quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

BIS067.11 Ser feliz por muitos anos

 Lucy lançou-se materialmente sobre o homem. 

— Aonde? — inquiriu com voz alterada. 

— Aí fora... Agora está no «saloon» ... 

A mulher saiu apressadamente da sala de jogo e Johnny Martin foi atrás dela. Muita gente estava aglomerada ante o grande «bar» do «saloon» imediato, mas Lucy abriu caminho à cotovelada e empurrões. 

Martin convertera-se na- sua sombra. Estava atrás dela e ouviu o seu entrecortado soluço no momento em que ambos viram Tommy. O rapaz jazia no chão de boca para cima. Tinha o peitilho da camisa manchado de sangue, os olhos fechados e o rosto pálido. Não se mexia. 

Um homem ajoelhado junto dele examinava, segundo parecia, o ferimento, enquanto um criado se inclinava para eles com uma garrafa de «whisky». Os espectadores da cena formavam, em torno, um silencioso círculo. 

—Está morto? — murmurou Lucy. 

O homem ajoelhado levantou a cabeça. Chamava-se Morríson, era médico e gostava muito de rum. Naquele momento, estava bêbedo. 

— Ainda não, mas é provável que morra — respondeu. — Tenho que extrair a bala. Este rapaz enlouqueceu, Lucy? Ou fizeste-lhe tu alguma partida? 

Lucy, sem responder, debruçou-se sobre o moribundo e depôs-lhe um beijo na fronte. Chorava. Silenciosa e docemente, chorava. Os que viram ficaram muito admirados. 

— Como aconteceu? 

— Não sei — respondeu o doutor Morrison. 

Lucy olhou para o criado com os seus olhos arrasados de lágrimas. 

— Tommy entrou muito agitado — explicou o homem. — Bebeu dois «whiskeys» duplos num instante. Depois foi ao lavabo. Ouvimos um tiro. Corremos, e estava caído como agora e com o revólver na mão. Trouxemo-lo para aqui... 

— Estava mais alguém no lavabo? — perguntou de repente Johnny Martin. 

— Ninguém. 

— Saiu alguém desde que ouviram o tiro até que vocês chegaram? 

— Ninguém. 

Martin agarrou Lucy pelos ombros e obrigou-a a levantar-se. 

— Saia daqui, menina Mayer — ordenou com rara suavidade. — Se lhe for possível, o médico extraí-lhe a bala. Vamos, retire-se. — Fez um sinal ao criado: — Você sirva-lhe um «whisky» duplo e tire-a daqui. 

O criado conduziu-a através da multidão. 

— Não posso operar agora — resmungou o doutor Morrison, ainda ajoelhado junto de Tommy. — Preciso beber muito mais... 

— Más se já está embriagado!... 

— Mas não o bastante para operar com êxito. Você não me conhece. 

O médico encarou com o grupo de curiosos e começou subitamente a gritar: 

— Todos daqui para fora, ou corro-os a tiro! 

Retiraram-se todos para o fundo do salão. Imediatamente, Morrison dirigiu-se ao «bar», pegou na primeira garrafa que encontrou, levou-a aos lábios e bebeu como se estivesse morto de sede. 

Johnny Martin contemplou-o uns momentos com o cenho franzido. Depois ergueu os ombros e começou a andar em direção à porta. Duma maneira inconsciente, instintiva, tocou com a ponta dos dedos a coronha do seu revólver, ao dar o primeiro passo. 

— Por favor. 

Lucy interpunha-se no seu caminho. Tinha o rosto alterado, coberto de lágrimas e 09 olhos vermelhos como brasas. 

— Não tente deter-me, menina Mayer. Já é tarde. 

— Não tento detê-lo. 

Ele permaneceu imóvel, rígido. 

— Creio que nunca compreenderei as mulheres. Faz isso por Tommy Roswell? 

— Não o faço por si, tenha a certeza. 

— Depois de ter enganado, traído e arruinado esse rapaz? Depois de ter troçado dele? Depois de você mesma o ter empurrado para o suicídio? 

— Sim, depois de tudo isso. 

— Vai dizer-me que descobriu que o ama? 

— Sim. 

— Pense bem. Tommy Roswell Morrerá. É mau negócio unir o seu destino a um morto.

— Não preciso pensar. Agora sei, salve-se ou não Tommy, que tudo acabou para mim. Quer aceitar a minha ajuda? 

Martin esboçou um mau sorriso. 

