domingo, 26 de dezembro de 2021

BIS067.08 Um náufrago em Santa Fé com o homem do ouro sob a mira

Em 1581, os índios conchos, que habitavam as margens do norte do Rio Grande, contaram a um franciscano, o padre Ruiz, assombrosas histórias acerca das suas terras e das pessoas, animais e outros fenómenos ali fixados. Tão inacreditáveis pareciam tais histórias, que os espanhóis encarregaram Don António de Espejo da missão de certificar-se da sua veracidade. Este foi o primeiro homem branco que pisou aquelas regiões agrestes. Os seus conquistadores e exploradores chamaram-lhe Novo México, que- significava Novo País do Ouro. 

Foi um nome profético. Com o andar dos tempos, o Novo México mostraria aos homens as suas preciosas entranhas douradas pie se ocultavam sob a sua terra seca e hostil. Um dos homens a quem se mostrou foi a Tommy Roswell. 

Aos vinte anos de idade, Tommy sabia do ouro do Novo México tudo quanto pode saber-se tanto do bom como do mau. Tinha dezasseis anos quando ali chegou com um punhado de dólares que mal chegaram para comprar os materiais e utensílios em Santa Fé e partir para os Montes de São João onde, segundo contavam, as pessoas enriqueciam dum dia para o outro, com a descoberta de novos filões. 

Durante três anos, Tommy vagueou dum lado para o outro na região mineira entregue aos trabalhos mais penosos, mas sem encontrar nem um miligrama do precioso metal. Aprendeu tudo quanto ali podia aprender-se, que era muito, e acabou a lavar a louça num restaurante chinês em troca da comida. Quando se convencera de que o ouro não se fizera para ele, decidiu abandonar a região e dirigir-se para o norte até Wyoming ou se possível até Montana, para se dedicar à criação de gado. Viu-se obrigado a empreender a viagem a pé, confiando que a natureza lhe proporcionasse a alimentação. 

Pôs-se a caminho no dia 10 de Junho, no começo da boa estação. No dia 18 do mesmo mês, num local ermo da montanha, ao debruçar-se sobre um riacho para beber, descobriu na água duas soberbas pepitas. 

A sorte de Tommy Roswell mudara. Caminhando alguns metros no curso do riacho, localizou o filão: aconteceu tudo como nas histórias que se contavam nos acampamentos e que tantas vezes excitara a sua cobiça. 

Daquele veio, podia extrair uma fortuna. 

Com as duas pepitas apressou-se a percorrer o mesmo caminho andado. Vendeu-as e deu-se ao luxo de almoçar como um magnate, no mesmo restaurante onde lavara a louça dias e dias. Embriagou-se como nunca se embriagara. Passou as Vinte e quatro horas seguintes dormindo no melhor quarto do hotel. Mas depois comprou um burro, adquiriu as ferramentas que precisava, registou a propriedade da mina, comprou as provisões necessárias e partiu novamente para onde o aguardava a riqueza. 

Explorou o filão durante todo o Verão e parte do Outono. Não se moveu dali enquanto os frios duros o não expulsaram. Quando se decidiu, forçado pela intempérie a regressar parecia um homem muito velho; magro, enrugado, queimado pelo sol, com as costas um pouco curvadas e o fato reduzido a farrapos. Não obstante era rico. 

Passou ao largo da zona mineira e desceu até Santa Fé. Chegou à cidade arrastando os pés, cadavérico, com o cabelo e barba crescidos e emaranhados, caminhando a reboque, do burro que transportava o seu saco de ouro. 

A partir daquele momento, dedicou-se a adquirir tudo quanto sempre desejara e a pagar por isso quanto lhe pediam. Um mês depois da sua chegada à cidade, readquirira a mocidade. Vestia as melhores roupas e matos. Vivia como um príncipe índio. Queria correr mundo e fazer-se notar, mas não tinha pressa alguma. Toda a gente falava com frequência naquele rapaz que se embriagava todas as noites e atirava o dinheiro como se lhe queimasse as mãos. Todos esperavam que aquilo acabasse depressa. Mas não acabou. Só Tommy e o seu banqueiro sabiam até que ponto vinha cheio o saco trazido dos montes de São João. E só ele, Tommy, sabia o volume das reservas que deixara no seu filão oculto. 

Por fim, a meio do Inverno, o rapaz enamorou-se de Lucy Mayer. Lucy era uma mulher única. Nascera no bairro Mississípi de pai e mãe mestiços e trazia nas veias sangue de quatro raças diferentes. Aquela mistura dotou-a duma beleza incrível. Possuía a pele da cor da azeitona, suave como o veludo, uma figura modelada com a graça natural dos animais selvagens, cabelo como seda preta e os olhos rasgados e profundos. 

Apareceu um dia em Santa Fé e fez construir o «saloon» mais luxuoso da cidade. Tinha dinheiro. Causou sensação. Os homens prostraram-se a seus pés. Era alegre, livre, despreocupada. 

Quando inaugurou o seu estabelecimento teve clientes aos montões. Desde o princípio, Tommy Roswell deixou-se arrebatar por uma paixão doentia pela estranha rapariga. Assediou-a, cobriu-a de atenções e de ouro. Lucy respondia a tudo com sorrisos, mas não demonstrava preferi-lo aos restantes clientes seus admiradores. 

