Francis Canopus Hedge bateu à porta pintada de verde, olhando para todos os lados, inquieto, até ela se abrir. Depois, entrou de repelão, empurrando a mulher loura que lhe franqueava a entrada.
Ela compreendeu imediatamente a agitação que se refletia no meu rosto e o suor que o cobria, a desordem do fato e a forma ofegante da respiração. 1
— Que aconteceu, Frank? — exclamou.
Hedge desapareceu no interior da casa com desembaraço e foi sentar-se num dos sofás da sala traseira ti a casa. Havia poucas horas que Johnny Martin renunciara aos seus sonhos, sentado naquele mesmo sofá.
— Frank, que foi que aconteceu?
— Quero uma bebida.
A mulher deitou quatro dedos de «whisky» puro num copo.
— Algum contratempo? perguntou a meia voz. — Por favor, Frank, estou assustada, fala!
Ele esvaziou o «whisky» e riu com aspereza, sem sinceridade.
— Alicia querida! Tive pouca sorte, foi o que aconteceu. Receio que não tenhamos outra solução a ser abandonarmos a cidade.
Ela colocou-se na sua frente, fitando-o nos olhos.
— Perdeste muito?
— Pelo contrário, ganhei! E de que maneira! Mas... tolices... coisas de bêbedos... Toda a minha vida fugi dessa espécie de incidentes, como o diabo da cruz. Matei um homem, e é possível que outro morra também.
Ela baixou instintivamente os olhos para o revólver que Hedge trazia no cinturão. O homem notou o olhar e tocou com as pontas dos dedos na coronha da arma.
— Sim, matei — acrescentou. — Em legítima defesa. Era um rapazito chamado Link Martin. Alicia voltou-lhe as costas bruscamente e perguntou:
— Um rapazito?
— Sim, um estúpido rapazola — confirmou Hedge com rancor. — Encontrei-o esta tarde vagueando pela cidade, olhando para as portas dos «saloons» como hipnotizado. Segui-o, estudei-o e compreendi-o... Trabalho delicado, Alicia. Tremia de medo e cheio de reservas, mas consegui metê-lo no «Mayflower» antes que soubesse o que fazia. Poucos minutos depois jogávamos, Alicia! Acabava de receber um montão de dólares, e perdeu-os um a um! Deixei-o perder e beber, convencido de que acabaria sem um cêntimo, e adormecido sobre a mesa. Foi uma pena... No pior momento apareceu um camarada, bêbedo como ele. Houve urna discussão repugnante sobre a legalidade dos meus ganhos. Fui esbofeteado e insultado! Fui obrigado a defender-me. Um ficou morto e o outro ferido. Toda a gente se pôs contra mim. Pude salvar o dinheiro, mas isto é a minha despedida de Dodge City. Bat Mastreson não me perdoará, e a um homem como eu uma porcaria destas custa-lhe a carreira se não se apressa a mudar de ares.
Alicia ficou calada. Não se voltou.
— Sinto-o por ti, querida, — acrescentou Hedge.
— Esses dois homens — disse ela de repente, — eram irmãos?
— Provavelmente.
— Johnny e Link Martin?
Ele fixou o olhar nas suas costas.
— Creio que sim. Teus amigos?
A mulher crispou os punhos e apertou-os contra o rito.
— Frank... Eu desejaria...
Hedge interrompeu-a:
— Não interessa. Neste momento só temos de pensar em nós, querida, e tomar imediatamente uma decisão. Escolhe tu: _Abilene, Kansas City, Paso ou San Luís. Não há tempo a perder. Irei a minha casa buscar o indispensável e não voltarei ali a pôr os pés. Sairemos de Dodge o mais depressa possível.
— Sairás de Dodge — retificou ela, voltando-se então.
O homem surpreendeu-se ao descobrir no seu rosto urna estranha expressão que não lhe conhecia.
— Que estás tu a dizer?
— Que. partirás só, Frank. Temos tudo acabado.
— Estás louca?
— Não.
— Alicia, não te compreendo.
— Nunca me compreendeste, mas isso acabou-se. Rogo-te que não me peças explicações.
Ele levantou-se como impelido por uma mola e agarrou-a pelos braços. Ela soltou-se com um puxão.
— Deixa-me!
— Muito bem — disse ele, retrocedendo um passo. — Odeio as cenas. Por alguma razão que desconheço perdeste o domínio dos nervos. Tenho a paciência suficiente para esperares que o recobres.
— Não, Frank; é inútil.