— Muito bem. Como sabe, Hedge hospeda-se aqui ao lado, no Palace Hotel. Vá lá e conte-lhe quem sou e o que pretendo. Diga-lhe que dentro de meia hora o esperarei na rua e dispararei assim que o veja. É de noite. Ofereço-lhe a vantagem da escuridão. 

— Você tem uma ideia muito errada de Hedge, Martin. Nunca lhe passará pela cabeça fazer-lhe frente, e muito menos agora que alcançou a meta da sua carreira, que é rico e que renuncia à luta. Fugirá. 

— Tanto melhor. Posso esperar. Não me importa o tempo. Segui-lo-ei até ao fim dó mundo e serei sempre uma ameaça suspensa sobre a sua cabeça. Algum dia voltarei a encontrá-lo. Entretanto, todo o ouro que tenha reunido não lhe servirá para viver descansado. Não há ouro que vença o medo. 

— Como queira — concordou Lucy com ar cansado. — Saia para a rua e espere. Irei em seguida ao hotel. 

Dez minutos depois, dos suportes fronteiros ao largo e alto edifício iluminado do Palace Hotel, Johnny Martin viu passar a mulher. Caminhava apressadamente, com a cabeça e os ombros cobertos por um xale negro. 

Então atirou ao chão o cigarro que fumava e verificou que o seu «Colt» saía facilmente do coldre. Se Francis Canopus Hedge era um homem, chegara o grande momento. Se era um cobarde, ali começava a sua agonia. Até então, seguira a sua pista sem que ele o soubesse. A partir de agora, segui-lo-ia abertamente, por aldeias, acampamentos e cidades, por vales, pradarias, desertos, rios e montanhas. Hedge nunca mais dormiria tranquilo. 

Johnny Martin pensou no longo caminho percorrido. Perdera a conta aos meses e aos anos, mas a terrível cena não se apagava da sua memória. Fora em Dodge City, numa noite de Outono. Podia ainda ouvir a sua própria voz: «Até nunca mais, menina Cheyne». E depois: «Link, quanto perdeste?». E o revólver de Hedge, o montão de fichas de cores, o repentino fogacho e aquela pancada na fonte... «Seu irmão morreu». «Martin, Martin! Não tome as coisas desse modo...». Quanto tempo havia? Quanto tempo esperara? Quanto tinha de esperar ainda? Anos? Minutos? 

Naquela noite voltara a ver Hedge pela primeira vez e teve-o ao alcance de tiro. Pôde matá-lo na casa de Lucy, e impunemente. Esteve quase um quarto de hora com a mão apoiada na coronha do revólver olhando para Hedge, do «bar». Em Dodge City só o vira uns instantes, e havia já anos; mas a sua cara não se lhe apagara. da memória. Hedge era o mesmo. Talvez que os seus traços tivessem sofrido uma modificação com a idade, mas faziam-no mais nobre, mais sereno. Seria já alguma coisa, ver aquele rosto contraído de medo ou de dor. 

Na casa de jogo, Johnny não disparara. Matar Hedge a sangue-frio não lhe bastava... 

Um grito interrompeu de repente os seus pensa-mentos. Era um grito de mulher. Soara no primeiro andar do edifício que Martin tinha na sua frente. Quando três segundos depois se repetiu pôde até localizar a janela donde saíra. 

Correu sem saber o que fazia. Penetrou no hotel. Os gritos foram também ouvidos no vestíbulo, porque várias pessoas olhavam para a escada, hesitando na decisão a tomar. 

Johnny não hesitou. Subiu a escada a quatro e qua-, Iro. Os gritos ouviram-se novamente no instante em quer chegou ao primeiro andar e isso serviu-lhe de orientação. Havia duas ou três pessoas no corredor, evidentemente, assustadas. Um homem dava socos numa porta.: Uma mulher gritava histericamente. 

— Afaste-se! — ordenou Martin ao homem. 

Puxou pelo revólver, e atirou-se brutalmente contra a porta. O tremendo encontrão fê-la saltar dos gonzos. A madeira estilhaçou-se. Johnny atravessou o umbral, desequilibrado. Então começaram a soar os tiros. Foram três. 

Martin não retomara ainda o equilíbrio quando viu o primeiro fogacho e, detrás deste, a cara de Hedge, com os seus olhos penetrantes e o seu sorriso. A bala atingiu-o e derrubou-o. Os dois tiros seguintes, ouviu-os já distantes. Depois reinou o silêncio. 

Alguém disse: 

— Beba. 

