quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

BIS067.05 O fim de uma relação

 Francis Canopus Hedge bateu à porta pintada de verde, olhando para todos os lados, inquieto, até ela se abrir. Depois, entrou de repelão, empurrando a mulher loura que lhe franqueava a entrada. 

Ela compreendeu imediatamente a agitação que se refletia no meu rosto e o suor que o cobria, a desordem do fato e a forma ofegante da respiração. 1 

— Que aconteceu, Frank? — exclamou. 

Hedge desapareceu no interior da casa com desembaraço e foi sentar-se num dos sofás da sala traseira ti a casa. Havia poucas horas que Johnny Martin renunciara aos seus sonhos, sentado naquele mesmo sofá. 

— Frank, que foi que aconteceu? 

— Quero uma bebida. 

A mulher deitou quatro dedos de «whisky» puro num copo.

— Algum contratempo? perguntou a meia voz. — Por favor, Frank, estou assustada, fala! 

Ele esvaziou o «whisky» e riu com aspereza, sem sinceridade. 

— Alicia querida! Tive pouca sorte, foi o que aconteceu. Receio que não tenhamos outra solução a ser abandonarmos a cidade. 

Ela colocou-se na sua frente, fitando-o nos olhos. 

— Perdeste muito? 

— Pelo contrário, ganhei! E de que maneira! Mas... tolices... coisas de bêbedos... Toda a minha vida fugi dessa espécie de incidentes, como o diabo da cruz. Matei um homem, e é possível que outro morra também. 

Ela baixou instintivamente os olhos para o revólver que Hedge trazia no cinturão. O homem notou o olhar e tocou com as pontas dos dedos na coronha da arma. 

— Sim, matei — acrescentou. — Em legítima defesa. Era um rapazito chamado Link Martin. Alicia voltou-lhe as costas bruscamente e perguntou: 

— Um rapazito? 

— Sim, um estúpido rapazola — confirmou Hedge com rancor. — Encontrei-o esta tarde vagueando pela cidade, olhando para as portas dos «saloons» como hipnotizado. Segui-o, estudei-o e compreendi-o... Trabalho delicado, Alicia. Tremia de medo e cheio de reservas, mas consegui metê-lo no «Mayflower» antes que soubesse o que fazia. Poucos minutos depois jogávamos, Alicia! Acabava de receber um montão de dólares, e perdeu-os um a um! Deixei-o perder e beber, convencido de que acabaria sem um cêntimo, e adormecido sobre a mesa. Foi uma pena... No pior momento apareceu um camarada, bêbedo como ele. Houve urna discussão repugnante sobre a legalidade dos meus ganhos. Fui esbofeteado e insultado! Fui obrigado a defender-me. Um ficou morto e o outro ferido. Toda a gente se pôs contra mim. Pude salvar o dinheiro, mas isto é a minha despedida de Dodge City. Bat Mastreson não me perdoará, e a um homem como eu uma porcaria destas custa-lhe a carreira se não se apressa a mudar de ares. 

Alicia ficou calada. Não se voltou. 

— Sinto-o por ti, querida, — acrescentou Hedge. 

— Esses dois homens — disse ela de repente, — eram irmãos? 

— Provavelmente. 

— Johnny e Link Martin? 

Ele fixou o olhar nas suas costas. 

— Creio que sim. Teus amigos? 

A mulher crispou os punhos e apertou-os contra o rito. 

— Frank... Eu desejaria... 

Hedge interrompeu-a: 

— Não interessa. Neste momento só temos de pensar em nós, querida, e tomar imediatamente uma decisão. Escolhe tu: _Abilene, Kansas City, Paso ou San Luís. Não há tempo a perder. Irei a minha casa buscar o indispensável e não voltarei ali a pôr os pés. Sairemos de Dodge o mais depressa possível. 

— Sairás de Dodge — retificou ela, voltando-se então. 

O homem surpreendeu-se ao descobrir no seu rosto urna estranha expressão que não lhe conhecia. 

— Que estás tu a dizer? 

— Que. partirás só, Frank. Temos tudo acabado. 

— Estás louca? 

— Não. 

— Alicia, não te compreendo. 

— Nunca me compreendeste, mas isso acabou-se. Rogo-te que não me peças explicações. 

Ele levantou-se como impelido por uma mola e agarrou-a pelos braços. Ela soltou-se com um puxão. 

— Deixa-me! 

— Muito bem — disse ele, retrocedendo um passo. — Odeio as cenas. Por alguma razão que desconheço perdeste o domínio dos nervos. Tenho a paciência suficiente para esperares que o recobres. 

— Não, Frank; é inútil. 