— Oh! Já percebo... Esses rapazes... esses irmãos Martin...
— Disse-te que não me peças explicações.
Hedge sorriu amargamente.
-- Evidentemente, não tenho direito a pedir-tas. Eu não represento nada na tua vida. Eu não te tirei daquela imunda escola, não te lancei no mundo, não te fiz triunfar. Eu não te amo.
— Tu só te amas a ti próprio. Quanto à escola, mais me valia estar lá ainda.
— Desde quando pensas assim?
— Desde esta tarde.
Alícia humedeceu os lábios secos com a língua.
— Johnny Martin veio falar-me.
Hedge ficou calado um momento. A sua atitude não traduzia a menor preocupação, mas apenas curiosidade.
— Johnny Martin — repetiu pensativo. — Suponho que também não tenho o direito de saber o que há entre vocês.
— Não há nada, mas poderia haver tudo.
— Alicia, que queres dizer com isso?
— Nada. Refiro-me apenas ao que nunca foi nem será — replicou ela, abruptamente. Baixou os olhos e acrescentou: — Johnny Martin e eu conhecemo-nos num baile da Associação dos Ganadeiros, apaixonámo-nos um pelo outro e jurámos casar algum dia. Ele tinha dezoito anos. Eu tinha dezassete. Era uma rapariga com senso comum; de maneira que, quando Johnny Martin partiu e não recebi notícias suas, deixei de crer nele e recusei acreditar que aquela noite do baile fosse o mais feliz da minha vida. Algum tempo depois, entraste tu no meu destino. Era normal deixar-me convencer com tudo quanto tu prometias e representavas.
— Não te desiludi — apôs Hedge suavemente. — Prometi fazer de ti uma mulher de negócios, conseguir-te poder, dinheiro e elogios. Prometi amar-te. Cumpri todas as minhas promessas.
— Todas, Frank. Mas aquela noite no baile continua sendo a mais feliz da minha vida.
Hedge estava absolutamente sereno e, todavia, cobria-lhe o rosto uma intensa palidez.
— É possível — concordou. — Embora isso a mim me pareça pura novela, talvez não seja eu pessoa indicada para o julgar. Foquemos objetivamente o assunto. Vamos separar-nos. Possuímos um negócio em comum: a manada e criação de gado. Que fazemos dele?
Alicia perguntou friamente:
— Quanto queres pela tua parte?
— Cinco mil dólares.
Sem uma palavra, a mulher abandonou o aposento. Voltou poucos minutos depois com a caneta, tinta e papel, que pôs sobre a mesa. Então indicou:
— Redige o contrato e assina-o. Amanhã o registarei na Associação.
Hedge escreveu e assinou com mão firme, sem hesitar. Ela assinou também. Depois tirou um livro de cheques e preencheu um pela importância de cinco mil dólares. Ele recebeu o cheque, dobrou-o e pôs-se de pé.
— Nunca pensei acabar assim contigo, Alicia.
Ela olhava-o impassível.
— Duma maneira ou doutra teria de ser. Não nos enganemos. Entre nós dois não houve mais do que uma relação comercial que acaba agora de liquidar-se.
Hedge abotoou lentamente a sobrecasaca.
— Isso não é verdade.
— Como quiseres.
— Alicia...
— Vai-te embora, Frank.
— Tenho ainda alguma coisa __para te dizer.
Ela repetiu com dureza:
— Vai-te embora.
Ele não se moveu.
— Alicia, queres casar comigo?
As mãos dela tremeram e ocultou-as nas costas.
— Obrigada, Frank — a sua voz já não era dura. — Sei o que essas palavras representam vindas de ti. Nunca, esquecerei...
— Responde sim ou não!
Alicia respondeu claramente:
— Não.
Hedge deu meia-volta e pôs-se a andar com resolução, através da casa. A jovem seguiu-o até à porta. Ele abriu-a e saiu. Parada no umbral, viu-o tirar da algibeira o cheque que ela lhe dera.
— Não quero conservar nada teu, nem mesmo dinheiro -- declarou ele.
Tinha os olhos encovados, parecia muito mais velho, muito cansado. Com as suas cuidadas mãos rasgou o cheque em pedaços e atirou-os ao ar. Depois disse:
— Mas não creias que me arrependo de ter-te conhecido e amado, ou que lamento o que fiz por ti. Só lamento uma coisa, Alicia. Queres saber o que é?
Alicia não respondeu. Já não o via. Um momento depois ouviu-o exclamar:
— Só lamento não ter matado Johnny Martin!
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