domingo, 28 de abril de 2019

COL005.04 A história de Jayne

Já tinha acabado há um bocado o espetáculo, quando Durking se despediu de Sidney. Atravessou o saloon onde se encontrava ainda muita gente, bebendo e jogando. Sentia-se moralmente cansado. Uma sensação de repugnância, perturbava-lhe o espírito.
Chegado ao hotel, o porteiro anunciou-lhe que, na sala de espera, tinha uma visita. Achou estranho. Aborrecido, foi ver de quem se tratava.
—Jayne!
—Olá, doutor.
—Combinámos em que me trataria pelo meu nome próprio e tem cumprido o combinado. Porque muda agora?
—Fá-lo-ei se, depois de me ouvir, achar que mereço essa deferência. Não quis marcar esta entrevista. Os acontecimentos precipitaram-na e... suponho que não se incomodará em me ouvir. Esta manhã, no cais, disse-lhe que falaríamos um dia, sobre o que tanto o surpreendeu...
—Não, não me importo nada de a ouvir, mas... tem a certeza de que o deve fazer?
—E preciso que o faça!
—Bom. Não a convido para subir ao meu quarto, porque depois do que disse o «cavalheiro» Egan, não me atrevo. Não podemos alimentar a maledicência.
—Estou imunizada contra isso tudo. De qualquer modo, aqui está-se bem.
—Como queira.
Sentou-se.


Jayne falou sem rodeios:
—O objetivo principal da minha visita, é pedir-lhe que salve Doris.
—Eu? Salvar Doris?
—Não deve permitir que continue nas garras de um miserável.
—Na verdade, esse tal Egan, mostrou-se um portento de falta de vergonha e cobardia; Doris merece compaixão, mas não sou eu o indicado para resolver o assunto. Você devia ter observado os seus olhares. No seu conceito, eu sou um infame...
—E preciso convencê-la da verdade. Você é capaz de o fazer. Não sei como, mas julgo-o capaz.
—Não sou capaz, nem o quero, minha amiga. Estou, passe a expressão, enojado.
—Compreendo-o, mas ela não tem culpa. Embora se afaste de mim, embora despreze Teddy, evite que Doris se perca. Ambos gostamos dela. Eu, porque lhe estou eternamente grata; você... porque a ama.
—Jayne!
—É inútil negá-lo. Tenho muita experiência nesses assuntos. Você ama-a. E embora ela não lhe corresponda, por que está cega por esse canalha, deve ir até ao impossível, para que ela não se afunde. Você não pode imaginar até que ponto é odioso Teddy Egan... ou John Harvic. Encontrei-o com esse nome.
—Admito que achei Doris, simpática, atraente, mas mais nada — mentiu Durking, resistindo a desvendar o seu segredo.
—Não insisto acerca dos sentimentos que lhe inspire. Talvez você próprio não tenha dado conta de que gosta dela. Basta, contudo, essa simpatia para que não a deixe à mercê do maior canalha que tem pisado terra da Califórnia — fitava-o trémula, suplicante. Como Durking permanecesse indeciso, continuou: —Eu era muito jovem, tanto como é Doris, agora, quando John Harvic se cruzou no meu caminho. Era muito bela. Não se trata duma gabarolice. Estou a referir-me a um passado que morreu e posso permitir-me esse tributo ao que fui.
—Continua a sê-lo.
—Obrigada pela sua generosidade e galanteria. Sei que apenas conservo vestígios do passado. A minha carreira artística estava no seu começo e apesar disso, o triunfo já me sorria. À minha volta, como à de toda a rapariga bonita que se dedique ao teatro, zumbiam os «moscardos». Mas eu era decente e queria continuar a sê-lo. Repeli ofertas tentadoras, mesmo de casamento, pois estava na idade dos sonhos e não concebia a união com um homem, sem que fosse impelida pelo amor.
—E assim que deve ser.
