segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

BIS067.09 Estranha assistência para uma partida de poker

 Contra o que Tommy Roswell esperava e desejava a ideia de jogar uma partida de «poker» não seduziu muito Hedge imediatamente. 

— O jogo e o álcool encerram o mesmo perigo — sentenciou. — Ambos conduzem à embriaguez e durante ela podem acontecer-nos coisas terríveis. Neste sentido, considero o jogo particularmente pernicioso, mais pela ruína moral do que pela pecuniária, a que pode conduzir um homem. 

Tommy sentiu-se intimidado. 

— Não obstante, — objetou — o jogo é um dos grandes atrativos de Santa Fé. Ficaria assombrado se soubesse o número de jogadores profissionais que há nesta cidade. 

— Acredito. — Hedge sorriu. — Confio que não me entregue nas suas mãos. 

Deram uma volta pela cidade, conversaram sobre uma infinidade de coisas e, mais tarde, enquanto jantavam, o rapaz voltou a apresentar o tema da partida de «poker». Desta vez o cavalheiro mostrou-se mais acessível. 

— Tenho de confessar-lhe uma coisa, meu amigo — disse. — Toda a minha vida tenho andado atrás das emoções fortes. Há anos que ouço falar nas grandes partidas de «poker» que se jogam no Oeste, nos lugares onde existem os caudais de ouro, entre homens armados de revólver, e dispostos a puxar por eles por qualquer ninharia. Com os diabos! Oh! Roswell, você pode proporcionar-me uma partida assim? 

Tommy fitou-o com ansiedade. 

— Você viu esta tarde a cidade, o ambiente das casas de jogo e a classe dos jogadores. Julga que é difícil? 

— Não. 

— Posso oferecer-lha, mas também lhe pode custar muito caro. 

— Tenho dinheiro. Não me importa arriscá-lo por uma vez... se valer a pena. Que haja autêntica emoção, compreende? Nada de profissionais para quem o jogo é um negócio. Gente que lute e que não vacile em usar as armas se as coisas não correm bem. 

— Quanto está disposto a perder? 

— Não se preocupe. 

Tommy refletiu. 

— Muito bem, senhor Hedge, terá a sua partida. Conheço alguns jogadores excelentes que se distinguem pela sua técnica, a sua astúcia e a sua coragem. Previno-o de que são homens perigosos. 

— E você também. 

— Eu? 

— Um homem perigoso e um formidável jogador, tenho a certeza. 

A Tommy nunca ninguém lhe dissera aquilo. Quase corou. 

— Oh! Eu só possuo a vantagem do dinheiro. Com ele posso assustar qualquer, se me apetecer. O segredo do «poker» é não ter medo de perder, não lhe parece? 

— Não sei. — Hedge abanou a cabeça. — Nunca exigi do jogo mais que um pouco de distração. Não entendo uma palavra de segredos, de técnica ou de astúcia, mas espero aprender muito consigo. 

— Farei o possível. 

Hedge falou de repente num tom diferente: 

— Reswell, se eu tivesse um filho, gostaria que ele se parecesse consigo. 

O rapaz sobressaltou-se. 

— Porque diz isso? 

— Admiro a sua força de carácter, a sua franqueza, sua retidão e boa-fé. É raro hoje em dia encontrar essas qualidades entre os jovens. Você está apaixonado por Lucy, não é assim? 

Tommy sussurrou: 

— De facto. 

— Era inevitável, e não será o único. Conheço a Lucy, conheço a sua atração e, ao mesmo tempo, a maneira como até à =data ela tem resistido ao amor. Mas permita-me uma confidência. Ouvi-a falar de si, como nunca supus que ela pudesse falar dum homem. Isto é muito significativo. Você é jovem, agradável, inteligente, ama-a com fervor... Já era tempo dela se render, com os diabos! Insista com ela; a minha sincera opinião, é de que está mais perto do coração dessa rapariga, que qualquer dos homens que lhe fazem a corte. 

A Tommy tremiam-lhe as mãos. 

— É possível? — exclamou. 

— Porque não há de ser? 

— Senhor Hedge — o rapaz estava profundamente comovido. — Nunca esquecerei isto, nunca. Não sabe como me faz feliz... Eh! -- gritou para um criado. — Uma garrafa de «whisky» escocês. Temos de beber em honra de Lucy, senhor Hedge, e beber muito. 

Hedge, pareceu muito contente com a ideia. 

— Lucy merece um jovem como você, Tommy. Conte com a minha ajuda. 

Uma hora depois, quando no «saloon» de Lucy iniciaram a partida de «poker», Tommy Roswell já estava um pouco embriagado. Completavam a mesa um armazenista alemão e um velho mineiro que trazia um sólido «Colt» num coldre axilar semioculto pelo seu colete de couro. Ambos eram ricos e audazes. 

