Desmontaram. Os animais mostravam-se inquietos, como se se apercebessem do perigo que os seus donos corriam.
— Compreenda, Kerigan. Não há maneira de sair da situação... pelo menos para mim — observou o prisioneiro.
— Que queres dizer com isso?
—É muito simples. Esses selvagens não estão realmente em. pé de guerra. Pretendem somente vingar o seu companheiro. E então?
— Nada têm contra si. Portanto podia muito bem sair daqui... só. Eles deixariam que seguisse o seu caminho. Sim, estou certo disso. Porque não o tenta, Kerigan? Deixe que eu me entenda com eles. Agradecia-lhe, isso sim, que me soltasse as mãos e me deixasse fazer uso das armas. Não quererá que me arranquem a cabeleira sem que eu me possa defender.
O jovem xerife olhou duramente para o seu prisioneiro.
— Teria entendido bem? — perguntou em tom irado —. Queres que te liberte em troca de só eu escapar daqui?
—É o único meio que tem de sair desta ratoeira.
— E pensaste que o faria?
Barry suspirou.
— Não. Não o julguei, na realidade, mas... valia a pena tentar.
— Pois já o sabes. A minha resposta é não! Merecias uma boa sova pela tua proposta, e livras-te por teres as mãos atadas.
O prisioneiro sorriu, parecendo satisfeito.
— Sim. Considero-o capaz disso.
Recalcando o seu desgosto, Kerigan aproximou--se do seu prisioneiro e com um rápido golpe de faca cortou a cordas que lhe sujeitavam as mãos. Barry fletiu os braços e moveu os dedos para desentorpecer os músculos.
— Que isto fique bem entendido — resmungou o xerife. — Abre-se uma trégua entre nós enquanto existe a ameaça dos índios. Durante a mesma não haverá perseguidor nem perseguido. Seremos dois camaradas que enfrentam o mesmo perigo.
O rosto de Barry resplandecia como se para ele começasse uma nova e feliz vida.
— Esplêndido! — exclamou —. Alegro-me muito em te conhecer, camarada — prosseguiu, tratando por tu, pela primeira vez, o seu captor —. Como estás? — E estendia-lhe a sua mão em sinal de amizade. Milo Kerigan resmungou novamente e apertou--lhe a mão. — Estou muito bem... e muito aborrecido —disse. Olharam-se francamente e ambos acabaram por soltar uma breve risada de excitação.
A noite era muito escura, sem que se vissem as estrelas, ocultas por um toldo de nuvens. Naquele pequeno vale rodeado por altos montes, parecia--lhes estarem metidos dentro de um negro poço sem ar suficiente para respirarem. Kerigan havia-se posto de pé e procurava em vão perscrutar as densas trevas. — Não te canses — disse Barry Nós não os podemos ver, nem eles a nós. Não podem saber em que lugar estamos do vale. Teremos de esperar uns e outros. Não nos atacarão até ao amanhecer. — Mas descerão dos montes, em silêncio, durante a noite. Quando chegarem as primeiras luzes, talvez estejam em cima de nós, a quatro passos, com a disposição de nos crivarem facilmente. O ex-prisioneiro permanecia calmamente sentado sobre uma manta, e a sua voz procurava ser um sedativo para os nervos de Kerigan.
— Bem, camarada — disse —, não te atormentes pensando no que sucederá quando amanhecer. Depois veremos.
O xerife manteve-se calado durante uns segundos. Depois suspirou.
— Sinto-o unicamente por minha irmã. Parece que está necessitando da minha ajuda.
— Tua irmã? Ignorava que tivesses uma irmã. Vive em Loonkey?
— Não. Eu sou forasteiro, não o sabias? Saí da minha terra aos oito anos, quando era apenas um rapazinho. Tive umas desinteligências com o meu pai e... Bom, o caso é que estou aqui, e minha irmã, segundo parece, encontrando-se em dificuldades.