—De facto, é; mas por infelicidade... Bem, continuo. Certa noite, depois dum êxito clamoroso, surgiu John Harvic na minha vida. Deu-me um presente delicado. Teve frases bonitas... Eu escutei-o, embevecida. Pareceu-me um homem extraordinário — sorriu tristemente irónica —e era-o. Se era? Soube enfeitiçar-me e pouco tempo depois amava-o loucamente. Também como agora com Doris, falava-me em casamento; mas surgiu sempre um motivo para adiar a boda.
— Ah!
—Fez de mim o que quis. Quando cheguei a conhecê-lo, era tarde demais. E o pior, o que não me perdoo nem ninguém me deve perdoar era que, mesmo conhecendo-o, não duvidando ser ele do mais baixo que se possa conceber, era incapaz de o abandonar. Parecia que um maldito feitiço me ligava a ele, irremediavelmente. Debatia-me numa luta espantosa, às vezes julgava ter forças para fugir; mas bastava um olhar seu, uma carícia... ou um mau trato para que se fechassem mais as minhas algemas invisíveis.
—Que coisas!
—Inspiro-lhe desprezo, não é verdade, Dr. Durking?
—Pelo contrário. Será melhor não dizer mais nada. Imagino o resto.
—Para o imaginar, pense no mais abjeto que se possa conceber. Vendeu-me quantas vezes quis; tive de o secundar nos seus negócios sujos... Até que murchou a minha juventude e deixei de lhe parecer «um bom assunto!». A partir de então tornou-se o pior dos tiranos. E como nem mesmo assim o abandonasse, deixou-me. Isso aconteceu aqui em São Francisco, há anos. Fui de um sítio para outro como que embrutecida. Cobardemente, refugiei-me na bebida. Pouco a pouco aquele amor imenso, converteu-se em ódio. Ou melhor, asco e desprezo. Quis refazer a minha vida, afastei-me do álcool, procurei trabalho... Mas já era uma ruína. Raramente conseguia um contrato e...
—Não se esforce mais.
— Bem, isto é tudo. Nunca mais tinha encontrado John ou Teddy. Agora deve imaginar o que senti, quando o vi, esta manhã, no cais. Poderá assim explicar a minha resistência em responder às perguntas que me fez. Estava atordoada e além disso, a recordação da minha história, enchia-me de vergonha. Hesitava em lhe contar isto tudo, mas após o que se passou esta noite, não podia continuar calada. Você surpreendeu-nos, quando ele procurava arrancar-me a promessa de que não diria a Doris uma palavra, acerca do que se passou entre nós.
—Promessa que você não fez, não é verdade?
—Claro que não!
—Fale então à sua amiga. Conte-lhe tudo. Será a melhor solução.
—Fá-lo-ei, se não há outro remédio, mas duvido do êxito. Nós, as mulheres, somos uns... bichinhos raros. Se durante o tempo em que eu julgava Teddy o melhor dos homens, alguém se tivesse permitido qualquer censura, tê-lo-ia considerado um inimigo odioso. Acabo de lhe dizer que, até depois de reconhecer a sua baixeza, continuei a ser a sua escrava e teria combatido quem tentasse a nossa separação. Doris encontra-se na mesma situação. Adora-o. Não me quererá ouvir. E, em qualquer dos casos, deixará de ser minha amiga.
— Comigo sucederia o mesmo. Tenho a impressão de que já me odeia.
—Mas você... você é um homem extraordinário e não lhe faltarão recursos.
—Nada de extraordinário. Sou um homem vulgar.
—Se pensa assim é porque não sabe o que vale.
Fitou-o apaixonadamente. Durking não reparou porque naquele momento fazia uma introspeção. Os seus sentimentos debatiam-se em luta feroz. Por um lado, a vontade de libertar Doris, de castigar o odioso homem; de render tributo ao amor que a jovem lhe inspirava. Por outro, a convicção de que seria inútil a vontade de se colocar acima daquela paixão e reintegrar-se noutro ambiente mais puro. Este último venceu.