Desde o primeiro instante, apostaram fortes somas, e Tommy, que receava por Hedge, recomendou moderação. Depois, ele próprio esqueceu as suas recomendações. 

Hedge, por seu lado, mostrava-se um jogador ingénuo, e parecia mais interessado nos seus companheiros, nas suas atitudes e reações, do que na própria partida. «Boa presa para os batoteiros», pensou o rapaz. Mas pensou também que devia estar encostado a um capital considerável, para se mostrar tão indiferente com o risco das apostas. 

— Duzentos dólares. 

A voz de Hedge acabava de anunciar aquela importância e Tommy deixou os seus pensamentos para se concentrar no jogo. 

O alemão e o mineiro passaram. Hedge pediu três cartas. 

— Duzentos e cinquenta — replicou Tommy. 

Tinha na mão três damas e não se exporia demasiado, a não ser que a sorte do cavalheiro fosse excecional no descarte. 

— Trezentos — disse Hedge, titubeando. 

— Quatrocentos. 

O cavalheiro esfregou o nariz distraidamente, e Tommy fixou mentalmente aquele gesto para verificar no fim da jogada, qual seria a sua significação. Sabia, como qualquer médio jogador de «poker», que todos os novatos têm sempre um gesto característico, um tique, uma expressão, uma palavra, que denuncia o seu estado de alma, através do qual é possível avaliar o jogo que possuem. Quando o novato se transforma em perito, aprende a dominar-se, -a tornar impenetrável o rosto; a ficar calado ou falar de maneira sempre uniforme. Aprende que a perfeita dissimulação é a chave da vitória, mas até lá muitos prejuízos suportou. 

— Quinhentos — disse Hedge, e voltou a esfregar o nariz. 

Tommy não quis puxar mais. Era a aposta mais elevada registada até então, e Hedge não deixara de perder. 

O cavalheiro aguardava sorridente. 

— Sejam quinhentos. Tenho curiosidade de ver a suas cartas, senhor Hedge. 

Hedge suspirou desanimado. 

— Que pena! Não esperava que viesse ver. Tenho somente um par de setes — e mostrou. — Você é corajoso, Tommy. 

— Sou mais rico do que corajoso, essa é que é a verdade —e o rapaz pôs-se a rir. — Permite-me um conselho? Se deseja assustar-me, não faça lances pequenos, de cinquenta ou cem dólares. Lance-me a fundo e sem compaixão. Só uma quantia muito importante pode obrigar-me a ficar calado. Mas talvez que esta partida esteja a tornar-se muito forte para si. 

— Pelo contrário! 

O alemão interveio com voz de baixo: 

— Tommy diz a verdade, amigo. Só o assusta uma soma com muitos zeros. Sei isso por experiência. Mas cuidado! No «poker», os conselhos, mesmo os mais bem-intencionados, têm duas caras. 

Riram os quatros jogadores e dos quatro foi Tommy quem riu com mais gosto. Vindo de Hedge, nem uma importância com muitos zeros o assustaria. Hedge tinha um ponto fraco: esfregava o nariz. Se se desinteressasse do alemão e do mineiro e concentrasse a atenção no cavalheiro e no seu jogo, não teria praticamente adversário. 

A partida prosseguiu. A Tommy acabou-se-lhe a boa sorte que começou para o alemão. Depois perdeu o alemão e ganhou Hedge. A sorte deste parecia firmar-se. O rapaz apostou com ele meia dúzia de vezes e verificou a exatidão das suas primeiras observações. Quando o cavalheiro apostava com as mãos quietas, o seu jogo era sólido. Se esfregava o nariz, era falso. Era quase vergonhoso aproveitar-se daquela indicação matemática, e Tommy, que era honrado, não abusou dela. Utilizou-a apenas para se reembolsar dos prejuízos já sofridos e sobretudo porque Hedge continuava a ganhar, com pasmosa ingenuidade, mas ganhava. 

Ao fim de pouco mais de hora e meia, Lucy Mayer entrou na sala de jogo do seu estabelecimento e olhou em volta. Havia cinco mesas ocupadas e um homem sozinho que bebia cerveja no pequeno «bar». Mas ela só prestou atenção ao grupo formado por Hedge, Tommy, o alemão e o mineiro. 

Da porta, sem se aproximar, seguia as suas jogadas com interesse. O homem do «bar» examinou-a e passou a língua pelos lábios. Estava deslumbrante. Trazia um vestido branco muito justo, que fazia sobressair não só as suas formas esculturais, como a cor estranha da sua pele. Exibia no pescoço um tosco colar feito com pepitas de ouro. 

O homem do «bar» pensou, e não se equivocava, que era uma mulher como vira poucas no mundo. Quando ela avançou da porta e pediu ao empregado do «bar» uma taça de champanhe, ele analisou os seus movimentos com deleite. Um momento depois, disse: 

— Você tem qualquer coisa... 