— Deus! Será que todo o mundo está em apuros? — exclamou Barry com simpatia pelo companheiro —. E teu pai?
— Meu pai morreu.
— Sinto-o, amigo. Tua irmã está só, então?
— Deve estar com a sua madrasta. Ah!
— Por ela me aborreci com meu pai e tive de sair a ganhar a vida quando era ainda um garoto. Não quis ver nenhuma mulher ocupando o lugar de minha mãe.
— Compreendo. E talvez seja ela a causa das dificuldades em que tua irmã se encontra.
— Não sei. Há também o seu marido.
— Marido? A tua irmã, então...
— Casou-se há um par de anos. E meu pai, ao morrer, deixou metade do rancho a minha madrasta e a outra metade a minha irmã.
— Hum!... Há também um rancho. De muito valor?
— Sim. É bastante grande.
— E o rancho... pode muito bem ter sido o ponto da discórdia. E tu? Não houve herança para ti?
— Não. Meu pai não me quis perdoar. Tudo o que tenho de meu é este revólver.
— E alma. Agora sinto haver feito o que fiz. Sim, sinto-o pela tua irmã.
— Obrigado.
***
— Ouviste?
— Sim. Cala-te! Na obscuridade escutam-se muitos ruídos estranhos e aterradores, mas aquele que viveu durante muitos dias, exposto às intempéries e dormiu noites e noites sob o manto das estrelas, acaba por se familiarizar com eles. O leve ruído agora escutado era muito diferente.
— São eles.
— Não julguei que tentassem atacar-nos durante a noite — murmurou Barry —. Tens faca?
— Sim.
— Não és tão pobre, então, como dizias. Depressa... Tira o colete! E a camisa!
— Para quê?
— De noite e com facas, a coisa pode resultar... um pouco sangrenta. Convém preservar um pouco a roupa. Além disso, eles estarão quase nus e ser-nos-á conveniente que se produza a confusão.
Em poucos segundos se despojaram daquelas peças de roupa, ficando nus da cintura para cima. Com os ouvidos numa tensão quase dolorosa, permaneceram imóveis.
O ruído repetiu-se, mais próximo agora.
— Vamos, deitados e de barriga para o ar! Compreendes?
Sim, Kerigan compreendia perfeitamente. Os movimentos que se efetuam nas trevas são puramente instintivos, e o instinto do homem, que é um ser vertical, induze-o a dirigir os seus golpes detrás para diante. Não espera, quando luta com outros homens, que o ataque possa vir do solo.
O estratagema de Barry era inteligente naquelas circunstâncias. Estenderam-se muito próximos um do outro e em sentido inverso, de modo que onde um tinha os pés tinha o outro a cabeça.
— Sabes o que há a fazer? — sussurrou Barry.
— Creio que sim.
Os apaches acercavam-se lentamente, por um sexto sentido. Barry quis ajudá-los, precipitando o choque, e escavou no solo com a sua faca, fortemente empunhada. Qualquer luta era preferível à expectativa daquela horrível espera!
O suave rumor da faca obteve instantaneamente a resposta: uma massa agilíssima de músculos e ossos precipitou-se naquela direção! Tropeçou no corpo estendido de Barry, e o ar vibrou quase como o vidro, fendido por urna punhalada fulminante que o selvagem lançou ao lugar onde logicamente se devia achar o seu inimigo!... Mas este, do plano inferior onde se encontrava, livrou-se do golpe, e a sua faca elevou-se como um raio que invertesse a ordem da sua trajetória nascendo do solo. A arma afundou-se numa massa branda até encontrar um obstáculo resistente. Até ao osso! imaginou o jovem lutador com um estremecimento de horror e de gozo. Um espantoso alarido havia respondido ao seu mortal embate. Muito bem! aprovou Barry, tu já estás pronto!