O rapaz tomou aquela paixão duma maneira feroz, desesperada. Até então tivera tudo quanto quisera. Agora queria Lucy Mayer e verificava que o seu dinheiro não era suficiente para a conseguir. 

Assim decorreram dois meses. Depois, quando Tommy já esquecera que no mundo havia mais alguma que aquela mulher, as coisas mudaram um dia. Foi uma tarde. O rapaz bebia «whisky» escocês no «bar» do «saloon» onde costumava passar a maior parte das horas e naquele momento ainda não estava borracho. Lucy, ao aproximar-se dele, foi recebida com uma atitude serena. Ela disse-lhe: 

— Tommy, tenho o defeito de antepor o meu negócio aos meus amigos. Perdoa-me. Sei que ultimamente não te dediquei toda a atenção que gostaria de dedicar-te. 

Tommy sorriu sem alegria. 

— Seria maravilhoso poder acreditar-te — replicou. 

A mulher fitava-o nos olhos. 

— Queres fazer-me um favor? 

— Que favor? 

— É um assunto delicado. — O olhar de Lucy podia ferir ou acariciar. Naquele momento, acariciava como um beijo. — Dirijo-me a ti, Tommy, porque és um homem honrado e digno de confiança. Preciso da ajuda de alguém como tu. 

— Nunca me disseste que eu fosse bom companheiro — observou ele. Sentia-se extremamente feliz, só com ouvir a sua voz e o tom em que lhe falava — Nem isso me disseste nunca. Mas sabias que o pensava. 

Ela tocou-lhe a face com a ponta dos dedos. 

— Escuta-me, Tommy. Um antigo conhecido meu chegou esta manhã à cidade, de passagem para Las Vegas. Ficará aqui uns dias. Tem dinheiro e gosta de o gastar... Bem, pretende que o gastemos juntos, mas tu bem vês o pouco tempo que eu posso dedicar a estas coisas. Não quero comprometer-me, Tommy. Ficar-te-ei eternamente agradecida se tu te ocupasses um pouco com ele. 

— Eu? 

— Peço-te, querido. É um cavalheiro muito agradável que correu mundo e tem a experiência da vida. Deseja divertir-se. Tu és a pessoa que ele precisa para companhia. 

— Eu? — repetiu Tommy desconcertado. — Que demónio posso eu fazer para o divertir? 

— Segundo dizem, tu és a pessoa que em Santa Fé mais dinheiro gastou em diversões, desde que a cidade existe. É a isso que me refiro. Não é preciso fazeres habilidades nem seres engraçado, descansa. 

— Está bem. Que espécie de diversões prefere? 

— Não sei. Ah! Espera! Julgo saber que gosta de jogar a sua partida se é moderada. Enfim, tu verás, Tommy. De acordo? 

O rapaz concordou. 

— Sim, mas não me convences sem mo apresentares. Receio que ele venha atravessar-se entre nós dois. 

Mas não se atravessou. Nem sequer sentiu ciúmes dele, que era o que sentia antes de o conhecer. Era um homem alto, maduro, sóbrio. Teria talvez quarenta anos. Falava com acento do Sul e vestia como Tommy nunca vira melhor. No seu rosto duro, frio e comprido havia um cunho de nobreza. O seu aperto de mão foi firme e cordial, assim como o seu breve sorriso. Lucy apresentou: 

— Francis Canopus Hedge, um velho amigo. 

Não parecia haver absolutamente nada entre eles, ou, pelo menos, nada que a desconfiada sensibilidade de enamorado de Tommy conseguisse perceber. 

— Sou um náufrago nesta cidade — explicou Hedge, — mas felizmente a minha boa amiga Lucy vela por mim. É um prazer conhecê-lo, rapaz, sobretudo depois de ouvir tantos elogios a seu respeito. 

— Frank, não sejas indiscreto! — exclamou Lucy. 

O cavalheiro desatou a rir. 

— Vê, Roswell? As mulheres perdem-se sempre por falar demasiado. Eu não disse, Lucy, que foste tu quem fez esses elogios, embora realmente assim fosse. Não mudaste; estás uma mulher, mas continuas ainda a ser a mesma rapariguita espontânea que conheci em «Faton Rouge». Isto rejuvenesce-me, como se voltassem outros tempos mais felizes. Oh! Perdoe-me, rapaz... — Hedge voltou a sua atenção para Tommy, e desfez a expressão sonhadora que tornara a seus olhos. — Tenho a ingénua pretensão de ter sido para Lucy como um pai. Mas deixemos isso agora. Quer tomar um copo? 

Havia vários meses que ninguém convidava Tommy a tomar um copo, embora ele convidasse centenas. Aceitou. Hedge entrara muito bem no espírito de Tommy. Depois, quando Lucy os deixou sós, o cavalheiro pôs-se a falar dela. Falou como o faria um pai e um pai entusiasmado. 

Tommy, escutando-o, estremeceu de prazer. Uma ideia tomava forma na sua mente. Se conseguia que aquele homem o admirasse e estimasse, talvez conseguisse que ele interviesse a seu favor junto de Lucy. Era um velho amigo. Um velho e paternal amigo. Lucy devia ter em muito apreço os conselhos dele. Mas como consegui-lo? 

Tommy pensou que a mulher que amava lhe dissera que ele gostava de jogar. Podia organizar uma partida de «poker». Ouvira dizer que é numa mesa de «poker» que os homens se conhecem melhor, e interessava-lhe que Francis Hedge o conhecesse. Assim começou tudo. 


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