— Oh! Já percebo... Esses rapazes... esses irmãos Martin... 

— Disse-te que não me peças explicações. 

Hedge sorriu amargamente. 

-- Evidentemente, não tenho direito a pedir-tas. Eu não represento nada na tua vida. Eu não te tirei daquela imunda escola, não te lancei no mundo, não te fiz triunfar. Eu não te amo. 

— Tu só te amas a ti próprio. Quanto à escola, mais me valia estar lá ainda. 

— Desde quando pensas assim? 

— Desde esta tarde. 

Alícia humedeceu os lábios secos com a língua. 

— Johnny Martin veio falar-me. 

Hedge ficou calado um momento. A sua atitude não traduzia a menor preocupação, mas apenas curiosidade. 

— Johnny Martin — repetiu pensativo. — Suponho que também não tenho o direito de saber o que há entre vocês. 

— Não há nada, mas poderia haver tudo. 

— Alicia, que queres dizer com isso? 

— Nada. Refiro-me apenas ao que nunca foi nem será — replicou ela, abruptamente. Baixou os olhos e acrescentou: — Johnny Martin e eu conhecemo-nos num baile da Associação dos Ganadeiros, apaixonámo-nos um pelo outro e jurámos casar algum dia. Ele tinha dezoito anos. Eu tinha dezassete. Era uma rapariga com senso comum; de maneira que, quando Johnny Martin partiu e não recebi notícias suas, deixei de crer nele e recusei acreditar que aquela noite do baile fosse o mais feliz da minha vida. Algum tempo depois, entraste tu no meu destino. Era normal deixar-me convencer com tudo quanto tu prometias e representavas. 

— Não te desiludi — apôs Hedge suavemente. — Prometi fazer de ti uma mulher de negócios, conseguir-te poder, dinheiro e elogios. Prometi amar-te. Cumpri todas as minhas promessas. 

— Todas, Frank. Mas aquela noite no baile continua sendo a mais feliz da minha vida. 

Hedge estava absolutamente sereno e, todavia, cobria-lhe o rosto uma intensa palidez. 

— É possível — concordou. — Embora isso a mim me pareça pura novela, talvez não seja eu pessoa indicada para o julgar. Foquemos objetivamente o assunto. Vamos separar-nos. Possuímos um negócio em comum: a manada e criação de gado. Que fazemos dele? 

Alicia perguntou friamente: 

— Quanto queres pela tua parte? 

— Cinco mil dólares. 

Sem uma palavra, a mulher abandonou o aposento. Voltou poucos minutos depois com a caneta, tinta e papel, que pôs sobre a mesa. Então indicou: 

— Redige o contrato e assina-o. Amanhã o registarei na Associação. 

Hedge escreveu e assinou com mão firme, sem hesitar. Ela assinou também. Depois tirou um livro de cheques e preencheu um pela importância de cinco mil dólares. Ele recebeu o cheque, dobrou-o e pôs-se de pé. 

— Nunca pensei acabar assim contigo, Alicia. 

Ela olhava-o impassível. 

— Duma maneira ou doutra teria de ser. Não nos enganemos. Entre nós dois não houve mais do que uma relação comercial que acaba agora de liquidar-se. 

Hedge abotoou lentamente a sobrecasaca. 

— Isso não é verdade. 

— Como quiseres. 

— Alicia... 

— Vai-te embora, Frank. 

— Tenho ainda alguma coisa __para te dizer. 

Ela repetiu com dureza: 

— Vai-te embora. 

Ele não se moveu. 

— Alicia, queres casar comigo? 

As mãos dela tremeram e ocultou-as nas costas. 

— Obrigada, Frank — a sua voz já não era dura. — Sei o que essas palavras representam vindas de ti. Nunca, esquecerei... 

— Responde sim ou não! 

Alicia respondeu claramente: 

— Não. 

Hedge deu meia-volta e pôs-se a andar com resolução, através da casa. A jovem seguiu-o até à porta. Ele abriu-a e saiu. Parada no umbral, viu-o tirar da algibeira o cheque que ela lhe dera. 

— Não quero conservar nada teu, nem mesmo dinheiro -- declarou ele. 

Tinha os olhos encovados, parecia muito mais velho, muito cansado. Com as suas cuidadas mãos rasgou o cheque em pedaços e atirou-os ao ar. Depois disse: 

— Mas não creias que me arrependo de ter-te conhecido e amado, ou que lamento o que fiz por ti. Só lamento uma coisa, Alicia. Queres saber o que é? 

Alicia não respondeu. Já não o via. Um momento depois ouviu-o exclamar: 

— Só lamento não ter matado Johnny Martin! 


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