Mas aquele não havia sido o único índio, a atacar. Outros se seguiram em violenta confusão. Uns pés saltavam às cegas naquele momento sobre o nosso jovem. Estendeu o braço num segundo golpe e desta vez falhou; mas o selvagem lançado no ar, tropeçou com um pé de Barry e caiu de bruços. O jovem julgou ver como o punhal que o selvagem brandia se batia ferozmente sobre outro corpo que estava em terra. Juraria que, dificilmente, pôde o outro responder ao ataque, abraçando-se ao inimigo que apunhalava e sepultando-lhe, por sua vez, o aço nas costas. Barry lançou uma maldição em voz baixa. Se fosse Kerigan o que se encontrava por debaixo! Os índios ululavam agora freneticamente e trocavam frases entre eles que o jovem não conseguia compreender. Outro inimigo veio sobre ele, lançado com fúria para o confuso enxame que se debatia em infernal confusão. O raio surgiu novamente nas mãos de Barry, e o aço penetrou na carne do selvagem! Mas a arma encaixou-se bruscamente naquele corpo... talvez os ossos se comportassem como um cepo sobre o aço, e o índio, na sua investida, levou-o consigo, furtando-o das mãos do jovem lutador. Deus, havia ficado sem defesa!
Afastar-se... Fugir... Não tinha outro remédio. Rodou sobre si, separando-se dos combatentes. E, subitamente, um apache, notando a manobra, lançou-se sobre ele como um tigre!... Viu o relâmpago de uma arma enquanto notava que uma mão de ferro o agarrava pelo ombro. E a arma desviou a sua viagem, detendo-se bruscamente!... «Huj» !, grunhiu o índio, afastando-se de um salto. Deteve-se logo, querendo aprofundar as trevas. Barry viu-o hesitar. Um suor frio inundou a fronte do jovem. Compreendeu naquele instante o que ocorria.
O selvagem, notando-o nu sob a pressão da sua mão, tomara-o por um dos seus. Talvez tivessem combinado aquele estratagema para se reconhecerem na escuridão. Não esperavam que os homens brancos se despojassem das suas roupas. Era isso! Barry Meeker pensou que devia aproveitar aquele erro. Ergueu-se e, cambaleando como um homem ferido, encaminhou-se para o selvagem...
Huj! — voltou a grunhir o índio, apontando para as suas costas, indicando talvez ao seu suposto companheiro que se retirasse da contenda. Barry já estava junto dele. Reunindo todas as suas forças lançou o seu braço para diante, deixando-se ir atrás e apoiando assim com o peso e o impulso do corpo a violência terrível do soco. O selvagem, alcançado no queixo, foi-se abaixo como uma árvore cortada pela sua base. O jovem despojou-o do seu machete. Observou que o índio adornava a cabeça com um grande penacho de plumas. Era um chefe, segundo compreendeu. Imediatamente viu o que tinha a fazer. O selvagem mexia-se e o jovem ajudou-o a erguer-se.
— Acima! — disse-lhe —. Acorda! Ouves-me?
O selvagem sacudiu a cabeça, aturdido ainda pelo tremendo soco que recebera. Barry encostou--lhe o machete aos rins.
— Todos embora! Compreendes? Todos embora daqui!... Imediatamente!... Tu dás as ordens!
Para sublinhar as suas palavras fez com que o machete penetrasse um par de centímetros na carne do índia. O selvagem levantou um braço em sinal de concordância e, com voz gutural, deu ordens aos demais índios, que imediatamente cessaram a luta. Haviam intervido nela oito ou dez, mas só três se destacavam agora aproximando-se do chefe e ladrando palavras excitadas. O chefe tornou a dar ordens com um tom imperioso. Os selvagens inclinaram-se sobre os seus
companheiros caídos e ajudaram a erguer-se um par deles. Lentamente se afastaram daquele lugar, perdendo-se na noite em direção às colinas próximas.
— Tu também vais com eles, se dás a palavra de não voltares a atacar — disse Barry sem afastar a faca das costas do selvagem —. Compreendes? Dás a tua palavra?
— Huj! — grunhiu o apache.
— Partem para longe esta mesma noite?