—Lamento, Jayne, lamento de verdade. Não encontro a solução para este problema.
A artista exteriorizou o seu desapontamento.
—Julguei que lhe quisesse mais do que na realidade lhe quer...
—Já lhe disse que só me inspira simpatia, afeição... —voltou a mentir. —Mas mesmo que a amasse, a minha resolução seria idêntica. Eu não posso salvar ninguém, contra a sua vontade. Um novo acto violento contra Egan, tornaria este um adorável mártir, aos olhos de Doris.
—Então...?
—Voltarei as costas a tudo. Depois de amanhã, abandono São Francisco.
Jayne levantou-se.
—Não o incomodo mais, Dr. Durking.
—Renuncia a tratar-me pelo meu nome próprio?
—Deseja que continue? Agora que sabe tudo?
— Com maior motivo, agora que o sei. A minha mão esteve sempre estendida aos infelizes.
Os olhos da mulher humedeceram-se.
—Falarei com Doris.
—Parece-me lógico, seja qual for o resultado, você terá cumprido o seu dever e a consciência não a acusará.
—Voltaremos a ver-nos?
—Espero que sim. Irei despedir-me. Mas... tenho uma ideia! Porque não vem passar uma temporada a «São Bernardino». Seria excelente para a sua saúde. Ar livre e puro... A minha tia Carrol, que governa a casa, é uma mulher toda bondade e recebê-la-ia de braços abertos.
A emoção de Jayne recrudesceu, embora fizesse o possível para a disfarçar.
—Esse é um novo motivo de gratidão...
—Deixe-se disso! Aceita?
—Não, Robert. Já fez bastante por mim. Você quer afastar-se de tudo isto, em que se viu metido por um capricho da sorte e eu recordá-la-ia.
—Asseguro-lhe que...
—Não insista, peço-lhe... Não se esqueça de me dizer adeus, antes de nos separarmos para sempre. Saiu a correr, reprimindo os soluços.
Durante o caminho, alguns noctívagos bêbados importunaram-na com palavras de mau gosto. Ela nem sequer os ouviu, entregue aos seus dolorosos pensamentos. Quando entrou no seu quarto do hotel, encontrou Doris ali. Uma Doris muito diferente da habitual: dura, agressiva, ameaçadora...
Jayne não acusou surpresa.
—Olá --murmurou.
—Donde vens?
—Entretive-me a...
—Não. Estiveste com Teddy, não é verdade?
Jayne ficou assombrada.
—Eu? Com Teddy?
—Não julgues que aceitei como boa a explicação de há bocado. O atordoamento e o afã de «o» afastar do perigo, evitaram que me metesse em complicações, mas não parei de pensar no assunto. Ê muito estranho, que tu e o médico estivessem a discutir e que disparassem sobre Teddy, só porque este interveio na discussão...
—Para já, não podia ter ocorrido ao teu noivo uma mentira mais absurda.
—Eu deduzi a verdade. Isto é, Teddy e tu já se conheciam.
—Por que não lho perguntaste?
— Porque não tive ocasião. Acompanhou-me ao camarim, dizendo-me que depois falaríamos do assunto, e não voltou. Cansada de esperar, vim falar contigo.
—E ao verificar que eu não estava, pensaste que nos encontrávamos juntos.
— Exatamente.
— Que imaginação a tua!
Com afetada naturalidade, tirou as luvas, o chapéu... tinha conseguido dominar-se. Compreendera que antes da explicação inevitável, devia conter os nervos.
—Necessito a verdade. Exijo-a!
—Não é precisa essa exigência. Já tencionava dar-ta a conhecer... embora não alcances a intensidade do meu sofrimento... pelo que tu vais sofrer.
—Deixa-te de rodeios.
—Começarei por te dizer que acabo de falar com o Dr. Durking.
— Com o Dr. Durking! Então... é verdade que vocês...?