Lucy voltou-Se com a taça na mão e encontrou o olhar do desconhecido fixo no seu rosto. Experimentou uma súbita sensação de receio. Uma disparatada sensação. Por alguma razão se tornava inquietante a presença daquele homem, mas não conseguiu definir qual fosse... 

Procurou identificá-lo. Trazia um velho casaco de pele e calças escusas. Na cabeça um chapéu preto. Usava grandes esporas de prata e um revólver muito baixo, preso o coldre ao músculo da perna por urna correia. Embora de idade indefinida, devia ser jovem. A intempérie curtira-o e endurecera-o, mas conservava um descarado ar altivo e, nos seus olhos, havia um brilho maligno. 

À primeira vista podia considerar-se um cavaleiro qualquer, um entre tantos os poeirentos vagabundos do deserto. Todavia Lucy adivinhava que ele não era um cavaleiro qualquer. Dentro daquele homem, debaixo do seu aspeto exterior, detrás das suas brilhantes pupilas, ocultava-se uma coisa horrivelmente morta, uma ameaça, um perigo, um veneno. Apesar disso, ou talvez precisamente por isso, era o homem mais atraente, mais perturbadoramente atraente de quantos ela vira havia muitos meses. 

— Você tem qualquer coisa que me recorda a irmã de Charlie -- concluiu o desconhecido. — Somente ela não era tão formosa. Ou melhor, duvido que haja no mundo outra mulher tão formosa... 

— Os homens costumam dizer-Me isso, de facto — replicou ela, desdenhosamente. 

— Não preterido ser lisonjeiro. Mas também não falo por falar. 

— Então que pretende? 

O desconhecido encolheu os ombros. 

— A irmã de Charlie era uma jovem mestiça que conheci nas margens do Rio Vermelho. Talvez tenha ouvido contar a sua história. 

— Não. 

— Ou a história do apache Kid. 

— Não costumo ouvir contar histórias. 

O homem olhou para a mesa que Lucy estivera contemplando. 

— Eu contava-lha, se não estivesse tão interessada nessa partida de «poker» ou por algum dos que jogam. É uma história pouco vulgar. 

— Interessa-lhe por quem ou porquê me preocupo? 

— Talvez sim. 

— Quem é você? 

— Um a quem chamam Johnny Martin. 

Lucy bebeu lentamente o champanhe. Procurava refletir. O seu medo não se desvanecera. Pelo contrário, aumentava. A jovem supunha que a atitude daquele homem tinha um propósito deliberado. Não obstante, nunca o vira antes, nem ouvira falar nele. Se estava ali com algum objetivo, ignorava que objetivo fosse. 

— Muito bem — disse a meia voz. — Conte essa história, Johnny Martin. Escuto-o. 

— Aconteceu na Primavera — começou, — mas não é uma história de amor, como as que costumam acontecer na Primavera. Você disse que nunca ouviu falar de Apache Kid. Pois bem. Apache Kid foi um dos salteadores mais ferozes, sanguinários, cruéis, audazes e astutos que se conheceu no Sudoeste. Naquela Primavera subira o Rio Vermelho fugindo à perseguição dos «scouts» do coronel Byram. A vida de Apache Kid decorrera, como quem diz, num charco de sangue, mas naquela altura encontrava-se já na decadência, abandonado pelos seus antigos amigos, convertido em lobo solitário e obrigado a vaguear pelo deserto em perpétua fuga. O coronel Byram tinha-o encurralado e quase todos os dias encontrava o rasto do seu acampamento da noite anterior. Embora o não visse e parecesse chegar a alcançá-lo, pois o bandido desaparecia como uma sombra, era seguro que aquela situação não duraria muito. 

Fez uma pausa para beber um golo de cerveja, prosseguiu: 

—  Foi neste momento, todavia, que Apache Kid desferiu o seu último golpe: entrou durante a noite numa aldeia das margens do rio e raptou uma rapariga mestiça, que era a mulher mais bela da região e uma das mais belas que eu vi algum dia. Fê-lo nas próprias barbas do coronel Byram que ficou louco de vergonha e de cólera. O coronel e os seus «scouts» transformaram a captura do bandido numa questão de honra e lançaram-se como feras famintas na sua pista. 

Lucy colocou o seu copo sobre o balcão com certo ruído. Não prestara a menor atenção à história ou pelo menos não a prestara à última parte. Olhava para a mesa do «poker». Aparentemente, enervava-a qualquer coisa que ali se passava. 

— É uma tolice conversar com uma estátua, evidentemente — disse o homem com secura. 

Ela voltou-se e sorriu-lhe. 