— Huj! — repetiu o vencido.
O índio empreendeu a marcha, muito erguido, sem voltar a cabeça uma só vez, perdendo-se nas trevas. A atuação de Barry centrou-se imediatamente no seu camarada de luta. Ignorava o que tivesse sido dele, e o seu coração abrigava o medo de que lhe tivesse acontecido o pior.
— Kerigan? — chamou, sem obter resposta.
Saltou por cima dos cadáveres de três índios amontoados na sua frente. Dois deles jaziam um sobre o outro, unidos num mortal abraço. Sem dúvida haviam-se apunhalado mutuamente na escuridão. E atrás deles, divisou o jovem xerife também caído.
—Kerigan! — voltou a gritar, inclinando-se sobre o seu corpo.
Este abriu os olhos.
— Salvaste a pele? — murmurou. — Sim. E tu? Como estás?
— Eu... estou pronto.
— Deixa-me que te veja.
—Não. É inútil. Não há nada a fazer. Um deles alcançou-me com o punhal... no peito. Eu também consegui dar-lhe um bom golpe... e é um consolo que ele tenha ido à minha frente. Foi... uma bela luta!
— Foi um inferno! E arrependo-me de a ter provocado!... Tira a mão da ferida. Vou ligá-la o melhor que possa.
— Não. Ouve, Barry. Com isto estás livre, e isso me alegra.
— Alegras-te.
— Sim. Deste modo podes fazer o que eu já não posso. Minha irmã... minha irmã, entendes?
— Sim.
— Fica ao teu cuidado. Sei que está em perigo, e serás tu a defendê-la.
— Mas... eu sou um proscrito.
— Não o serás, se trocas o teu nome pelo meu. Eu era um rapazinho quando saí da minha casa. Ninguém duvidará de que não sou eu, se tu te apresentares com o meu nome. Farás o que eu te peço, Barry?
— Pelo menos vou tentá-lo.
— Obrigado, rapaz. Fomos dois bons camaradas durante uns minutos... Dois bons camaradas!
— Compreenda, Kerigan. Não há maneira de sair da situação... pelo menos para mim — observou o prisioneiro.
— Que queres dizer com isso?
—É muito simples. Esses selvagens não estão realmente em. pé de guerra. Pretendem somente vingar o seu companheiro. E então?
— Nada têm contra si. Portanto podia muito bem sair daqui... só. Eles deixariam que seguisse o seu caminho. Sim, estou certo disso. Porque não o tenta, Kerigan? Deixe que eu me entenda com eles. Agradecia-lhe, isso sim, que me soltasse as mãos e me deixasse fazer uso das armas. Não quererá que me arranquem a cabeleira sem que eu me possa defender.
O jovem xerife olhou duramente para o seu prisioneiro.
— Teria entendido bem? — perguntou em tom irado —. Queres que te liberte em troca de só eu escapar daqui?
—É o único meio que tem de sair desta ratoeira.
— E pensaste que o faria?
Barry suspirou.
— Não. Não o julguei, na realidade, mas... valia a pena tentar.
— Pois já o sabes. A minha resposta é não! Merecias uma boa sova pela tua proposta, e livras-te por teres as mãos atadas.
O prisioneiro sorriu, parecendo satisfeito.
— Sim. Considero-o capaz disso.
Recalcando o seu desgosto, Kerigan aproximou--se do seu prisioneiro e com um rápido golpe de faca cortou a cordas que lhe sujeitavam as mãos. Barry fletiu os braços e moveu os dedos para desentorpecer os músculos.
— Que isto fique bem entendido — resmungou o xerife. — Abre-se uma trégua entre nós enquanto existe a ameaça dos índios. Durante a mesma não haverá perseguidor nem perseguido. Seremos dois camaradas que enfrentam o mesmo perigo.
O rosto de Barry resplandecia como se para ele começasse uma nova e feliz vida.
