minha captura, o caçador de homens se sentisse humanizado pela primeira vez...
— Deixando-te escapar novamente, não é isso?...
— Já lhe disse que era uma tolice.
— Sim, era. Eu não posso fazer isso.
— Compreendo. Não importa. Convém apresentar os problemas nos seus verdadeiros termos.
O caçador de homens olhou-o com desconfiança e apontou mais diretamente a sua arma para o peito do prisioneiro.
— Que significam as tuas palavras, Barry?
— Que agora sei exatamente o que me espera... E também sei o que tenho a fazer!
— Cuidado, Barry! — avisou Kerigan com dureza —. Não tentes uma loucura... Não te
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movas! Põe as mãos nas costas e volta-te! Vou atar-te!... Já falámos bastante.
— Está bem. Já falámos o suficiente.
Barry começou lentamente a dar a volta.
— As mãos nas costas, disse eu!
Subitamente, o prisioneiro realizou um estranho movimento, deixando-se cair em terra como um saco. Milo Kerigan, surpreendido, apertou o gatilho e o seu revólver vomitou uma bala que, milagrosamente, não chegou a alcançar o prisioneiro, perdendo-se nas névoas do anoitecer. Ia a repetir o disparo, mas Barry continuava em terra, imóvel, sem intentar o menor gesto de defesa. Que era aquilo?... O jovem xerife sentia-se perplexo.
— Porque fizeste isso, Barry? — perguntou —. Podia ter-te morto e, de qualquer modo, não terias conseguido nada. Foi uma estupidez.
O jovem sorria, sem se mover.
— Uma estupidez? — perguntou —. Não o creia. Agora já me pode atar.
— Não te movas — ordenou firme —. Estou a apontar-te.
— Não penso mover-me.
O cavalo de Milo Kerigan continuava junto das rochas onde o seu dono o deixara quando descobrira o fugitivo. Relinchou suavemente ao aproximar-se o xerife, que não cessava de apontar a arma ao homem caído sobre o solo. Com a mão esquerda tirou um rolo de corda que pendia da sela e voltou rapidamente ao lugar onde se encontrava Barry Meeker. Este deixou docilmente que lhe amarrassem as mãos.
Enquanto durou a operação, o xerife refletia sobre o estranho comportamento do jovem. Julgou ter encontrado a solução.
— Era um sinal? — perguntou.
— O quê?
— O tiro. Provocaste-o deliberadamente. Era um sinal para os teus amigos. Esperas que te venham ajudar.
Os olhos de Barry brilharam numa estranha alegria. No entanto, moveu a cabeça, negando.
— Não tenho amigos — disse, e havia uma estranha matiz de ironia nas suas palavras.
—O meu único amigo... é você.
— Eu?
— Sim: meu amigo e meu camarada. Terá de me desatar, Kerigan. Terá de me devolver o revólver.
— Não o creias.
— Sim. E deixar-me-á empunhar a carabina. melhor que a revólver contra o inimigo que se move como uma centelha — terminou com uma gargalhada tão estridente como o relincho de um cavalo.
— Já te divertiste bastante? — perguntou Kerigan.
— Oh, não! A diversão vai começar agora.
O xerife pôs-se sério.
— Qual é a chave? — perguntou.
— A chave?
— Todos os enigmas têm uma chave. Qual é a deste? A estranha alegria que brilhava nos olhos do prisioneiro acentuou-se.
— Ainda não adivinhou?... Índios.
Incredulidade, foi isso o que experimentou Kerigan naquele momento.
—Índios? Aqui?
— Sim, índios. Apaches.
— Ora!
—É um grupo numeroso. Eu vi-os.
— Agora não há índios hostis.
— Mas estes são. Estão furiosos. Querem vingar um dos seus guerreiros, que morreu esta manhã.
— Como? Quem o matou?
Barry fez uma careta como se celebrasse um bom acontecimento.
— Fui eu. Havia-se adiantado aos seus companheiros e surpreendeu-me com a minha carabina. Eu não lhe agradei nada, mas em compensação gostou muito da carabina. Tive de o matar com ela.
Kerigan lançou uma exclamação colérica.
— Estás louco! Matar um índio é como acender uma mecha num barril de pólvora!
—É uma carabina muito boa — manifestou o prisioneiro por toda a desculpa.
O xerife fervia interiormente, mas o mal já estava feito e não era possível fazer mais que afrontar a situação da melhor maneira possível.
— Que aconteceu depois? — quis saber.
— Perseguiram-me uivando como calotes; mas conseguiu iludir a perseguição e, por fim, perderam a pista. Devem andar, no entanto, pelas imediações e agora o tiro lhes indicará o caminho.
— É isso então o que pretendes? Não te importa morrer lutando contra eles?
— Cheirando a pólvora. Gosto mais que do cheiro da corda. E não creio que ninguém me censure por isso.
— Ainda pode ser que te enganes — observou. — Esses selvagens não são dessa região. São índios de passagem e podem muito bem ter seguido o seu caminho.
— É uma esperança para ti.
Encontravam-se num vale não muito extenso, rodeado de montes. Kerigan olhou à sua volta, estudando a situação. E viu-os naquele momento. Destacavam-se claramente sobre o cume de um monte afastado. Era um grupo de apaches. Barry, no lugar onde se encontrava, não pôde ver os índios, mas viu a expressão que se produziu no rosto do xerife.
— São eles? -- perguntou.
— Sim.
— Eu sabia-o. Que é feito da sua esperança, Kerigan?
— Isso não interessa, agora. Vamos. Sairemos daqui.
Foi ele próprio procurar o cavalo de Barry e ajudou-o a montar. Era um esplêndido animal. Montou o seu e saiu galopando na direção oposta ao monte onde vira os apaches. Levava na sua mão as rédeas da montada de Barry, obrigando-a a galopar atrás dele...
E, minutos mais tarde, viram surgir outro grupo de apaches no topo de um segundo monte que se elevava na frente deles. Deteve-se bruscamente e o prisioneiro lançou uma risada.
— Estamos cercados, Kerigan. Deve tê-lo compreendido, tal como eu — disse. 

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