— Desculpe. A sua história interessa-me muito. Se esperar um momento poderá continuar a contar-ma, importa-se? Volto já. 

Sem esperar a resposta, resolutamente, dirigiu-se para os quatro jogadores. Hedge pôs-se de pé quando a viu. Os restantes imitaram-no um pouco forçados. 

— Boa partida? 

— Estamos num momento muito interessante — explicou o alemão. — O senhor Hedge abriu o jogo com trezentos dólares. Eu passei... e Tommy prepara-se para dizer alguma coisa engraçada. Que será? 

O rapaz não gostara da interrupção, porque precisava concentrar-se. Ia jogar em falso; devia fazê-lo para recuperar as suas recentes perdas, e Hedge dava-lhe a oportunidade. Mas não tinha a certeza. O parceiro ainda não esfregara o nariz. 

Tommy foi o primeiro. a voltar a sentar-se. Lucy colocou-se atrás dele que, naquele momento, abria as cartas em leque para que ela pudesse ver o seu jogo. Eram más: um fracassado projeto de sequência, que ficou reduzida a um par de damas. Pouca coisa, se Hedge ou o mineiro tivessem completado os seus jogos. O primeiro, que não pedira cartas, era mais temível a este respeito. 

— Quinhentos —disse o rapaz, empurrando as fichas para o centro da mesa. 

O mineiro imitou-o imediatamente: 

— Sejam quinhentos. 

Muito desagradável. 

Tommy notou que, como para lhe incutir confiança, Lucy lhe punha a mão sobre o ombro. Sabia que ela admirava a sua forma de jogar e não queria desiludi-la, mas, dada a situação, aquela mão trouxe-lhe um verdadeiro alívio. Aguardou ansioso a reação de Hedge, que estava muito sereno, perigosamente sereno. Em vão esperou aquele seu gesto denunciante... aquele sinal…

Em vão? Não! Hedge pestanejou e esfregou o nariz. 

— Mil dólares. 

Tommy suspirou. A aposta seria sua. 

— Cinco mil. 

A mão de Lucy apertou-lhe o ombro suavemente. Como era de esperar, o mineiro arrojou as cartas para a mesa e passou, com um resignado sorriso. 

— Senhores, o meu jogo não resiste a semelhantes alturas. 

Hedge, então, não esfregou o nariz. 

— Dez mil—anunciou sem titubear. 

Tommy estremeceu. Estaria enganado? Teria o cavalheiro realmente um jogo forte? Estudou o seu meio sorriso, o seu cortês meio sorriso... Decidiu arriscar-se. Por boas que fossem as cartas de Hedge, não o acompanharia se dobrasse a aposta. Acompanhá-lo seria uma loucura. E aquela mão de Lucy no seu ombro... Tommy apostou: 

—Vinte mil! 

O mineiro assobiou baixinho. Mas Hedge não hesitou. Tranquilamente, como se estivesse um pouco distraído, tirou do bolso um pacote de notas e colocou-o sobre a mesa. 

— Se aceita uma aposta em dinheiro, meu rapaz, vou até aos cinquenta mil. Tem a liberdade de recusar, claro está; e peço-lhe que não se sinta coagido. 

A fronte de Tommy inundou-se de suor. Não podia recusar. Não podia negar aquilo a um cavalheiro como Hedge. Por outro lado, também não podia sacrificar cinquenta mil dólares sabendo, como lá sabia agora, que os perderia infalivelmente. Comportara-se como um estúpido, como um novato, como um Ingénuo. De que lhe servira estudar as reações de Hedge se, num momento de embriaguez, prescindira delas? 

— Prefiro perder vinte que cinquenta mil — replicou amargamente. — Aceito a sua aposta, senhor Hedge, mas declaro-me vencido. O senhor ganhou. 

O cavalheiro fez um gesto rápido. 

— Por favor, Tommy! Se lhe parece excessivo ou-irregular, retiro o que disse e ficamos nos vinte mil. Não quero que... 

— Ganharia de qualquer maneira. Além disso, fui eu próprio que apostei vinte mil sem ter jogo para isso. A sua aposta é válida. Obrigado, senhor Hedge A culpa minha por jogar como um idiota. 

Hedge, como que desgostoso, puxou para si o montão de fichas e mais as notas que Tommy juntara. 

— Espero que se lhe depare uma oportunidade para a desforra —disse. —A verdade é que nos excedemos um pouco, não acham? 

O alemão e o mineiro ficaram calados. 

—Não por mim — replicou Tommy. 

Desta vez não era sincero. A mão de Lucy afastou-se do seu ombro. 

— Boa partida, de facto —comentou a mulher — e emocionante. Volitarei depois para ver como segue, embora receie, querido Tommy, que a minha presença não te traga a sorte.

— Prefiro a tua presença à sorte — respondeu ele. 

E Lucy riu. 


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