— Esplêndido! — exclamou —. Alegro-me muito em te conhecer, camarada — prosseguiu, tratando por tu, pela primeira vez, o seu captor —. Como estás? — E estendia-lhe a sua mão em sinal de amizade. Milo Kerigan resmungou novamente e apertou--lhe a mão. — Estou muito bem... e muito aborrecido —disse. Olharam-se francamente e ambos acabaram por soltar uma breve risada de excitação.
A noite era muito escura, sem que se vissem as estrelas, ocultas por um toldo de nuvens. Naquele pequeno vale rodeado por altos montes, parecia--lhes estarem metidos dentro de um negro poço sem ar suficiente para respirarem. Kerigan havia-se posto de pé e procurava em vão perscrutar as densas trevas. — Não te canses — disse Barry Nós não os podemos ver, nem eles a nós. Não podem saber em que lugar estamos do vale. Teremos de esperar uns e outros. Não nos atacarão até ao amanhecer. — Mas descerão dos montes, em silêncio, durante a noite. Quando chegarem as primeiras luzes, talvez estejam em cima de nós, a quatro passos, com a disposição de nos crivarem facilmente. O ex-prisioneiro permanecia calmamente sentado sobre uma manta, e a sua voz procurava ser um sedativo para os nervos de Kerigan.
— Bem, camarada — disse —, não te atormentes pensando no que sucederá quando amanhecer. Depois veremos.
O xerife manteve-se calado durante uns segundos. Depois suspirou.
— Sinto-o unicamente por minha irmã. Parece que está necessitando da minha ajuda.
— Tua irmã? Ignorava que tivesses uma irmã. Vive em Loonkey?
— Não. Eu sou forasteiro, não o sabias? Saí da minha terra aos oito anos, quando era apenas um rapazinho. Tive umas desinteligências com o meu pai e... Bom, o caso é que estou aqui, e minha irmã, segundo parece, encontrando-se em dificuldades.
— Deus! Será que todo o mundo está em apuros? — exclamou Barry com simpatia pelo companheiro —. E teu pai?
— Meu pai morreu.
— Sinto-o, amigo. Tua irmã está só, então?
— Deve estar com a sua madrasta. Ah!
— Por ela me aborreci com meu pai e tive de sair a ganhar a vida quando era ainda um garoto. Não quis ver nenhuma mulher ocupando o lugar de minha mãe.
— Compreendo. E talvez seja ela a causa das dificuldades em que tua irmã se encontra.
— Não sei. Há também o seu marido.
— Marido? A tua irmã, então...
— Casou-se há um par de anos. E meu pai, ao morrer, deixou metade do rancho a minha madrasta e a outra metade a minha irmã.
— Hum!... Há também um rancho. De muito valor?
— Sim. É bastante grande.
— E o rancho... pode muito bem ter sido o ponto da discórdia. E tu? Não houve herança para ti?
— Não. Meu pai não me quis perdoar. Tudo o que tenho de meu é este revólver.
— E alma. Agora sinto haver feito o que fiz. Sim, sinto-o pela tua irmã.
— Obrigado.
***
— Ouviste?
— Sim. Cala-te! Na obscuridade escutam-se muitos ruídos estranhos e aterradores, mas aquele que viveu durante muitos dias, exposto às intempéries e dormiu noites e noites sob o manto das estrelas, acaba por se familiarizar com eles. O leve ruído agora escutado era muito diferente.
— São eles.
— Não julguei que tentassem atacar-nos durante a noite — murmurou Barry —. Tens faca?
— Sim.
— Não és tão pobre, então, como dizias. Depressa... Tira o colete! E a camisa!
— Para quê?
— De noite e com facas, a coisa pode resultar... um pouco sangrenta. Convém preservar um pouco a roupa. Além disso, eles estarão quase nus e ser-nos-á conveniente que se produza a confusão.
Em poucos segundos se despojaram daquelas peças de roupa, ficando nus da cintura para cima. Com os ouvidos numa tensão quase dolorosa, permaneceram imóveis.