— Nós, o quê...? — sorriu amargamente. — Que significo eu para esse homem incomparável?
—Ainda o defendes depois do que fez?
—E que é que ele fez? Intervir para defender uma mulher indefesa, a quem um canalha maltratava?
Os olhos de Doris lançavam chispas. Levantou-se colérica, as feições alteradas.
—Referes-te a Teddy?
—Sim.
Fitaram-se em silêncio. Jayne, altiva, dominadora; Doris, perplexa, não conseguia compreender aquela situação.
—És uma...!
—Cala-te. Não fales antes do tempo. Diz o que quiseres, depois.
—Diz a verdade imediatamente!
—Procura acalmar-te. O que vais ouvir é muito duro e preciso de estar calma. Conhecia, com efeito, Teddy. Conhecia-o, embora com outro nome. Como suspeitas, ouvindo-te falar, que o Teddy dos teus amores era o John Harvic, que causou a minha infelicidade.
Doris continuava sem compreender.
—Mentes...! Não pode ser verdade!
—Mas é, minha amiga.
—Não me trates assim. Odeio-te!
—É humano: E ainda me hás-de odiar mais quando me ouvires. Mas é preciso. Mesmo que me insultes, que me mates, tenho a obrigação de te abrir os olhos. Para que me ajudasse nesta tarefa, procurei o Dr. Durking. Não consegui convencê-lo. O nosso caso inspira-lhe náuseas e recusa-se a intervir.
— Detesto a ideia dessa sua intervenção!
— Que sabes tu disso? A diferença que há entre Teddy e Robert! Este sim, é que te merece e te quer de verdade!
—Que dizes? Que o doutor...? É ridículo!
— Porquê?
— Agora percebo...!
—Não podes perceber nada porque estás cega.
—Vamos ao que interessa, Jayne. Que há ou houve entre Teddy e tu?
— Ouve-me com calma.
—Com calma, não; mas ouvir-te-ei.
Voltou a sentar-se, embora presa de enorme nervosismo. Jayne enfrentou-a. E falou, como o cirurgião que não hesita em esquartejar com o bisturi, em benefício do doente. Doris interrompia-a de vez em quando com protestos e interjeições ofensivas; mas ela continuava a contar a sua história, omitindo, por decoro, alguns detalhes. E murmurou, assim que concluiu:
—Agora já sabes quem é o que diz chamar-se Teddy Egan. Para exigir-me silêncio, entrou no meu camarim esta noite, não se conformou com ameaças e ante a minha afirmação de que poria tudo a nu, chegou a maltratar-me. Foi então que Durking interveio. Ainda estás a tempo, Doris. Foge desse maldito explorador de mulheres.
—Começo a ver claro—disse a jovem, sarcástica.
—Deveras? —e a esperança assomou às pupilas de Jayne.
—Muito deveras! Continuas a gostar de Teddy e na esperança de o reconquistar, não te ocorreu nada melhor que o disputar, para eu te deixar o campo livre.
—Doris!
—És muito esperta, mas a mim não me enganas. São os ciúmes que te levam a isto. E esses ciúmes têm mais força que toda a gratidão que me deves.
—Essa gratidão é tão grande que, embora tenha perdido parte do seu valor, por me a atirares à cara, durará toda a minha vida.
—Hipócrita!
—Não calculas o mal que me fazem as tuas palavras, mas continua, não me revoltarei. Estou disposta a ouvir tudo e a sofrer.
—Por muito que sofras, o teu sofrimento não tem comparação com o meu.
—Ah, sim? Então é porque admites a veracidade das minhas afirmações. E nesse caso bendigo esse sofrimento!
—Não! Não admito que seja verdade! Recuso-a, como te repelo a ti, para sempre! Maldita seja a hora em que tive compaixão do teu infortúnio!
Saiu a chorar. As suas lágrimas eram um misto de cólera e de pena. O pouco que dormiu, foi povoado de horrendos pesadelos.

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