Johnny sentiu um líquido ardente deslizar pela garganta. A cara que tinha em frente, ao abrir os olhos, já não era a de Hedge, mas a de alguém cujo bafo cheirava a álcool. Demorou algum tempo a reconhecer o doutor Morrison. Quis levantar-se, mas o médico agarrou-o pelo pescoço. 

— Não se mexa, imbecil! 

— Que aconteceu? Tem, a perna partida por uma bala. Acabo agora mesmo de a meter em talas. 

— É o único ferimento? 

— Mais um arranhão sem importância. 

—E Lucy Mayer? 

— Está bem. Esse pássaro tentava, ao que parece, estrangulá-la, mas livrou-se com um simples susto. Você chegou a tempo. 

Johnny olhou em volta. Encontrava-se num dos quartos do hotel. Não naquele em que entrara antes, pois este tinha a porta inteira e fechada. 

— Que foi feito de Hedge? 

— Fugiu. 

— Para onde? 

— Não sei. É de supor que tenha abandonado a cidade o mais depressa possível... Lucy goza aqui de muitas simpatias, entende? Qualquer um partiria a cabeça com prazer ao homem que se atreveu a maltratá-la. 

— Compreendo — resmungou Johnny. 

Não se sentia desanimado por ver os seus planos frustrados. Habituara-se a esperar durante anos. Tinha na frente a vida inteira, e liberdade absoluta para se dedicar ao seu propósito.

Bateram à porta. 

—O ajudante do xerife disse que queria falar-lhe — preveniu Morrison. 

Abriu a porta, mas não era o agente da autoridade. Era Lucy Mayer. Mudara o vestido branco por outro cor de vinho. Estava muito serena. Com ela entrou no quarto um perfume suave. 

— Doutor — disse a meia voz, — importa-se de me deixar a sós com este homem? 

O médico fitou-os a ambos com o seu olhar de alcoólicos. 

— Claro que não. 

A mulher esperou que o médico saísse e fechasse a porta. Então, acrescentou: 

— Bem, Johnny Martin, você salvou-me a vida e tenho de lhe agradecer. Ao mesmo tempo pedir-lhe perdão por ter arriscado a sua e frustrar os seus projetos. Lamento-o sinceramente. 

— Talvez — respondeu Johnny. 

— Sei o que pensa. Você julga que eu agi de acordo com Frank Hedge, para o atrair a uma cilada. 

—E não foi assim? 

— Não o convencerei. Todavia, juro-lhe que não o traí... porque não tive oportunidade. Já vê como procuro ser sincera. 

— Não preciso das suas explicações. 

— Mas preciso eu de lhas dar. Quando aqui vim, trazia o propósito de valer-me de si para assustar Hedge e obrigá-lo a entregar-me a declaração de Tommy. Amo o Tommy. Ele é no mundo a única coisa que me interessa. Estava disposta, se Hedge me devolvesse a declaração, a livrá-lo de si e facilitar-lhe a fuga, ou até a ajudar que ele o matasse a você, se fosse preciso. Contei-lhe a sua história, Martin. Pôs-se furioso. Discuti-mos. Negou-se a atender as minhas razões e eu... então... Trazia comigo um revólver, mas ele não me deixou utilizá-lo. Ia estrangular-me. Gritei. Já não podia fazer outra coisa. 

Johnny Martin fechou os olhos. 

— Vá-se embora por favor. Estou cansado. 

— Não me acredita? 

— Sim. 

— Não pode perdoar-me? 

— Para que precisa do meu perdão? É esse rapazola imbecil do Tommy Roswell o único que lhe interessa no mundo, não foi o que disse? 

Lucy mordeu os lábios. 

— Disse. Hoje começa para mim uma nova vida, e quero entrar nela com a consciência tranquila. Preciso do seu perdão, Johnny Martin, porque acabo... de casar com o Tommy. 

Martin guardou uns instantes de silêncio. Não mostrou surpresa. 

— De maneira que ele não morreu — disse. 

— Morrison extraiu-lhe a bala. Viverá. Eu farei que ele viva. 

Bateram novamente à porta. 

— Vá em paz, senhora Roswell. — Johnny sorriu com amargura. — Perdoo-lhe, se isso a fará feliz, e desejo-lhe que o seja muitos anos. 

— O mesmo lhe desejo a si — respondeu ela. 

«Ser feliz muitos anos», pensou Johnny. Nunca pensara nada que se parecesse com isso. Nunca imaginara o que significava ser feliz. Nunca, desde o que se passara em Dodge City. 

Ser feliz muitos anos! Voltaram a bater à porta, agora com maior vigor. Lucy acrescentou suavemente: 

— Adeus e boa sorte, Johnny Martin. 


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