O ruído repetiu-se, mais próximo agora.
— Vamos, deitados e de barriga para o ar! Compreendes?
Sim, Kerigan compreendia perfeitamente. Os movimentos que se efetuam nas trevas são puramente instintivos, e o instinto do homem, que é um ser vertical, induze-o a dirigir os seus golpes detrás para diante. Não espera, quando luta com outros homens, que o ataque possa vir do solo.
O estratagema de Barry era inteligente naquelas circunstâncias. Estenderam-se muito próximos um do outro e em sentido inverso, de modo que onde um tinha os pés tinha o outro a cabeça.
— Sabes o que há a fazer? — sussurrou Barry.
— Creio que sim.
Os apaches acercavam-se lentamente, por um sexto sentido. Barry quis ajudá-los, precipitando o choque, e escavou no solo com a sua faca, fortemente empunhada. Qualquer luta era preferível à expectativa daquela horrível espera!
O suave rumor da faca obteve instantaneamente a resposta: uma massa agilíssima de músculos e ossos precipitou-se naquela direção! Tropeçou no corpo estendido de Barry, e o ar vibrou quase como o vidro, fendido por urna punhalada fulminante que o selvagem lançou ao lugar onde logicamente se devia achar o seu inimigo!... Mas este, do plano inferior onde se encontrava, livrou-se do golpe, e a sua faca elevou-se como um raio que invertesse a ordem da sua trajetória nascendo do solo. A arma afundou-se numa massa branda até encontrar um obstáculo resistente. Até ao osso! imaginou o jovem lutador com um estremecimento de horror e de gozo. Um espantoso alarido havia respondido ao seu mortal embate. Muito bem! aprovou Barry, tu já estás pronto!
Mas aquele não havia sido o único índio, a atacar. Outros se seguiram em violenta confusão. Uns pés saltavam às cegas naquele momento sobre o nosso jovem. Estendeu o braço num segundo golpe e desta vez falhou; mas o selvagem lançado no ar, tropeçou com um pé de Barry e caiu de bruços. O jovem julgou ver como o punhal que o selvagem brandia se batia ferozmente sobre outro corpo que estava em terra. Juraria que, dificilmente, pôde o outro responder ao ataque, abraçando-se ao inimigo que apunhalava e sepultando-lhe, por sua vez, o aço nas costas. Barry lançou uma maldição em voz baixa. Se fosse Kerigan o que se encontrava por debaixo! Os índios ululavam agora freneticamente e trocavam frases entre eles que o jovem não conseguia compreender. Outro inimigo veio sobre ele, lançado com fúria para o confuso enxame que se debatia em infernal confusão. O raio surgiu novamente nas mãos de Barry, e o aço penetrou na carne do selvagem! Mas a arma encaixou-se bruscamente naquele corpo... talvez os ossos se comportassem como um cepo sobre o aço, e o índio, na sua investida, levou-o consigo, furtando-o das mãos do jovem lutador. Deus, havia ficado sem defesa!
Afastar-se... Fugir... Não tinha outro remédio. Rodou sobre si, separando-se dos combatentes. E, subitamente, um apache, notando a manobra, lançou-se sobre ele como um tigre!... Viu o relâmpago de uma arma enquanto notava que uma mão de ferro o agarrava pelo ombro. E a arma desviou a sua viagem, detendo-se bruscamente!... «Huj» !, grunhiu o índio, afastando-se de um salto. Deteve-se logo, querendo aprofundar as trevas. Barry viu-o hesitar. Um suor frio inundou a fronte do jovem. Compreendeu naquele instante o que ocorria.
O selvagem, notando-o nu sob a pressão da sua mão, tomara-o por um dos seus. Talvez tivessem combinado aquele estratagema para se reconhecerem na escuridão. Não esperavam que os homens brancos se despojassem das suas roupas. Era isso! Barry Meeker pensou que devia aproveitar aquele erro. Ergueu-se e, cambaleando como um homem ferido, encaminhou-se para o selvagem...
Huj! — voltou a grunhir o índio, apontando para as suas costas, indicando talvez ao seu suposto companheiro que se retirasse da contenda. Barry já estava junto dele. Reunindo todas as suas forças lançou o seu braço para diante, deixando-se ir atrás e apoiando assim com o peso e o impulso do corpo a violência terrível do soco. O selvagem, alcançado no queixo, foi-se abaixo como uma árvore cortada pela sua base. O jovem despojou-o do seu machete. Observou que o índio adornava a cabeça com um grande penacho de plumas. Era um chefe, segundo compreendeu. Imediatamente viu o que tinha a fazer. O selvagem mexia-se e o jovem ajudou-o a erguer-se.
— Acima! — disse-lhe —. Acorda! Ouves-me?
O selvagem sacudiu a cabeça, aturdido ainda pelo tremendo soco que recebera. Barry encostou--lhe o machete aos rins.
— Todos embora! Compreendes? Todos embora daqui!... Imediatamente!... Tu dás as ordens!
Para sublinhar as suas palavras fez com que o machete penetrasse um par de centímetros na carne do índia. O selvagem levantou um braço em sinal de concordância e, com voz gutural, deu ordens aos demais índios, que imediatamente cessaram a luta. Haviam intervido nela oito ou dez, mas só três se destacavam agora aproximando-se do chefe e ladrando palavras excitadas. O chefe tornou a dar ordens com um tom imperioso. Os selvagens inclinaram-se sobre os seus
companheiros caídos e ajudaram a erguer-se um par deles. Lentamente se afastaram daquele lugar, perdendo-se na noite em direção às colinas próximas.
— Tu também vais com eles, se dás a palavra de não voltares a atacar — disse Barry sem afastar a faca das costas do selvagem —. Compreendes? Dás a tua palavra?
— Huj! — grunhiu o apache.
— Partem para longe esta mesma noite?
— Huj! — repetiu o vencido.
O índio empreendeu a marcha, muito erguido, sem voltar a cabeça uma só vez, perdendo-se nas trevas. A atuação de Barry centrou-se imediatamente no seu camarada de luta. Ignorava o que tivesse sido dele, e o seu coração abrigava o medo de que lhe tivesse acontecido o pior.
— Kerigan? — chamou, sem obter resposta.
Saltou por cima dos cadáveres de três índios amontoados na sua frente. Dois deles jaziam um sobre o outro, unidos num mortal abraço. Sem dúvida haviam-se apunhalado mutuamente na escuridão. E atrás deles, divisou o jovem xerife também caído.
—Kerigan! — voltou a gritar, inclinando-se sobre o seu corpo.
Este abriu os olhos.
— Salvaste a pele? — murmurou. — Sim. E tu? Como estás?
— Eu... estou pronto.
— Deixa-me que te veja.
—Não. É inútil. Não há nada a fazer. Um deles alcançou-me com o punhal... no peito. Eu também consegui dar-lhe um bom golpe... e é um consolo que ele tenha ido à minha frente. Foi... uma bela luta!
— Foi um inferno! E arrependo-me de a ter provocado!... Tira a mão da ferida. Vou ligá-la o melhor que possa.
— Não. Ouve, Barry. Com isto estás livre, e isso me alegra.
— Alegras-te.
— Sim. Deste modo podes fazer o que eu já não posso. Minha irmã... minha irmã, entendes?
— Sim.
— Fica ao teu cuidado. Sei que está em perigo, e serás tu a defendê-la.
— Mas... eu sou um proscrito.
— Não o serás, se trocas o teu nome pelo meu. Eu era um rapazinho quando saí da minha casa. Ninguém duvidará de que não sou eu, se tu te apresentares com o meu nome. Farás o que eu te peço, Barry?
— Pelo menos vou tentá-lo.
— Obrigado, rapaz. Fomos dois bons camaradas durante uns minutos... Dois bons camaradas!
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